Sobre Laços de Sangue
Depois da conversa sussurrada na quietude do quarto, Allya ficou a ouvir a respiração da avó desvanecer até não ser mais do que um murmúrio compassado, perfeitamente harmonizado com o das suas irmãs. O esgotamento físico não era suficiente para a levar ao local onde desejava estar. As perguntas, que aparentemente não tinham resposta, agrilhoavam-na à realidade.
Todavia, quando parecia que ficaria mergulhada no seu transtorno a noite inteira, sem qualquer hipótese de repousar e recuperar forças, deu por si a desaparecer dentro de si própria. Contra todas as probabilidades, o cansaço tinha alcançado a sua doce vitória e ela podia reunir-se com Link pela terceira vez consecutiva.
Vê-lo de novo foi o suficiente para arquivar as questões desconcertantes do dia anterior num recanto obscuro do seu pensamento. De alguma forma misteriosa, Link tinha o poder de a acalmar e retirar da própria cabeça.
Talvez se devesse ao seu carisma. Talvez estivesse relacionado com a sua maneira descontraída de ser. Talvez nem fosse um poder que ele tivesse, mas sim algo derivado do interesse de Allya por Link e pelas suas histórias. Independentemente da causa, era um fenómeno bem vido.
Fenómeno esse que se repetiu tanto quanto os serões que partilharam.
Noite após noite, como um ritual, Allya adormecia no seu velho colchão para acordar sobre a erva no topo da colina. Depois, levantando-se, caminhava até ao lago e à árvore que crescia nas suas proximidades, encontrando o homem que a esperava com um sorriso.
As noites tornaram-se semanas. De todas as vezes que ela voltava a ver a lua e as estrelas, aprendia uma coisa diferente sobre Histalia na mesma medida em que Link aprendia sobre Erysa. Eles aprendiam como era viver na terra natal um do outro, como eram as suas gentes e quais os seus costumes. Aprendiam e discutiam de tudo, excepto História. Allya não tinha conseguido descobrir, nem sequer com a ajuda de Aellara, a informação que faltava no passado da sua cidade, pelo que não tinha iniciativa para se aventurar no tema. E Link, por respeito ao seu desconcerto, escolhia sempre outro tópico de conversa, mesmo que a curiosidade o desafiasse a não o fazer.
No fim da noite, incentivada pelas cores que o nascer do sol tingia no céu, Allya deixava-se adormecer para acordar de novo na sua cama. Era o final constante de um ritual que, numa noite como qualquer outra, foi quebrado.
Allya estava a gesticular enquanto explicava a Link como é que era a fauna que habitava as grutas e galerias adjacentes a Erysa quando uma tontura a atingiu subitamente. Zonza, a jovem fechou os olhos e levou a mãos às têmporas antes de tombar sobre um Link preocupado, que amparou o seu corpo no desmaio.
Quando retomou a consciência, os gritos de aflição de Kleomia foram a primeira coisa a atingi-la. Sem compreender o que estava a acontecer e sem notar que o corpo reagia por si próprio, Allya levantou-se da cama, tropeçando nas cobertas que tinham envolvido o seu corpo antes de correr para a porta em frente à sua, do outro lado do corredor.
Kleomia chorava, em pânico. Tentto agarrava Tybalt, que se contorcia e grunhia com dores no chão, ao lado da cadeira de rodas tombada.
E a jovem ficou petrificada por um par de batimentos cardíacos antes de sair da divisão a correr.
Link esperou pela Allya na noite seguinte. Estivera ansioso o dia todo, incapaz de se concentrar fosse no que fosse, e o atraso dela não estava a ajudar aos seus nervos corroídos de preocupação.
Receoso, o jovem decidiu procurar pela ruiva quando achou que a demora ia alta. Os seus encontros decorriam há tempo suficiente para Link saber que Allya se materializava naquele plano onírico sempre no mesmo local, para lá de uma das colinas que normalmente os rodeavam.
Ao fim de uns minutos de busca pelo meio dos montes e árvores, os seus passos apressados estacaram. A mulher que na noite anterior se desvanecera dos seus braços como se fosse feita de pó estelar encontrava-se à sua frente, sentada sobre a relva alta. O seu corpo estava dobrado sobre si próprio, inclinado para a frente sobre uma perna esticada, com a outra provavelmente dobrada sob a saia do vestido aberto em roda. As mãos, que desapareciam por detrás dos curtos fios ruivos, cobriam o rosto, numa tentativa de conter o choro que sacudia os seus ombros.
O coração de Link apertou.
Ele aproximou-se cautelosamente, ajoelhando-se em silêncio na relva junto a ela. A luz da candeia acesa que Link tinha trazido consigo iluminava os seus traços, continuando a inspirar piedade mesmo depois de deixar de a iluminar diretamente, quando foi pousada no chão.
