🔹Capítulo I🔹

𓁭 Guilherme 𓁭

— Uh, she's a beast. I call her Karma. She eat your heart out like Jeffrey Dahmer... — canto e danço diante do volante, enquanto o sinal de trânsito está fechado.

Uma moça no carro ao lado me olha esquisito, mas não dou a mínima. Estou feliz demais para me preocupar com a impressão alheia sobre mim.

A felicidade está tão incrustada em meus ossos quanto ontem pela manhã quando recebi a ligação do doutor Ernesto Houston — arqueólogo inglês influente e meu antigo professor de doutorado — me perguntando se eu poderia ser o encarregado pela exposição de sua última descoberta que é uma das mais importantes até o momento até a noite quando simplesmente comecei a dançar como doido no meio da sala e fui flagrado pelos meus melhores amigos que também são meus vizinhos.

Talvez eu possa dizer que hoje é o melhor dia da minha vida. Eu, Guilherme Alves, com apenas 26 anos de idade, o mais novo doutor e especialista em história egípcia e pesquisador chefe do Museu de História Regional & Global Alberto Drumond serei o responsável pela exposição do reinado da rainha Safyia I e uma das maiores relíquias da deusa mais poderosa do Egito que pode dar mais vigor a minha tese de doutorado do ano retrasado.

Ficarei frente a frente com a estátua da tenebrosa lenda da maldição de Ísis. Isso é tão surreal!

Com euforia e alegria ainda correndo pelas minhas veias, estaciono o meu SUV preto na vaga destinada a mim. Dançando sob o olhar de curiosos com a minha playlist aleatória no fone e a mochila jogada sobre um ombro me dirijo radiante para meu trabalho.

— Bom dia, doutor Guilherme — Manuel, o segurança da entrada me cumprimenta com seus costumeiros cabelos grisalhos e sorriso humilde — Está feliz hoje.

— Bom dia, senhor Manuel! O dia hoje está esplêndido! Maravilhoso! Radiante!

O senhor apenas deu risada da minha euforia e voltou ao seu posto. O museu é uma grande mistura de modernidade com a estrutura clássica colonial construída quando a cidade ainda não passava de uma simples colônia, sua construção imponente dá destaque ao centro de Aracaju, que no meio do corre-corre dos compradores e vendedores emana a história e riqueza cultural regional, brasileira e global.

Logo na recepção meus amigos me aguardam com seus corriqueiros cafés em garrafas térmicas. Mesmo com o calor de 30° ainda é de lei o café matinal.

— Acordou só felicidades, quatro olhos? — Gustavo cumprimenta com seu costumeiro insulto amigável.

O filho de um empresário japonês e uma brasileira — descendente de japoneses —  alto e de cabelos escuros é um verdadeiro pé no saco às vezes, mas um bom amigo. Nos conhecemos no doutorado  em Londres, fomos colegas de quarto por dois anos e não faço ideia do porque o doutor em mitologia e história asiática resolveu se empregar aqui no primeiro museu amplo do pequeno estado de Sergipe, mesmo tendo renomados museus de São Paulo, Japão — sua terra natal e onde cursou a faculdade — e Coréia do Sul aos seus pés.

— Quem não acordaria assim quando vai ser o cabeça da exposição mais aguardada? — Felipe retruca, me entregando um copo de café. — Certeza que a promoção para diretor vai ser sua.

Eu e Felipe somos amigos desde o primeiro ano do fundamental e nos graduamos em história juntos na melhor faculdade do estado. Somos melhores amigos, praticamente irmãos, uma vez que seus pais faleceram em um acidente de carro quando estávamos indo para o primeiro ano do ensino médio e ele foi praticamente adotado por meus pais e criado ao meu lado junto com minhas três irmãs.

— Isso se o playboyzinho do Roberto não ser favorecido pelo papai baba ovo dele — Gustavo resmunga vendo o rapaz caminhar pelo mezanino do primeiro andar ao lado de Janaína, minha ex-namorada e responsável pelo adorável par de chifres em minha cabeça.

— A única coisa que ele tem como trunfo é a família rica, por que a inteligência não existe naquela cabeça gigantesca — Felipe ressalta.

— Ele conseguiu roubar a namorada do Guilherme, por que não  pode fazer o mesmo com o maior cargo do museu?

— Uma coisa é o cargo e a outra é aquela piranha traidora — Felipe diz fuzilando a moça com os olhos. Nós começamos a nos dirigir a sala de funcionários, quando esses dois se unem para falar mal de alguém não há o que intervir.

