23. Feridas abertas
Percorreram o caminho todo em silêncio, não havia o que ser dito, todo o clima de descontração de minutos atrás tinha ido para o espaço. O semblante severo que Gregory deixava Elisa intimidada, de certo modo. Ele nunca se mostrou tão sério como estava naquele momento. As mãos apertavam o volante tão forte que os nós dos dedos ficaram brancos, e ele sequer percebeu a velocidade que estava, já tinha ultrapassado os limites.
Elisa o encarou, alarmada com aquela atitude dele.
— Gregory, vai devagar. – Pediu – Você está correndo demais.
Ele não respondeu, apenas respirou fundo e tirou o pé do acelerador, diminuindo um pouco a velocidade. Apenas um pouco.
A noite tinha ido por água abaixo, Gregory não acreditava que aquilo estava acontecendo. Tinha começado a noite tão bem e agora estava indo para casa, sem o menor ânimo para chegar lá.
Ele amava o irmão, amava mesmo, como um pai, mas a mania dele se meter em tudo o irritava. Nicolas era do tipo protetor e às vezes exagerava de uma forma que era sufocante, ele queria controlar tudo, fazer todos felizes e sem dificuldades ou tristezas, mas a vida não era assim. Ninguém nunca passa pela vida sem sofrer ao menos um pouco.
Gregory se perdeu tanto em seus pensamentos, que não percebeu que ia em direção à uma barreira que a polícia fazia mais à frente. Só despertou do devaneio quando ouviu Elisa gritar:
— Gregory, cuidado!
Ele tentou frear o carro, que ainda estava em alta velocidade, mas a pista escorregadia não ajudou muito, continuou deslizando até atingir alguns cones, os atropelar, arrastar e passar por cima. Ele tentou atabalhoadamente controlar o carro, que derrapava na pista e só conseguiu alguns segundos depois, parando atravessado no meio da avenida. Gregory encarou Elisa, com os olhos arregalados, como se pedisse desculpas. Aparentemente a polícia formara uma blitz e ele havia furado o bloqueio.
Poucos segundos foram necessários para escutarem um policial batendo no vidro, Gregory o abaixou e quando uma lanterna foi mirada diretamente no seu rosto, o virou de lado, evitando a luz forte.
— Documentos, por favor. – Pediu o policial.
Silenciosamente Gregory obedeceu, já sabendo o que vinha pela frente...
O homem analisou os papéis em sua mão e voltando o olhar incrédulo para Gregory, sibilou:
— Alteza?
— Sou eu.
O policial pareceu meio incerto do que fazer, olhou para trás, como se buscasse ajuda de um superior e logo um outro homem se aproximou, analisou os documentos e fez a mesma expressão de surpresa e dúvida. O coração de Gregory batia forte, nunca tinha se metido em uma encrenca daquelas. Será que tinha chances de sair impune?
Mas todas esperanças se dizimaram quando ouviu o superior do policial dizer:
— Pode sair do carro, por favor, senhor Lambertini?
Lentamente ele obedeceu e parou em frente ao homem, Elisa também saiu do carro e observava a cena apreensiva. O policial virou Gregory de costas, o fez inclinar e deitar o tronco sobre o capô do carro e puxou suas mãos para trás, dizendo:
— Sinto muito, alteza, mas a aplicação da lei não exclui membros da família real, o próprio rei assinou a lei autorizando.
Gregory foi algemado e conduzido até a viatura da polícia, tudo sem dar uma palavra sobre o que havia acontecido, estava irado e se atrevesse a abrir a boca, seria capaz de adicionar mais uma acusação sobre si. Desacato.
Elisa também entrou na viatura, a fim de acompanhá-lo. Se limitou apenas a encará-lo, mas também não disse nada. Aquela noite não poderia ficar pior, começou em um karaokê e terminaria em uma delegacia.
"Às vezes eu odeio o senso de justiça do Nicolas", pensava Gregory.