A mão de Link, agora livre, subiu automaticamente na direção de Allya, até ele refrear o movimento. Eles não se conheciam assim há tanto tempo. Ainda que o instinto dele fosse colher aquele corpo nos seus braços e afagar a sua pele para afastar os demónios e a tristeza que dela se tinham apossado, talvez o gesto não fosse bem vindo. Talvez o abraço aumentasse o seu desconforto e acabasse por, inadvertidamente, piorar a situação.
Mas Allya, vagamente consciente da hesitação do homem a seu lado, inclinou-se para o corpo dele, buscando calor e conforto. Buscando aquela calma que ele transmitia. Buscando aquele poder de a tirar da própria cabeça que Link tinha.
O moreno, sentindo a cabeça dela sobre o seu peito, elevou os braços lentamente, dando a Allya tempo para sair do seu abraço se assim o quisesse. Contudo, ao contrário das suas expectativas, ela aninhou-se mais no seu corpo e no seu aperto. E ele, satisfeito por pelo menos poder servir de suporte e de consolo, acabou a adequar a sua posição, para a poder enlaçar confortavelmente.
— Fiquei preocupado quando desmaiaste e desapareceste. Pensei que alguma coisa te tinha acontecido. Ainda que não saiba a razão das tuas lágrimas, estou feliz por te ver de novo — disse, apertando-a ligeiramente, como se quisesse que o gesto lhe transmitisse a sinceridade das suas palavras.
Allya levantou o rosto na direção do dele. Já se tinham passado vários minutos desde que ele a encontrara e ainda estavam os dois na mesma posição, com o corpo dele a envolver o dela, como se a quisesse proteger do mundo.
— Desculpa por te preocupar.
Ele negou com a cabeça, como que dispensando o pedido. Uma das suas mãos continuava a afagá-la, enquanto a outra afastava os fios ruivos da sua face e limpava o carreiro de lágrimas que manchava a sua pele por debaixo dos olhos avermelhados. Para seu grande alívio, Allya estava mais calma.
— Os gritos da minha mãe acordaram-me. Não foi uma boa maneira de descobrir que posso sair daqui à força antes do amanhecer.
Os olhos acinzentados dele arregalaram-se antes de puxar a cabeça dela para o seu peito.
— Não precisas de me contar nada, se não quiseres. Não me deves nada.
A ruiva assentiu suavemente, grata pela sua compreensão. Porém, sentia que precisava de falar do que tinha acontecido. Que reviver os acontecimentos que tinham tomado lugar horas antes a ajudariam a processar tudo. E Link tinha-se provado um excelente ouvinte.
Decidia, Allya inspirou fundo, absorvendo o perfume terroso e tranquilizador do homem que a abraçava antes de expirar longamente.
— O meu pai ficou doente depois de trabalhar por muitos anos nas minas a recolher Poeira — começou.
— A Poeira é aquilo que mantém Erysa a funcionar, certo?
O peito de Link reverberou quando Allya emitiu um som de concordância.
— A doença dele está controlada. Tem de andar de cadeira de rodas para o resto da vida, mas não tem grandes sequelas para além de dores ocasionais. Contudo, ele teve uma recaída ontem à noite. Foram os gritos de socorro da minha mãe, que tinha acordado com a agitação dele, que nos levantaram a todos da cama. — Allya fungou. — Ele contorcia-se de dores quando o alcancei.
A sua mente reviveu a cena no compasso de espera que foi obrigada a fazer para retomar o controlo da tristeza e da voz trémula. Kleomia chorava em pânico, sentada na cama junto ao sítio onde Tentto tentava deitar o pai depois de o levantar do chão.
— A minha mãe disse-me que o resto do medicamento das emergências do meu pai que ainda tínhamos não iria ser suficiente e eu saí para ir buscar mais ao Químico.
Allya correu ao ouvir as palavras da mãe. Quando entrou no quarto partilhado para apanhar o primeiro par de sapatos que encontrasse, viu de relance a Charya desfeita em lágrimas, abraçada pela avó e pela Reniae. Porém, não tivera tempo de lhes dizer nada. Enfiara o calçado nos pés, apanhara a camisola de Tentto esquecida na sala e saíra de casa, ainda em camisa de dormir.
— Tive que ir acordar o Químico, já que ainda não estava a pé, e quase mandei a porta da frente da sua casa abaixo com o meu pânico — continuou, forçando uma gargalhada para a fraca piada seca que tentara introduzir no discurso. — Felizmente, ele conhece a minha família e a nossa situação e foi rápido a atender-me.