— Continua tão venenoso quanto na época em que namorávamos, bombonzinho — Gustavo cutuca fazendo o moreno e eu rir.

Eles tiveram um breve namorico logo quando Gustavo se mudou para a cidade e ficou hospedado no meu apartamento. Eu segurei tanta vela naquela época que brilharia muito mais que a companhia de energia.

— Vocês são uns fofoqueiros desgraçados, viu? — digo e eles apenas acenaram em concordância e orgulho. Eu realmente não dou a mínima para a promoção, amo meu trabalho. — O que tiver que ser, será e se ele levar o cargo, espero que faça o melhor pelo museu.

— A exposição desativou toda a sua amargura e coração de gelo que você tinha? Quem é você? — Felipe arqueia uma sobrancelha.

— Só estou mantendo meu bom humor, pela felicidade da minha nova tarefa.

— Se ele ganhar a promoção espero que ele engula ela e se entalei até ficar roxo — Gustavo diz deixando sua mochila no seu armário.

— Você é um ser humano peculiar, japa.

— Estranho, você quer dizer — Felipe retruca.

— Eu sou é um gostoso — ele responde convencido. — Melhor irmos, os pirralhos do passeio escolar de hoje chegam em vinte minutos.

— Por favor não faça nenhuma criança chorar com lendas maléficas, a exposição egípcia é logo depois e eu não tô afim de ter que acalmar crianças e lidar com pestinhas ao mesmo tempo.

— Não prometo nada, quatro olhos — o asiático saiu erguendo os braços em falsa rendição sendo seguido por Fellipe que tenta não rir do meu desespero.

Hoje será um dia e tanto.

𓁭 𓁭 𓁭

— A lenda da maldição de Ísis foi uma grande especulação mitologia que com base nos estudos mais recentes dos arqueólogos sobre a história religiosa desse povo — as crianças uniformizados me ouvem e observam toda a ala de mitologia egípcia facinadas. — O famoso mito escrito nos mais antigos papiros diz que Ísis, tomada pela sede de grandeza e desejando todo poder maior, envenenou o Deus Rá por uma picada de serpente o fazendo cair muito doente.

"Em seu leito de morte, Ísis lhe ofereceu a cura com um tônico preparado por ela mesma que se destacava entre uma dos poucos deuses com conhecimentos apurados sobre ervas medicinais com a condição de que o Deus sol revela-se seu nome verdadeiro.

Rá aceitou e como prometido revelou seu nome verdadeiro a deusa, além de dar-lhe ainda mais poder. No entanto, Seth denunciou sua má conduta. Rá ficou furioso por ter sido enganado e quase ter morrido, e transformou a deusa em uma estatueta e a jogando diretamente para o esquecimento nas profundezas do rio Nilo."

— Tio, eu li uma notícia que uma estatueta da deusa virá para o museu — uma menina com cara de quem também é fissurada pela cultura egípcia pergunta com os olhos brilhantes. — Seria a mesma estatueta do mito?

— Bem, eu não posso me aprofundar muito nessas informações no momento, mas os arqueólogos que descobriram o túmulo afirmam que os hieróglifos nas paredes do local indicam isso. — Nós estamos no final da excursão, os olhares curiosos se voltam para mim do jeito que eu desejava. — Se quiserem saber mais sobre isso, vocês podem comparecer na nossa exposição especial neste sábado — as crianças  bufam indignadas que não darei mais respostas, me arrancando um sorriso. — Com isso finalizamos todo o nosso tour pelo Museu de História Regional & Global Alberto Drumond, espero que tenham gostado do nosso passeio. Por favor, acompanhem seus professores em ordem. Obrigada e bom dia, pessoal.

Com sorriso nos rostos e cumprimentos cordiais as crianças seguiram seus três professores responsáveis para descer ao térreo.

Uma das minhas maiores felicidades como um historiador e pesquisador é ver crianças como essas — e até adultos — andando pelos corredores do museu e ver que realmente se importam em compreender a fundo a história e os conhecimentos em entender de onde veio e pelo que sua espécie passou, para no final colocarem suas cabeças para pensar e tirar suas próprias conclusões sobre o que querem para seus futuros e quais erros não cometer novamente.

Uma vibração indicando uma nova chamada no meu celular me tira dos meus devaneios. O visor indica em letras brilhantes o nome da minha irmã caçula Giovanna.

