Capítulo 0
Quando Caelene foi convocada por seu pai, o soberano Bargar Seabriar, não pensou que fosse para ver a sua vida ser leiloada em frente aos seus olhos estatelados. Caelene engoliu em seco, suspirou e por fim, em meio à uma voz embargada, conseguiu dizer.
— Papai... Eu não desejo me casar! Muito menos com Theodorus Saintrenf!
O rapaz ao seu lado encarou-a, totalmente ofendido. Caelene prosseguiu, determinada a mudar a decisão do pai.
— As visões do Velho Louco... Preciso estar pronta para quando o dia chegar! Não poderei proteger a todos se estiver... — Caelene engoliu em seco mais uma vez, sentindo a proibida palavra arranhar a sua garganta. — Casada.
Esperou a resposta do soberano, que chegou aos seus ouvidos por meio de uma irônica risada. Bargar encarou-a, fazendo pouca questão de esconder sua expressão de nojo e desaprovação. Aquela garota amaldiçoada, fruto de um devaneio de Eupherbia, jamais seria capaz de salvar um mísero alguém. Tampouco foi capaz de salvar a mãe, que deu a própria vida para que ela pudesse nascer.
Tamborilando, Bargar prosseguiu.
— És uma decepção para mim, Caelene. E se prova ser uma criança tola sempre que traz à tona as palavras daquele louco. Deveria agradecer por mostrar clemência e não bani-la ao convívio daquele homem. Se já entendeu o seu lugar, aceite a minha decisão em silêncio.
Caelene abaixou a cabeça, recusando-se a deixar que mais lágrimas molhassem as bochechas saltadas. Estava acostumada a ser tratada como um estorvo e o motivo para o semblante de Bargar estar sempre a um passo da irritação. No entanto, se o pai ousava pensar que Caelene aceitaria tal decisão de bom grado, não poderia estar mais enganado. Seu sangue subiu a cabeça e as narinas inflaram, deixando-a profundamente irritadiça.
Os criados presentes levaram a mão aos lábios, chocando-se com o cenário atual. Theodorus afastou-se com ares de espanto e temor, pressentindo que, se ainda continuasse no local, regressaria para casa com um bom galo na cabeça. Cacos de vidro voaram em câmera lenta, cortando superficialmente a face severa de Bargar Seabriar. Sangue correu de sua bochecha.
— Apenas me casarei se estiver morta. Não vou ser uma moeda de troca no meio dos seus interesses, Bargar. — Caelene praticamente rugiu, sentindo o ar atiçar os seus cabelos, adentrando pela abertura da janela recém quebrada. Seu sapato jazia ao lado dos vidros estilhaçados e naquele momento, tomada pela raiva, não poderia se arrepender menos por ter o lançado com toda a sua força. — Se o senhor me der licença.
Antes que fosse liberada, Caelene ergueu o tecido do vestido trançado em pérolas e ouro, curvando-se de modo exagerado. Saiu batendo os pés e uma vez fora do cômodo, bateu a porta, ensurdecendo todos que ainda estavam do lado de dentro. Suspirou pesadamente e longe dos olhos cruéis de Bargar, deixou que o corpo assumisse a fraqueza que a alma sentia. Suas pernas pesadas estremeciam e os olhos avermelhados corriam lágrimas de tristeza pelas bochechas. Será que aquela seria a única forma de ser útil para o pai? Se tornando alguém que não desejava ser?
— Precisa ter calma, senhor Bargar... Menina Caelene ainda é muito nova, mudará de ideia quando as estações passarem... — Interveio um criado, pressionando um pano de linho contra o corte recém aberto.
— São os ares da juventude! — Concluiu outro.
— Caelene é a minha maior decepção. Eupherbia jamais deveria tê-la deixado nascer.
— Senhora Eupherbia sabia o que estava fazendo e quais eram os riscos de levar a gestação adiante... — Falou a criada mais velha. — Dizia que menina Caelene vinha para salvar o mundo.