Com a urgência da situação, o Químico tinha até permitido que Allya saísse sem pagar. De qualquer modo, com o histerismo da sua saída, ela também não tinha nada com que amortizar a sua dívida naquele momento.
— Com o remédio, os cuidados da minha irmã mais nova e com a intervenção que a curandeira acabou por fazer ao início da manhã, o meu pai ficou melhor. O problema que tinha passado despercebido nas visitas à curandeira ficou resolvido e agora ele só precisa de repouso para voltar a ficar como dantes.
A jovem tinha regressado a casa sem fôlego, adentrando a habitação sem prestar atenção ao que acontecia à sua volta. Tinha o leito de Tybalt como destino e só aquilo que viu ao alcançar o quarto dos pais é que abrandou o ritmo frenético que o histerismo lhe tinha incutido.
Kleomia estava sentada sobre as cobertas ao lado do marido, afagando a sua cabeça para o acalmar. Tybalt, deitado de barriga para cima, arfava. Reniae não estava em casa. Tentto já não estava no quarto a agarrar o pai para impedir que se aleijasse com os seus movimentos bruscos, mas um rodar de cabeça era suficiente para o localizar na ombreira do outro quarto, no fim do corredor, a amparar Polyana. Todavia, a maior surpresa de todas naquela cena era a pequena Charya.
Ela ainda chorava e estremecia. Ainda estava assustada e temia pela saúde do pai. Porém, tinha reunido coragem e frieza suficiente para colocar de lado a sua ansiedade e concentrar-se naquilo que tinha aprendido como aspirante a curandeira. Mesmo a soluçar, Charya tinha assumido as rédeas do tratamento do pai até a sua mentora, que Reniae tinha saído para chamar, se aproximar do leito de Tybalt e tomar o seu lugar.
— Perdi meio dia de trabalho, mas o meu patrão foi muito compreensivo. — A ruiva suspirou e fechou os punhos sobre a camisola de Link. — Para ser sincera, não teria ido trabalhar de todo se não fosse a insistência da minha avó.
Depois de ficar claro que Tybalt recuperaria e que aquele episódio não passaria de um susto, a matriarca dos Lacris tinha corrido com os netos de casa. Todos queriam ficar para trás, preocupados com Tybalt, mas acabaram por ceder à lógica de Polyana. Não havia nada que eles pudessem fazer. Só a Charya tinha permanecido em casa, sob as ordens da sua mentora, com a tarefa de monitorizar o estado do pai.
— Ainda bem. Espero que o teu pai melhore depressa — desejou Link.
O vento agitou a vegetação, preenchendo a súbita serenidade. O coração de Allya ainda palpitava, acometido pelo susto e pela preocupação que os acontecimentos daquela madrugada tinham deixado para trás. Mas agora que tivera tempo de revisitar o ocorrido e de refletir com calma, sentia-se um pouco mais em paz.
O pai estava fora de perigo. A curandeira tinha dito que havia grandes probabilidades de uma recuperação total. E Charya tinha dado provas de que estava a crescer e a tornar-se uma mulherzinha.
— Eu tenho saudades da minha família — disse Link de repente, melancólico.
Allya afastou a cabeça do peito largo onde se tinha aninhado para procurar os olhos do homem que a envolvia. Havia tristeza nas íris cinzentas que se perdiam no horizonte, pronta a transbordar em grossas gotas salgadas.
Movida pela compaixão, a mão calejada dela roçou a marca negra na maçã do rosto esquerda de Link, num gesto distraído de reconforto. Aquela era a primeira vez que falavam explicitamente das suas famílias e Allya não estava preparada para a quantidade de dor, tanto dela como dele, que aquela conversa estava a aflorar.
O moreno estremeceu com o gesto da ruiva e olhou para ela com um olhar estranhamente carregado e indecifrável enquanto capturava a mão intrusa. De seguida, levou as costas da mão dela aos seus lábios, entrelaçando os seus dedos depois daquele beijo que Allya falhou em interpretar.
— Estou afastado da minha família há já algum tempo...
A ruiva remexeu-se, desconfortável. Allya queria separar as suas costas do peito de Link, afastar o braço que lhe envolvia o tronco e desentrelaçar os dedos na esperança que uma maior distância entre eles pudesse baixar a temperatura do seu corpo e esconder o embaraço que tinham vindo com a perceção da situação em que estavam. Porém, quanto mais se tentava afastar, mais Link a agarrava.
— Não sei exatamente porque não posso voltar a vê-los. Tenho tentado tudo o que está ao meu alcance, mas nada parece resolver a situação suficientemente depressa. Nada traz a normalidade de volta.