Quanto você quer para escrever meu trabalho do colégio sobre a rainha Nefertari? — ela diz do outro lado da linha sem nem ao menos um bom dia.

— Bom dia para você também, mal educada — ela bufa, se pudesse vê-la com certeza estaria revirando os olhos.

E então? Quanto quer?

— Nada, porque eu não vou fazer. Seu trabalho, suas preocupações.

Qual é Gui?! Só preciso de uma pesquisa de três páginas sobre isso ou vou reprovar em história.

— Então pesquise, oras. A internet e os livros estão aí para isso.

Sabe como eu odeio história — ela resmunga. — Qual a graça de ter um doutor em história egípcia na família se eu não posso usá-lo ao meu favor nos trabalhos?

Todo o discurso sobre como admiro a importância do gosto pela história parece que só veio a minha cabeça e deixou de lado minhas irmãs, principalmente a Giovanna, mas já era de se esperar isso com a predisposição da árvore genealógica profissional da minha família.

Meu pai, Gilberto, é fisioterapeuta da marinha. Minha mãe, Aurora, é professora universitária do curso de licenciatura de matemática na mesma universidade em que estudei. Minha irmã mais velha, Alice, é fisioterapeuta na marinha como meu pai. Minha irmã mais nova, Anna, é estudante de licenciatura em matemática. E por último a caçula Giovanna, é prodígio da matemática — ganhou as duas olimpíadas de matemática que participou —, estudante do segundo ano do ensino médio, mas também quer seguir a mesma carreira da minha mãe.

No meio do mar das ciências biológicas e exatas, sou o único da família que sempre dominou bem as áreas de humanas.

Vamos lá, Gui, me ajuda! — Giovanna implora mais uma vez, me fazendo respirar profundamente. Não sei dizer não a essa chata.

— Venha para o meu apartamento hoje às seis. Vou te dar o material mais facilitado e você se vira para escrever.

Valeu, maninho! Te amo. — ela cantarola e desliga.

— Deixa eu adivinhar — Felipe se aproxima com um sorriso zombeteiro para minha expressão desgostosa. — Giovanna conseguiu te fazer de escravo intelectual dela de novo.

— Essa garota não larga do meu pé toda vez que se fala em tarefas de história — resmungo me arrastando para meu armário. Tenho uma hora até encontrar o doutor Houston na universidade. — Como você sabia?

— Porque ela ligou para mim para pedir a mesma coisa e eu lembrei ela que é você o escravo intelectual dela.

— Arrombado, só não te bato porque preciso correr para encontrar o doutor Houston — ele gargalha e passo minha mochila sobre meus ombros para correr.

A universidade que estudei — que é uma das parceiras de desenvolvimento de pesquisa do museu — não fica tão longe do trabalho, mas o trânsito nesse horário e o sol das onze horas da manhã não é para qualquer um. Antes que eu chegue ao estacionamento sinto meu celular vibrar e o visor indica uma chamada da minha mãe. Ela já deve está em casa.

— No que posso ajudá-la, senhora Aurora?

Você não vai acreditar no que acabei de descobrir — a voz dela reverbera pelo aparelho em revolta.

Ok, talvez, apenas talvez ter crescido  sendo o confidente das fofocas da minha mãe tenha me feito um amante da história. Quem não gosta de uma boa informação alheia?

Sem perda de tempo ela se põe a me contar sua descoberta, que segundo ela é o feito "de maior sem vergonheza" que Juliana — sua colega, ou melhor sua inimiga, de trabalho — praticou. Tudo isso enquanto prendo o celular no suporte e a coloco no viva voz para dirigir e escutá-la ao mesmo tempo.

E você acredita que foi ela que mexeu nas minhas anotações para a aula que ia ministrar na semana passada e sumiu com cinco dos pilotos da minha sala? E calma que piora! Aquela desavergonhada da mulesta veio com cara de sonsa sentar do meu lado na reunião dos professores e dar indiretas sobre as minhas dinâmicas de aula. Que sem vergonha! — ela dá um tempo para respirar com toda a sua indignação depois de 40 minutos xingando até a quinta geração da mulher.

— Oxente e o que a senhora fez?

Expuz a todos como meus alunos tiveram grande taxa de aprovação na minha disciplina e na dela só passaram dois pobres coitados de tão mal que ela ensina, para ver se ela para de ser tão descarada e dá aula de verdade daqui para frente.

— Essa é a minha mãe! — exclamou entre gargalhadas.

Aquela sonsa acha que pode me criticar, mas não pode mesmo! — ela retruca rabugenta — Eu ensinei matemática e física a todos os meus filhos e todos são maravilhosos nas matérias!