— Não sendo compatível com a nossa magia? — Bargar riu, desdenhoso. — Caelene é incapaz de carregar o legado dos Seabriar. Ainda na infância, provou que nunca será igual às irmãs. É uma decepção completa.
Caelene ainda ouviria mais daquelas palavras insensíveis, vindas do homem que não fazia questão de cumprir o papel de pai. Caelene sempre soube que suas filhas eram apenas Lenne, Frerie e Sollie. Ela era apenas os restos de uma mulher em decomposição.
— O quê está fazendo parada aí, parecendo estátua? — Foi Lenne quem cortou seus pensamentos autodepreciativos, sorrindo daquela forma que aconchegava o seu coração quebrado. — Marilda disse que foi chamada pelo papai e vim o mais rápido que pude... — Lenne cortou as palavras seguintes ao perceber as lágrimas e o semblante desolado da irmã. Aproximou-se e beijou a testa da menina, a puxando para um abraço de mãe. — Ei... Me diz, o que o papai fez dessa vez?
Caelene não conseguiu dizer entre lágrimas silenciosas e apenas queria o carinho da irmã. Lenorah Seabriar, sua terceira irmã, era mais do que os laços sanguíneos poderiam dizer. Apesar de ser apenas três anos mais velha, Lenne sempre agiu como a sua mãe.
A irmã afagou a cabeça da mais nova, levando-a para o jardim florido.
— Papai não pode continuar com essa ideia maluca! — Disse Lenne quando tomou pé da situação. A jovem de cabelos loiros e ar sério como uma mãe levou as duas mãos até a cintura, pronta para protestar. — Casar-lhe com Theodorus Saintrenf? Ora, mesmo que a cerimônia aconteça daqui há três anos, ainda será muito nova... Não quero me separar de você tão cedo! Falarei com papai e me oferecerei no seu lugar, é o melhor a ser feito.
Lenne estava pronta para ir quando a mão de Caelene envolveu o pulso da irmã. Havia parado de chorar, mas o rosto e os olhos estavam visivelmente avermelhados.
— Papai não mudará de ideia, Lenne. Conhece-o tão bem quanto eu. Este casamento, se nada acontecer para o impedir, será realizado com ou sem a nossa aprovação.
— A empurrar de tal modo para os Saintrenf apenas para adquirir mais terras, o papai passou de todos os limites! Eu sinto muito Callie, muito mesmo, se eu pudesse... Oh, juro pelo coração da Deusa Caelene que tomaria o seu lugar!
Caelene sabia que sim. Lenne era a única das irmãs que, durante todos aqueles anos, a defendeu da fúria acumulada do pai. Frerie e Sollie, as duas mais velhas, a odiavam com igual fervor. E mesmo naquele momento no qual as duas irmãs compartilhavam carinho, sobrava espaço para as investidas desagradáveis das preferidas de Bargar.
— Ah, Caelene, você sempre reclama das atitudes do papai. Não vê que esse casamento dará uma nova oportunidade para que continue sendo bem vinda entre nós? Se fizer o que papai pede, tenho certeza que ele esquecerá tudo o que já fez para magoá-lo.
Tudo o que fez para magoá-lo... Consistia em ter nascido?
— Lenorah a mima em demasia. Não poderá ficar a nossa sombra para sempre, sabia? — Zombou a primogênita, Sollie, antes de sair aos pulinhos com a outra irmã. Lenne as encarou de modo azedo até as duas deixarem as dependências do jardim.
— Não liga para elas, Callie. Sollie e Frerie não são desagradáveis apenas com você.
— Mas você não matou a mamãe, Lenne. Sempre será bem vinda mesmo que elas peguem no seu pé às vezes.
— Nem eu e nem você, minha doce Callie. — Lenne a puxou para perto outra vez, afagando os fios brancos incomuns. Até nisso se diferenciava do pai e das irmãs, que eram loiros. Nenhum carregava o estigma de ser amaldiçoado por causa dos fios pálidos, sem vida. — Mamãe não morreu por sua causa. Ela já estava com a saúde frágil.