Chegando à delegacia foi autuado e teve direito à uma ligação, que era óbvio, ele gastou ligando para o irmão, por mais que naquele momento só pensasse em enforcá-lo. Foi conduzido até uma sela e ficaria lá até que pagasse a fiança. Elisa não o deixou sozinho uma única vez e por mais que não fosse presa junto com ele, ela se sentou do lado de fora da sela. Ficaram em silêncio alguns segundos, até Gregory dizer:
— Me desculpe.
— O quê? – Perguntou ela, confusa.
— Estraguei sua noite. Me deixei levar por emoções, não deveria me importar com o que aconteceu.
— Tudo bem. Eu te entendo, não deve ser fácil lidar com isso.
— Isso o quê?
— Francis me contou sobre Monique.
— Linguarudo. – Resmungou ele, encostando a cabeça na parede.
— Você ainda gosta dela?
A pergunta súbita de Elisa, pegou Gregory desprevenido. Ele esperaria qualquer pergunta, menos aquela. Ele não saberia responder nem se sim, nem se não. Na verdade, era tudo muito confuso, um misto de sentimentos impossíveis de se decifrar.
Ainda gostava de Monique?
— Eu não sei. – Respondeu, por fim.
— É que você ficou tão perturbado perto dela... Pensei que gostasse.
— Já gostei muito dela, mas... Não é a mesma coisa. É diferente, foi tudo tão... Intenso.
— Abusivo, você quis dizer. – Gregory a encarou com um pouco de raiva e então ela completou – Você não consegue ver, não é?
— Por que todos dizem isso?
— É porque foi assim.
Ele suspirou e se acomodou naquela cama dura que ali ficava.
— Talvez. Talvez tenha sido. De qualquer forma já passou. Droga, não deveria me importar! Olha onde acabei te trazendo!
— E eu já deveria ter superado. – Resmungou ela, com a cabeça baixa.
— O que disse?
— Meu padrasto. Minha mãe vivia na delegacia indo pagar suas fianças e tirá-lo de lá.
— Claramente um mal caráter então.
— Sim. – Elisa balançou a cabeça e se recostou na parede, com um olhar distante – Ele era meu maior pesadelo.
Aquilo, de certa forma, alarmou Gregory. Como assim o maior pesadelo de Elisa? O que ele fazia com ela?
De repente, um sentimento ruim se acumulou em seu peito e ele se pegou temendo por ela, temendo pelo que passou e estranhamente se sentindo culpado por não poder protegê-la.
Por que isso agora?
— O que ele te fez? – Conseguiu perguntar.
— Era agressivo demais, minha mãe vivia marcada. E quando eu tentava defendê-la, sobrava para mim. Mas eu era só uma criança!
— Ele te fez algo mais?
— Se está se referindo a abuso, não. Pelo menos isso. Quando minha mãe morreu, eu percebi que ficaria sozinha com ele e seria o inferno, então eu fugi. Vivi na casa de parentes, mudando constantemente. Ele não se importou em me procurar, tampouco meus parentes se preocuparam em me tratar bem, eu era a órfã sem importância e sem casa, tinha que me contentar com o que me era oferecido. Sempre ficava com os restos. Nunca fui incentivada a nada, nem a estudar, mas fiz por conta própria porque queria dar um futuro melhor para mim mesma... E é por isso que nunca paro em lugar algum. Porque sou acostumada a viver cada hora em um lugar diferente, não tenho um lar fixo. Nunca tive.
Gregory escutou tudo atentamente e em silêncio, não sabia o que dizer naquela hora. Não tinha o que dizer. Mais uma vez percebeu o quanto tudo era muito injusto. Ele crescera em uma família amorosa, que fazia de tudo para vê-lo bem, dava tudo o que ele queria, cercado de luxos e riqueza, e ela... Elisa não tinha nada.