Quando ela diz "todos" ela se refere mais especificamente as minhas irmãs Anna e Giovanna. Eu e Alice estamos só um pouco acima da média, nada muito surpreendente, mas quem sou eu para cortar a boa visão da minha doce mãe?

— A senhora é maravilhosa, mãe. Eu vou ter que desligar porque vou encontrar o doutor Houston para almoçar e dar uma olhada nos artefatos. Te ligo mais tarde.

Está certo, meu filho, boa sorte nisso tudo. Você vem jantar aqui hoje?

— Acho que não vai dar, vou sair correndo da universidade para ajudar Giovanna em um trabalho e tenho uma pilha de material da exposição para terminar de organizar e ler.

Aí esses filhos ocupados — de lá resmunga. — Então está bom, mande Felipe vir jantar aqui, faz tempo que não me visita.

— Eu não sei se ele vai...

Não quero saber, diga a ele que estou mandando ele jantar comigo. Sou madrinha dele e criei ele, preciso ver meu outro bebê. — ordenou e simplesmente deligou.

Essa senhora é uma grande fofoqueira mandona. Giovanna tem a quem puxar.

A universidade que estudei é gigantesca e imponente, quando a vejo sinto de novo aquele frio na barriga de um empolgado calouro e uma vontade de retornar a essa época me atinge, porém quando lembro das noites em claro, pilhas de livros, provas, seminários e vários momentos em que quase morri por puro stress toda a vontade evapora como gota d'água no deserto.

Cumprimento desconhecidos por educação no caminho até o ponto de encontro com o doutor. O senhor grisalho, baixinho e barrigudo está em frente ao refeitório observando o fluxo de universitários, suas corriqueiras botas, chapéu e colete de explorador estão impecáveis quanto me lembrava. A primeira vez que estive de frente com Ernesto foi na minha primeira aula no doutorado, o senhor com vibe de Indiana Jones fascinou a turma com seu jeito único e humilde de transmitir seu conhecimento.

See if it's not the young boy, Guilherme! Good to see you boy. (Veja se não é o jovem rapaz, Guilherme! Que bom te ver rapaz.) — ele cumprimentou em sua língua materna, vindo até mim com um abraço caloroso.

I'm even happier, teacher! And thanks again for thinking of me for this task. (Eu fico mais feliz ainda, professor! E mais uma vez obrigado por ter pensado em mim para essa tarefa.)

Don't thank me anymore, Guilherme, you nearly cried on the phone that day. (Não me agradeça mais, Guilherme, você por pouco não chora no telefone naquele dia.) — ele zomba — Come on, I want you to see it up close, it's magnificent. (Venha, quero que você a veja de perto, é magnífica.)

Don't you want to have lunch first? I know a very good restaurant here... (O senhor não quer almoçar primeiro? Conheço um restaurante muito bom aqui...)

Ele mal esperou eu terminar de falar e simplesmente saiu a frente em direção ao bloco de história e arqueologia. Eu acho que isso é um não.

A "cidade universitária" como era bastante conhecida é dividida em quatro alas — ciências biológicas, exatas, humanas e linguagens — e cada uma é dividida em blocos que comportam cursos com linhagens curriculares semelhantes. O bloco de história é anexado juntamente com a arqueologia, uma vez que ambas têm interesses semelhantes e por isso conta com cinco galpões de porte médio para simulações de sítios arqueológicos que fossem feitas. Doutor Ernesto se posiciona a frente de uma trava digital no galpão 5 entre dois guarda-costas enormes.

Ele digitou furtivamente uma sequência de sete números, fazendo a porta de aço destrancar. O senhor fez uma expressão empolgada adentrando no local, enquanto eu o sigo com a ansiedade revirando meu corpo. As luzes automáticas acendem e o doutor me entrega um par de luvas de látex.

Lá está ela.

Magnífica sobre um púlpito de mármore e protegida por um vidro de segurança, a estatueta de Ísis tem todas as características da deusa em detalhes, mas diferente de muitas comuns já vistas em tumbas, essas é feita de puro ouro, a asas são de safira, enquanto sua coroa é uma mesclagem de rubi e ouro.

— Uau! — É a única coisa que pode sair da minha boca perante tal obra de arte. O doutor Ernesto abre o vidro de proteção.

Feel how the texture across the entire length of the piece is varied. (Sinta como a textura em toda a extensão da peça é variada.) — o professor diz.