— E ter decidido me pôr no mundo agravou a situação. — Caelene suspirou. — Papai nem as meninas nunca me perdoarão por tê-la tirado deles. Talvez nem você me perdoe, Lenne. Mas me suporte devido a promessa que fez à ela.
Lenne prendeu os lábios entre os dentes, assumindo uma careta de indignação. Pegou as bochechas da irmã e apertou em reprovação, conquistando um resmungo de dor por parte da outra.
— Nunca mais repita uma coisa dessas! É verdade que prometi à mamãe em seu leito de morte que cuidaria de você, mas eu mal havia deixado os panos quando prometi isso! E mesmo quando os anos passaram e eu entendi a responsabilidade de cuidar de alguém, nunca deixei de estar perto de você. Eu te amo e assim como a mamãe, acredito que a sua presença nesse mundo tem sentido, Callie. Algum dia, você ainda vai tomá-lo para si.
Caelene riu das palavras da irmã, diante de um destino que zombava de seus sonhos e convicções.
— Ao lado de um homem cuja risada assemelha-se à um porco em fuga!? — Lenne riu e balançou a cabeça em negação. — Se eu me casar com Theodorus, o mundo sempre será como uma tela em branco e eu nunca poderei pintá-lo com as minhas cores. — Suspirou a menina em lamentação.
— Eu quero acreditar que sim. Que daqui há três anos, você esteja conhecendo o mundo e não ao lado de Theodorus. Vou rezar todos os dias para que isso aconteça.
À noite, quando as criadas adentraram o quarto de Caelene para arrumá-la adequadamente para a ocasião, a menina pensou nas palavras de Lenne. Três anos a separavam de um casamento infeliz. Três anos para os anéis do destino enrolarem-se em seu pescoço, seja para a guiar para o altar ou para um caminho novo. E se nada acontecesse até lá? E se as palavras do Velho Louco não fossem verdade?
Não sabia dizer ao certo quando o encontrou pela primeira vez. Havia sido em uma fonte de água corrente e ela estava observando o caminho da água quando a figura de cabelos grisalhos aproximou-se e sorriu para ela. Caelene sorriu de volta e o homem lhe ofereceu uma flor.
Todos os dias, Caelene voltava para encontrá-lo. O Velho Louco lhe contou as mais diferentes histórias: Aventuras em uma terra distante, A chegada de seres místicos ao mundo em que vivemos, até mesmo como cada um dos humanos foi moldado com o sopro de vida da Deusa Caelene. Havia as histórias boas e as histórias ruins. Uma delas, estava marcada em suas memórias até os dias atuais. O retorno do Senhor do Caos, que despertaria de seu sono profundo para derramar uma onda de tragédias sobre os seres que aqui viviam.
— Mas... A senhora Olaira não o selou dentro do Caixão Celestial? — Perguntou uma versão mais jovem de Caelene, observando a água seguir o seu caminho.
"Lady Olaira era muito poderosa, sim..." Começava o Velho Louco com um tom de voz solene. "Mas seu coração era muito puro... Ela não estava preparada para a maldade dos humanos."
"Dia após dia, meses após meses, anos após anos e séculos, o Senhor do Caos absorveu a maldade dos humanos, que atravessavam as veias da terra tais quais ratos em uma passagem apertada... O mal o encontrou e o fortaleceu. Ele está pronto para retornar."
"Quando a terra arder em fogo, e os rios secarem, quando as nações forem obrigadas a migrarem para outros locais a fim de garantirem a sua sobrevivência, ele estará à espreita. O mal retornará, com toda certeza, minha filha."
Caelene piscou, olhando para o seu reflexo no espelho perolado. As criadas possuíam mãos milagrosas, transformando o seu vasto cabelo em tranças bem amarradas com fitas de cetim. Vestiram-a com um tecido que imitava as folhas pálidas que atravessavam o seu quarto, seguradas por galhos que desaguavam no dossel da sua cama. Caelene adorava aquele lugar e os detalhes que o faziam ser seu.