Mas o que o impressionava era o fato dela ter passado por tudo aquilo e mesmo assim continuar com um bom humor quase indestrutível. Ele nunca a ouvira reclamar ou xingar. Elisa não se deixava abater, ela enfrentava tudo com bravura e isso era o que fazia dela alguém forte. Era sua própria paladina.
Era alguém que tinha sua luz e que iluminava todos que estavam ao seu redor, conseguia trazer felicidade, aos dias mais escuros e chuvosos. Mesmo tendo passado por tudo aquilo, Elisa era o próprio sol.
— Me desculpe. – Sussurrou ele, novamente – Não queria te trazer essas lembranças.
— Tudo bem.
— Nunca pensaram em denunciar? Seus vizinhos nunca ajudaram?
— Ninguém se importava, e de qualquer forma, minha mãe sempre voltava para o Ernest. Dizia que o amava.
— Isso não é amor. – Concluiu Gregory.
Ela nada respondeu, apenas respirou fundo e fechou os olhos, procurando afugentar aquelas imagens de sua mente. Logo sentiu a mão de Gregory tocar a sua, olhou para trás e o viu encostado na grade da cela, mas sua mão a transpassava, apenas para estar em contato com a dela.
Ficaram ali até, minutos depois, Nicolas chegar acompanhado de um policial. A expressão no rosto dele era simplesmente assustadora, escondia uma raiva contida e seu olhar foi capaz de fazer Elisa estremecer. Ali era percebeu... Nicolas Lambertini não a aprovara.
Ele não deu uma palavra sequer, apenas esperou o policial abrir a cela para Gregory sair, o que indicava que a fiança havia sido paga. Nicolas encarou o irmão por alguns segundos e depois voltou pelo corredor de onde tinha vindo, tudo isso em um silêncio ensurdecedor.
Ao chegarem na entrada da delegacia ele se virou para Elisa e de modo grave proferiu:
— Meu motorista a levará para sua casa, tenha uma boa noite, senhorita Romani. Gregory, venha comigo.
Ele caminhou para o outro lado da rua, entrando no carro que antes Gregory dirigia. Logo ela se despediu de Gregory e entrou no carro que a esperava.
Romani. Ela não havia dito o sobrenome para ninguém, nem mesmo Gregory, mas Nicolas Lambertini havia descoberto isso. Não era de todo difícil descobrir, mas seguindo esse raciocínio, isso mostrava que ele havia investigado sobre ela. Estava ferrada.
No outro carro o clima não era nada bom, Nicolas estava furioso e o tamborilar de seus dedos no volante só reforçava essa ideia. Resolvendo adiantar a discussão, Gregory logo disse:
— Vai, pode começar seu sermão.
— Irresponsável. – Foi tudo o que seu irmão proferiu.
— Sério? Só isso?
— Por quê? Prefere que eu comece a falar e só pare daqui uma hora? Essa palavra já resume tudo o que eu tinha para dizer.
— Não foi minha culpa, a pista estava escorregadia!
— Não foi sua culpa?! – Explodiu Nicolas – Estava a 100km/h numa via de 60km. Ainda acha que não é sua culpa?
— Eu me distraí, está bem? Foi um descuido.
— Um descuido custa uma vida muitas vezes, Gregory. No carro não é lugar para devaneios.
— Eu não estaria assim se você não se metesse na minha vida. – Bradou Gregory, com a voz elevada.
Nicolas o encarou por alguns segundos e depois voltou o olhar para a estrada e perguntou:
— Do que está falando?
— Da Monique, Nicolas. Você a fez terminar comigo. Achou que ia me esconder por quanto tempo?
Um silêncio se estabeleceu ali e Gregory observou o irmão apertar mais o volante e trincar a mandíbula, uma veia começou a saltar em seu pescoço. Aquilo não era bom sinal.
— Encontrou com ela, não é?
— Encontrei. Agora me explica porque fez isso!
— Foi para seu próprio bem.