Can I really touch her? (Posso mesmo tocar nela?)

Go ahead, boy. (Vá em frente, rapaz.)

Meus dedos trêmulos encostam na estatueta e as texturas são impressionantes. De repente um frio tomou conta de todo meu corpo e sinto meus pelos se eriçarem, uma sensação de que uma terceira pessoa está presente domina meu corpo.

O reencarnado...

Uma voz feminina sussurra em meu ouvido deixando toda a orelha gelada. Minhas mãos se afastam instintivamente quando sinto um choque percorrer-las.

O reencarnado...

Novamente a voz retorna.

Did you hear that? (O senhor ouviu isso?) — questiono ao doutor olhando para todos os lugares.

Heard what? (Ouviu o que?) — o doutor me olha confuso. Meu coração começa a bater como um louco. — Are you okay, Guilherme? (Você está bem, Guilherme?)

Que diabos foi isso? Eu juro ter ouvido alguém sussurrar em meu ouvido. Meus olhos se estreitam para o senhor ao meu lado fechando o vidro.

Será que esse velho está tentando me assustar?

Não, acho que não. Eu fiquei até tarde lendo os relatórios arqueológicos ontem a noite. Foi o cansaço me pregando peças.

I'm very excited for this exhibition. (Estou muito animado para essa exposição.) — Ernesto diz me dando a deixa para sair do galpão.

Me too, I've barely been able to sleep well since that day. (Eu também, mal consegui dormir direito desde aquele dia.)

Antes que eu pudesse deixar o galpão aquele mesmo frio repentino arrepiou minha espinha novamente, me deixando alerta e com apenas um pensamento na cabeça:

"Por tudo que é mais sagrado, eu sou jovem demais para ficar louco! E eu nem sou arqueólogo para ter assombração no meu pé! Vai de retro satanás!"

O senhor Ernesto começa a falar rapidamente sobre algumas ideias para a exposição, o que me faz retornar ao presente, mesmo com os pelos do braço eriçados e o coração batendo rápido me mantendo consciente que estou ficando louco ou medroso demais.

Preciso parar de assistir o filme A Múmia, isso só pode ser efeito colateral de muito filme com conteúdo de arqueologia.

𓁭 𓁭 𓁭

A água quente desliza pelos meus ombros relaxando meu corpo embaixo do chuveiro, a tensa em boa parte dos músculos se desfaz depois de uma tarde em pé  guiando visitantes pelo museu, duas horas explicando sobre Nefertari para Giovanna e mostrando as coisas mais relevantes para seu trabalho, ler mais de dez relatórios  e pensar em tudo que preciso organizar para a exposição daqui a quatro dias.

Fora aquela sensação de ter uma alma penada decidida a me assombrar. Aquela voz, tão feminina e adocicada — estranhamente familiar —, ainda posso ouvi-la ser sussurrada em meu ouvido...

Algumas gotículas de água ainda pingam quando deslizo para dentro da minha cueca boxer e calça moletom, e deixo o banheiro ainda secando meu cabelo com uma toalha. Estou exausto.

Meu apartamento não é muito grande, mas observar a sala com três pilhas de livros próximas a poltrona reclinável, quatro pilhas de papéis na mesa de centro e uma Giovanna apagada pelo cansaço no meu sofá rodeada de papéis e com um livro na cara, ela definitivamente parece muito menor do que é.

Com cuidado para não acordar minha irmã, arrumo sua cabeça sobre uma almofada e retiro o livro e anotações para organizá-los na mesa de centro, aproveito e a cubro com a coberta que sempre deixo no sofá para minhas maratonas da Marvel. O cansaço dobra e moi meus ossos, meus olhos doem absurdamente. Preciso dormir.

Após conferir a tranca da porta, janelas e desligar todas as luzes meu colchão me acolhe de forma agradável e o sono acaricia minha consciência lentamente, mas é inevitável que meu cérebro se renda sem antes fazer uma pequena recapitulação do dia de hoje. Foi um dia puxado coma todas as minhas segundas-feiras, no entanto não é isso que vem primeiramente em minha cabeça, é aquela voz. Eu sinto que já a ouvi, sei que me recordo de algum lugar, mas não sei de onde e estou exausto demais para lutar contra o cansaço e me lembrar.

"O reencarnado..."

Meus pensamentos vão sendo apagados gradativamente e o sono se torna mais pesado, até que a consciência me abandona, deixando apenas um sussurro...

"O reencarnado... que me libertará..."

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