— Aposto que nem Lord Theodorus está esperando por tamanha beleza. — Confidenciou uma criada, ao escoltá-la para o lado de fora. Caelene se sentia como um pássaro dentro de uma gaiola apertada nas ancas demarcadas pelo vestido justo. O tecido folhoso moldava e evidenciava a sua silhueta, tornando-a um produto fácil aos olhos do influenciável Theodorus.
Aquele seria o primeiro jantar a ser compartilhado entre as famílias interessadas. Bargar ocupava o centro da grande mesa, levantando a taça para que o criado a preenchesse com vinho de maçã. A direita e muito bem aperfeiçoado, Theodorus paralisou assim que a jovem encantadora adentrou na área de jantar. Ao ser recebida com os lábios abertos do homem que a fitava como um pedaço de carne a ser servida em seu prato, teve vontade de vomitar.
— Aí está ela! — O soberano sorriu, convocando-a. Nem parecia o mesmo homem que a renegou e a renegaria sempre que tivesse a oportunidade.
Caelene obedeceu, pondo-se ao lado do pai. Não olhou para nenhum dos presentes em específico, apenas se dedicou a encarar a decoração. As árvores que rodeavam o espaço foram adornadas com pequenos potes de luz, contendo vagalumes-estrelas, que piscavam, ora clareando, ora obstruindo a sua visão. Observou as folhas desprenderem-se dos galhos, voando lentamente até caírem sobre um prato ainda coberto. Observou o céu estrelado, o cheiro do vento e a luz do luar.
— Por mim, me casaria hoje mesmo. — Theodorus riu, atingindo a todos com a risada pausada e característica. Caelene fez uma careta, enquanto Lenne prendia a risada, lembrando da comparação da irmã. — Aliás, por que devemos esperar tanto para nos casar?
Theodorus encarou Caelene, sugerindo que ela também o encarasse, mas a jovem não o fez. Cortou um pedaço da carne de carneiro e o mastigou, alheia ao que quer que estivesse acontecendo naquela mesa.
— Casamentos não são feitos da noite para o dia. — Explicou Bargar, balançando o vinho. Encarou o líquido amarelo-pálido e o bebeu, sentindo um frescor abrigar a sua garganta. — Tampouco alianças.
Sugestivo, Bargar levantou a taça para Cornelus Saintrenf, pai de Theodorus e a outra parte interessada naquele desprezível acordo. Detentor das terras de Trinity e interessado em adquirir independência territorial, tais ideias ameaçavam a soberania de Bargar. Por isso, um casamento e acordos territoriais conjuntos era o melhor caminho para trazer aquele com ideias de separação para o seu lado, assim continuando a soberania de suas ações.
— E vocês já decidiram onde vão morar? Ah, se eu pudesse, me mudaria para a terra do seu pai, Trinity. Aposto que os ares do campo vão te fazer bem, Cae.
Caelene sorriu sem mostrar os dentes para Frerise, que a encarava com expressão de falsidade. Frerie nunca se dirigiu de modo tão próximo à irmã, tampouco Caelene acreditava naquelas palavras fajutas. A irmã interesseira nunca sairia do conforto que Bargar a proporcionava, e tais palavras mais eram para convencer a mais nova a se mudar para longe, do para ilustrar uma vontade verdadeira.
— Bem, sentirei saudades de casa. — Começou Theodorus, aprumando-se como um falcão. — Mas penso em criar nossos filhos aqui. Afinal eles serão a continuação do legado dos Seabriar.
— Quanto a isso... — Sollie fez um biquinho nos lábios, falsamente triste. — Não acredito que Caelene seja capaz de gerar crianças que possam usar magia, já que nem ela consegue. Ah, desculpa Cae, sei que esse é um assunto delicado pra você e...
