Reencontro

Senti meu corpo todo vacilar com o peso daquela memória. Não sei quanto tempo eu fiquei parada na frente daquela parede contemplando os belos desenhos que cobriam-na. Eram delicados, estilosos, autênticos! Eu havia amado cada um deles, mas então meus olhos bateram no desenho de uma borboleta e eu senti o mundo todo girar, um aperto no peito. De repente a imagem estava clara na minha mente e eu fui tomada pelo sentimento de nostalgia. Estava me recordando da vez em que eu tinha ido fazer uma tatuagem com a minha melhor amiga.

 Inspecionei meu dedo médio e percebi com certo assombro que a borboleta ainda estava lá. Como tudo isso era estranho! Eu sequer tinha notado a existência dela antes! Qual eram as outras coisas que eu desconhecia sobre mim, além de toda a informação importante? Pela primeira vez, tentei entender como eram minhas roupas. Calça jeans azul escura, coturnos e uma jaqueta jeans preta sobre uma camiseta branca de gola alta. Deslizei a mão pelo meu couro cabeludo e notei como meus cabelos eram curtos e lisos, castanhos, descendo até a altura da orelha. Uma franja cobria minha testa. Era assombroso perceber como eu nunca tinha me dado conta de tudo isso. São detalhes que você deixa de prestar atenção quando está morta porque eles deixam de ser importantes, mas estava sendo tão incrível me descobrir pela primeira vez! Como eu nunca tinha me preocupado em saber como eu me parecia? 

Um barulho alto interrompeu minha cadeia de pensamento. Passos rápidos cruzaram um corredor. Um som de susto cruzou deixou uma garganta e eu me virei para olhar a quem pertencia.

 Eu teria o reconhecido em qualquer lugar. Ele ainda possuía os mesmos cabelos negros encaracolados e o mesmos olhos azuis que, mesmo parecendo tão assustados agora, jamais me deixariam de ser familiares. Era o menino da loja de conveniências.

Eu também estava assustada. Ao que tudo indicava, ele estava me vendo outra vez e ninguém deveria poder me ver. Talvez, quem sabe, um ou outro esquisitão metido a místico. Decidi ficar bem quieta. Era o melhor até ter certeza que ele estava olhando para mim.

— Como é que você entrou aqui? — senti um leve tom de irritação em sua voz. 

Abri e fechei a boca, sem ter a mínima ideia de como reagir. Nos olhamos por um longo momento, ambos chocados, mas então o micro-ondas apitou outra vez. Como se tivesse saindo de um torpor, ele andou até o dispositivo e retirou uma xícara grande e fumegante de café.

— Eu deixei a porta aberta, certo? — ele perguntou retoricamente. Parecia bem mais calmo agora. — Eu sou descuidado, acontece às vezes. Fico feliz que você seja uma cliente e não uma assaltante. Não estaria me olhando com essa cara de bocó se fosse uma. Ainda bem. Já tive minha cota de assaltos na vida.

 Ele se virou para o balcão e começou a remexer nos potes que estavam sobre ele. Observei silenciosa enquanto ele colocava uma grande colherada de açúcar na xícara. Seu rosto se retorceu de desgosto quando ele provou a bebida.

— Eu odeio café solúvel, cara, mas como não tinha do meu favorito no supermercado hoje isso aqui vai ter que servir. — ele deu um grande gole e fez outra careta. — Desculpa se eu assustei você, não precisa ficar me olhando assim. Você veio fazer uma tatuagem, certo? 

Assenti, sem razão nenhuma. 

— Não precisa ficar assim, o susto já passou. — ele falou usando o tom mais suave que poderia.

— Começamos com o pé esquerdo. — ele secou a mão direita na calça de moletom escuro e a estendeu para mim. — Meu nome é Daniel. Como você se chama?

 Pisquei rapidamente, tentando espantar minha confusão.

— Eu sou... eu.

— Bom, Eu... Eu só aceito pagamento em dinheiro. Já sabe o que quer tatuar?

— A borboleta. No braço. 

Daniel apenas assentiu e fez um gesto com as mãos, apontando para um banquinho perto da maca. Obedientemente, eu me sentei. A ansiedade consumia cada pedaço do meu corpo enquanto eu o observava preparar os equipamentos. Como dizer que seria um terrível desperdício, já que eu não possuía uma pele para ser marcada? Mais do que isso, havia um requinte de ansiedade pulsando dentro de mim. Ele não parecia um maluco metido místico e eu nunca tinha falado com ninguém que tivesse me visto antes. Que direito eu tinha de fingir que era uma pessoa? Mais do que nunca eu quis evaporar, mas finquei meus pés no chão e me obriguei a ficar quieta. De alguma forma, eu sabia que a razão por trás de toda confusão que havia me levado até ali era aquele rapaz. Daniel borrifou álcool em um algodão em formato de disco e se voltou para mim.

— Estenda o braço pra mim. Eu preciso desinfetar o local. 

Obedientemente, eu coloquei meu braço sobre a maca. Daniel se inclinou na minha direção e eu tive a súbita percepção que ele estava perto o suficiente de mim para eu que eu pudesse sentir o hálito dele se eu tivesse em posição de ter sensações. O algodão estava a centímetros da minha pele quando ele fez um gesto rápido, deslizando-o em sua direção. A mão dele afundou com tudo dentro do meu braço. Assustado, ele tirou a mão depressa. Ficou olhado para o meu braço, confuso. Vi seus dedos se estenderem na tentativa de me tocar, mas eles me atravessaram outra vez e encontraram apenas o tecido preto da maca. Daniel estava tão perplexo quanto eu. Ele se afastou de mim depressa e seus olhos me fitaram, assombrados

.— Quem é você?

— Essa é uma pergunta que eu venho tentando responder a anos. — minha voz soava cansada aos meus ouvidos, mas havia tanta serenidade nela que me assustou. — Mas, em poucas palavras, basta dizer que eu não sou como você.

— Não é... Como eu? — ele repetiu lentamente. 

Assenti com um suspiro cansado.

— Eu não estou viva, bobinho.



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