Ao compreender o sofrimento na voz quebradiça, habitualmente tão alegre e brincalhona, Allya deixou de resistir. Link fitava as suas mãos unidas sobre o colo da ruiva de modo ausente e ela deixou cair a cabeça até a conseguir amparar no ombro dele.
— Tenho a certeza que voltarás para junto deles mais depressa do que imaginas — assegurou, usando, involuntariamente, a mesma voz melosa e ternurenta que fazia para confortar as irmãs.
Ele apertou-a mais um pouco, como se a sua vida e a sua sanidade dependessem daquela proximidade. Allya sentia-se comprimida contra o corpo de Link, mas não de uma forma dolorosa. Por isso, nada disse.
— Houve uma vez, no aniversário da minha avó, que decidi oferecer-lhe um Fusarium florido. Os Fusarium floridos são fungos que têm um manto em forma de recipiente, como um copo, e extensões em forma de flores que saem do centro do seu manto — explicou Allya, depois de uns minutos de silêncio. — Lembro-me de a minha avó dizer que, se colhidos e tratados da maneira certa, é possível destilar um licor destes Fusarium e que ela já não bebia desse licor há muito tempo. A minha mente ingénua de criança pensou que nenhum presente seria melhor do que algo que ela desejasse assim há tanto tempo.
Link olhou para baixo, para a mulher no seu colo. O início daquela conversa tinha soado nos seus ouvidos como se Allya estivesse do outro lado de um túnel incrivelmente longo e era necessário concentrar-se para perceber o que estava a ouvir.
— O meu irmão mais velho andava a trabalhar no seu presente em segredo e as mais novas estavam a trabalhar no delas em conjunto, por isso não podia ser a única neta a não aparecer com um presente. O problema é que os Fusarium floridos crescem numa parte muito específica das galerias que circundam Erysa e são de muito difícil acesso. O licor era escasso na cidade naquela altura porque os coletores mais hábeis não tinham conseguido colher espécimes suficientes, de tão complicada que era a colheita, e ainda demoraria vários meses para que o processo a que a última colheita tinha sido submetida estivesse concluído.
» Eu, na minha inteligência, fiquei convencida de que conseguiria trepar para os locais necessários e usar o meu diminuto tamanho para entrar até nas fendas mais pequenas para colher o Fusarium. Por isso, na véspera do aniversário da minha avó, saí de manhã de casa para me aventurar sozinha nas galerias e passagens.
Allya sentiu os músculos em torno de si relaxar com o afrouxar do aperto que a continha.
— Sozinha?
Link ainda não estava plenamente concentrado na narrativa, mas tinha sido capaz de apanhar aquele detalhe.
— A minha família não podia saber da surpresa e o Zhou, o meu melhor amigo, só me iria atrapalhar. Achei que seria mais rápido se não tivesse ninguém comigo — explicou, encolhendo os ombros. — Claro que acabei por me perder. Depois de cinco túneis sem saída, muitos arranhões e de um calor insuportável, muito acima das temperaturas altas de Erysa, decidi voltar para trás e arranjar outro presente. Não ter visto nada sequer parecido com um Fusarium florido foi o suficiente para me convencer de que aquilo não era tarefa para mim. Mas como nunca cheguei a decorar o caminho de volta, tive de vaguear pelos túneis, a gritar por ajuda de vez em quando.
» Encontraram-me quase dois dias depois. Não me lembro de me resgatarem porque o calor, a sede, a fome e a falta de horas de sono decentes me fez desmaiar. Não tive grandes sequelas porque tive um bom instinto de racionar a comida e a água que tinha trazido comigo naquela aventura. Mas o mais impressionante e irónico de tudo é que desmaiei à frente de uma fenda carregada de Fusarium floridos.
Allya riu e a expressão de Link suavizou.
— Ainda hoje a minha avó me diz que ganhou duas coisas naquele dia: a mais saborosa garrafa de licor florido que alguma vez provou e problemas de coração!
Ambos caíram na gargalhada, ainda que a dele fosse tão tímida que era quase inexistente. Link, mais tranquilo, libertou Allya por completo, que se levantou brevemente antes de se sentar de novo, desta vez de frente para ele.
— E tu? Também eras um diabrete em criança? Aposto que deste muitas dores de cabeça à tua família! — provocou a ruiva.
Link deitou-se na relva.
— A minha irmã mais nova é a pior de nós todos, mas ainda me meti em muitas alhadas que ainda hoje dão que falar — afirmou, levando Allya a sorrir. A mágoa já não o estrangulava como dantes. — Houve uma vez que...
E, sem que dessem por isso, outra noite passou, levando consigo uma conversa que o grande astro que os encimou jamais tornaria a testemunhar.
Bạn đang đọc truyện trên: AzTruyen.Top