— Na verdade, não é. — Caelene segurou o garfo com força, entortando o cabo de prata. — Não posso usar magia e não nego, mas fui agraciada com outros princípios que minhas amadas irmãs nunca poderiam sonhar em ter.
— O que está insinuando, irmãzinha? Que estamos sendo injustas com você? — Rosnou Solarah, encarando-a com azedume no olhar.
Nessa hora, um cavaleiro de elmo dourado adentrou no recinto, pedindo a palavra. Sua respiração denunciava a aflição do rapaz e percebendo a situação, Bargar concedeu.
— Peço perdão por atrapalhar-lhe em tão prestimosa data, meu senhor. Mas peço-te que me acompanhe até o portão principal. Nossos homens identificaram a presença de baderneiros ao redor do Castelo e tememos que eles possam tentar invadir.
— E o que tais baderneiros possuem que uma guarda bem equiparada não pode combatê-los!? — Perguntou Bargar em meio aos gritos preocupados das outras duas filhas.
— Papai, uma invasão no Castelo? Precisa fazer alguma coisa, papai!
— Não posso ser feita prisioneira! — Gritou a outra, levantando-se. Do outro lado da mesa, Theodorus tremia dos pés à cabeça.
Enquanto Frerise e Solarah preenchiam o grande salão com gritos ensandecidos, ao longe, uma explosão potencial calou qualquer indício de barulho que pudesse existir. Os vagalumes-estrelas se chacoalharam, elétricos, como se tentassem fugir da tensão que se iniciava. Uma segunda explosão, esta mais próxima, estremeceu a árvore milenar e incitou as folhas a voarem para longe. Toda a natureza, percebeu Caelene, parecia querer fugir do que estava prestes a acontecer.
E segundos depois, quando rugidos ressonantes ecoaram do negro céu, ela entendeu o motivo.
— O castelo está sob ataque! — Gritou o cavaleiro de elmo. No mesmo instante, um batalhão de homens idênticos ao primeiro circundou o grande salão, emitindo gritos de ordem. Em uma das muitas palavras embaralhadas, Caelene entendeu, o cavaleiro ordenava que as quatro princesas – não pôde evitar o choque por ser incluída nessa alcunha – os seguisse até o local ordenado.
Em um minuto, estava prestes a ser leiloada em favor dos interesses de seu pai e no outro, corria entre os arbustos vivos, enquanto bolas de luz e chamas iluminavam a sua fuga. A maior das bolas luminosas, certamente provinha de seu pai, que tão logo ouviu a primeira explosão, deixou a mesa para comandar.
— Clementhius, isso por acaso é obra daqueles baderneiros? — Perguntou Sollie, ofegante.
— Não sabemos, princesa. Mas ouvi relatos daqueles que estavam em contato direto com os invasores, que diziam que eles estavam tão surpresos pelo ataque quanto nós.
— E não podemos fazer nada? — Insistiu Frerie. — Solarah e eu podemos dar conta desses dragões. Somos as mais aptas depois do papai!
— Meu senhor ordenou que as abrigasse em um lugar seguro. Princesa Caelene? Princesa?
Caelene havia paralisado ao olhar para o céu. Dragões rubro-negros serpenteavam como cobras pelo céu, rugindo e iluminando a noite com chamas alaranjadas. O vento estava quente e sufocante e ao desviar o olhar, Caelene viu as chamas ferozes consumirem as folhas das árvores, onde a barreira celestial não alcançava. Ela sabia que naquele momento milhares de cavaleiros estavam dando a vida para salvar aquele lugar. Seu coração apertou ao pensar na possibilidade de não fazer nada.
— Princesa, correremos riscos se continuarmos expostos. Darei a minha vida para protegê-las se for preciso, mas a melhor opção é levá-las até o abrigo em segurança.
— Vamos, Caelene, não temos tempo para o seu medo! Não ouviu o que Clementhius disse? Ele vai te proteger. Sim, porque é a única que não consegue usar magia.