— Meu bem? Você interferiu na minha vida.
— Ah, e até quando ia ficar aguentando aquilo? – Respondeu Nicolas ríspido – Você fazia tudo o que ela queria. Ela pisava e te usava como queria.
— Isso não é verdade...
— Para, Gregory. Chega! Para de negar algo que está bem na sua frente e só você não quer ver.
— Você a ameaçou!
— Não a ameacei, dei a ela opções. Ou parava de te tratar daquela forma, ou íamos nos entender no tribunal.
— Ameaçou processá-la?
— Agressão gera processo, se você não sabe, ainda mais com um membro da família real.
— Devia ter me deixado cuidar disso.
— Ah, claro! O que ia fazer? Deixa-la acertar outro copo na sua cabeça? – Debochou Nicolas.
— Já disse que não foi nada demais, foi um acidente.
— Gregory, você levou pontos na cabeça por causa da Monique, duvido muito que arremessar um copo de vidro no outro seja acidente. Se quer saber de uma coisa eu não me arrependo do que fiz, nem por um segundo. Talvez eu tenha sido precipitado, mas se tivesse que fazer tudo de novo, eu faria. Simplesmente porque não aguentava mais ver você naquilo, não aguentava mais ver a mamãe sempre preocupada com você. Porque você insiste em achar que as pessoas só têm um lado bom.
— Por que você é tão cético? – Gritou Gregory, indignado.
— E por que você é tão ingênuo? Que coisa, irritante! – Rebateu Nicolas, irritado – Abra os olhos e veja que existe maldade nas pessoas, em toda e qualquer pessoa, ninguém é cem por cento bom, Gregory.
— Da mesma forma, ninguém é cem por cento mau.
— Eu sei disso, concordo com você. Mas seu problema é achar que não vão fazer nada de mal, é depositar uma confiança cega em todos quando, na verdade, as pessoas só querem tirar vantagem. Não estou dizendo que todos que se aproximarem de você farão isso, mas tem que aprender a ter o mínimo de desconfiança... Você não quer enxergar um lado ruim, mas ele existe. Para de viver nesse mundo de fantasia.
— Consigo enxergar seu lado ruim. – Resmungou Gregory, cruzando os braços.
— Agora consegue ver? Quando te convém você consegue ver? Não estou sendo ruim, estou tentando abrir seus olhos. Não falei nada mais do que a verdade.
Gregory apenas bufou e se recostou no banco, não queria mais discutir.
Ao chegar em casa, sua mãe o esperava na sala de estar, ela estava ansiosa e seu rosto revelava uma preocupação genuína. Ao vê-lo, ela correu ao seu encontro e o abraçou apertado. Naquele momento, Gregory se sentiu um pouco culpado por trazer tanta preocupação a sua mãe.
— Eu fiquei tão assustada. – Disse Susana, e se afastando começou a analisa-lo e perguntou – Você está bem? Se machucou?
— Não, não me machuquei. Foi só um susto. – Respondeu ele, com o rosto dela entre as mãos – Me desculpe, mãe. Não queria te deixar assim.
— Não faça mais isso comigo, por favor. Não tenho mais idade para aguentar certas emoções.
— Eu prometo.
Gregory ainda ficou alguns minutos abraçado com a mãe, tentando acalmar a mulher chorosa, ela realmente ficara assustada com aquele "acidente", e ele prometeu a si mesmo que não cometeria o mesmo deslize novamente.
Ele não gostava de ficar brigado com o irmão, sendo assim, o procurou no dia seguinte e tiveram uma conversa que durou cerca de duas horas. A conversa não girou em torno só disso, óbvio, mas era sempre bom passar um tempo com Nicolas. A reação exagerada dele, era só um mecanismo de proteção, ele não sabia reagir de outra forma se não xingando e gritando, mas era algo no qual ele vinha trabalhando há um certo tempo, Nicolas já melhorara muito em comparação ao que era.
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