Caelene fechou os punhos, ouvindo as palavras de Solarah. A irmã não estava errada quando jogava em sua cara sempre que podia a sua inaptidão, mas ela sentia em alguma parte do seu coração, que havia algo que até uma sem talento como ela poderia fazer. Não podia continuar por um caminho que a faria ser protegida.
Pela primeira vez, ela queria proteger.
— Callie! Callie, o que está fazendo? Precisamos ir!
— Não posso ir com vocês, minhas irmãs. — Caelene abriu um sorriso encorajador para Lenorah, a única a apresentar um semblante genuíno de preocupação. — Deve ter algo que até a minha adaga é capaz de proteger.
— Cookie. — Chamou por sua familiar. — Sabe onde encontrá-la, não é? — Escutou um chiado da felina meio coelha meio gata e os seus passos velozes, cortando a névoa.
Caelene ouviu explosões e gritos por onde passou. Seus pés corriam e tropeçaram entre galhos quebrados e a fumaça por muitas vezes a obrigou a parar, atordoada. Se perguntava se suas irmãs haviam chegado bem no esconderijo, quando entre corridas desorientadas e murmúrios de ordem, no meio da fumaça uma silhueta apareceu.
"Quando as lágrimas de sangue a fizerem pensar que não há mais nada que pode fazer, o amor incrustado no cristal a libertará. É aqui que a sua jornada começa, menina."
— Velho louco? — Caelene girava em seu próprio eixo, apertando os olhos e chamando pelo homem que não respondeu. Tudo o que ouvia era o estranho ressoar das palavras proféticas unidas ao rugir dos dragões.
Até aquele som peculiar. Não era Cookie, que repousava em seu ombro com seus olhos avermelhados iluminando a noite esfumaçada. Munida com a adaga cor de sangue, Caelene engoliu em seco e se preparou.
— Quem está aí? — A garota não teve resposta. Apertando ainda mais o cabo da adaga ao ponto de deixar os dedos esbranquiçados, Caelene abriu a boca para perguntar uma segunda vez, mas antes que pudesse proferir uma palavra sequer, o chão abaixo de si vibrou e tremeu, aliado a todas as juntas do seu corpo que desesperadamente tentava a avisar do perigo que corria.
No entanto, o tempo pareceu ter parado no momento em que aquele dragão pousou atrás dela, varrendo os seus cabelos brancos. Caelene arregalou os olhos, obrigando o corpo a se mover e uma gota de suor escorreu preguiçosamente por seu rosto, desprendendo-se de sua pele para desaguar no solo.
E antes mesmo que a gota pudesse se espalhar pela terra úmida, a voz potente daquele que até então estava encoberto pelas sombras ressoou.
— Oh, minhas sombras soberanas, venham até a mim!
Todo o conjunto cenográfico aconteceu em milésimos de segundo. Caelene presenciou a execução da magia em câmera lenta, as sombras rasgavam a névoa, vindo de encontro à ela na forma de uma esfera comprimida e veloz. Seus olhos se iluminaram de escuridão segundos antes da massa esférica passar a milímetros de seu rosto, balançando os seus cabelos pálidos em fúria. Enquanto ela ainda tentava processar o que havia acontecido, o dragão atrás de si se debateu, estremecendo a terra e rugiu. Segundos antes de ser destruído de dentro para fora.
Carcaças do antigo animal voaram para todo o lado, varrendo a névoa para longe com a força do impacto. A lua voltava ao seu protagonismo, iluminando os olhos castanhos que a observavam por trás da máscara delineada. Caelene arregalou os olhos ao vê-lo sem a ocultação da sombra, olhando-o desde o rosto escondido pela máscara, até a palma da mão erguida em sua direção. Seu coração batia desesperadamente rápido e ainda que a névoa desse lugar à luz, ainda sentia-se sem o controle de seu fôlego. Escondido sob a capa preta que ele usava, brilhava um misterioso cristal, na altura do peito oculto, onde batia o coração.
E Caelene não entendeu por que se sentiu tão atraída.
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