Sentimentos a Descoberto
— E foi assim que o mistério do intruso no armazém de Poeira foi desvendado — disse Allya, levando os dois às lágrimas de tanto rir.
Naquela noite, não havia uma única aragem a varrer a paisagem tão incrível e imutável quanto a representação pictórica nascida das mãos do mais hábil dos pintores. A tranquilidade do espelho de água refletia o encantador céu noturno, perfeitamente emoldurado pela extensão verdejante que Allya não tinha oportunidade de encontrar em nenhum outro lugar.
Segundo Link, certas coisas deveriam ter mudado com o tempo naquele cenário e nunca o fizeram. A lua deveria alterar a sua forma e o seu tamanho com o passar do tempo e a vegetação deveria dar provas da mudança das estações. Porém, mesmo depois de se terem passado semanas suficientes para ambos perderem a conta, nenhum dos fenómenos tinha lugar, escondendo dos olhos da ruiva a sua beleza e maravilha.
Só o arrastar dos dias clareava e escurecia o céu. Pelo menos segundo o que ele afirmava. Allya nunca conseguia testemunhar o cair da noite por muito que tentasse chegar mais cedo ao plano onírico.
Com as costas contra a rugosidade da casca da árvore, a ruiva olhou para o colo.
Das primeiras vezes que Link se aproveitara das suas pernas esticadas para repousar a cabeça, Allya não soubera como reagir. Aqueles momentos tinham sido desconfortáveis de uma forma que ela era incapaz de precisar, levando o sangue a queimar nas suas veias e o bater do coração a fazer-se sentir nos ouvidos. Agora, depois de tantas noites, adorava o peso familiar da cabeça dele sobre as suas coxas e perder de vista os dedos calejados por entre o mar de fios de índigo, que acabava pelas pontas das orelhas dele desde a primeira vez que o vira.
— Link... Posso fazer-te uma pergunta?
Ele abriu os olhos. Nas suas íris, uma tempestade de cinzas revoltas descrevia padrões circulares em torno da pupila, tão escura e atraente como um buraco negro.
— Força.
Allya olhou em volta. Link tinha-lhe dito, numa outra conversa, que era natural ter sonhos diferentes todas as noites, tanto em conteúdo como em cenário. Contudo, este não o era, por alguma razão que o moreno desconhecia.
— Eu sei que estamos nos teus sonhos, mas que lugar é este? O que é que este lago e estas árvores representam para ti? — perguntou.
O seu olhar caiu a tempo de ver o semblante dele fechar-se por uns momentos.
— Há um lugar igual a este na fronteira de Histalia. Fica longe do sítio onde vivo, mas a Myriu faz a distância parecer insignificante.
— A Myriu é o teu Tek... Ter... — engasgou-se a ruiva, lutando com a palavra escondida debaixo da língua.
— Trekari — esclareceu Link. — Ela é o Trekari que me escolheu e com quem criei um vínculo quando era criança.
Os olhos dele fecharam-se por momentos. Na escuridão do seu interior, a pelagem outonal da sua companheira bestial ficava tão nítida como se estivesse mesmo à sua frente. Parecia que se via a si próprio refletido naqueles grandes olhos topázio, sempre atentos e confiáveis, e que sentia as penas da ponta da cauda peluda que se enrolava familiarmente em torno das suas pernas, em jeito de cumprimento.
Para formar um vínculo com um Trekari, é necessário conseguir ouvir o seu chamamento. Cada uma daquelas criaturas tem o seu próprio chamamento, que não é ouvido por mais ninguém a não ser o seu potencial cavaleiro. Depois, quando o par se encontra, o humano precisa de domar a besta a que está destinado.
Quando viu a Myriu pela primeira vez, o jovem Link, na altura com pouco mais de 7 anos, julgou ter uma tarefa impossível em mãos. A sua companheira predestinada, como maior da ninhada, tinha um porte imponente. As hastes, características da sua espécie, eram já suficientemente proeminentes para impor respeito, terminando na ponta de um focinho felino adornado com uma dentição digna de um predador. Parecia que qualquer movimento em falso o tornaria vítima das garras, habitualmente retraídas, que possuíam força suficiente para suportar o peso de um indivíduo pendurado na rocha nua.
Porém, todos os receios que o atormentavam foram esquecidos quando o vínculo se formou. A sua relação com Myriu tinha nascido no primeiro voo que partilharam e desde aí tinha apenas crescido.
— Só aqueles que criam vínculos com Trekaris os podem montar, certo?
Link abriu os olhos de novo, abandonando a tentativa fútil de sentir o laço sensorial e emocional que o ligava a Myriu. Há já algum tempo que a conexão estava morta.
— Sim. — A palavra saiu arranhada, tingida com a amargura que lhe causava na boca. — É um privilégio que só é concedido a alguns histalianos.
Allya parou de brincar distraidamente com os fios de cabelo dele. Link tinha falado algumas vezes dos Trekaris e da sua importância para Histalia e para o exército. Em particular, sempre que os seus relatos envolviam Myriu, a criatura sagrada que o tinha escolhido, a sua voz vinha carregada de orgulho e amor. Porém, de algum modo, daquela vez pareceu-lhe diferente.
— Não sei que nome dão a este lago ou a este lugar, — retomou, afastando inadvertidamente a preocupação da ruiva, — mas é o meu local favorito em todo o Reino. Vou lá imensas vezes para espairecer. Não só a viagem me faz bem, como é um ótimo local para admirar as estrelas e a Natureza.
— Também se pode chegar a este sítio a cavalo? Ou só se consegue com um Trekari? — perguntou Allya.
Uma vez que não conhecia nada semelhante, a imaginação da ruiva fazia um péssimo trabalho a idealizar cavalos ou Trekaris. Porém, ela sabia que ambos eram usados como montadas em Histalia e tinha as características e as vantagens de cada um bem nítidas na sua mente.
— Não consegues ver bem o horizonte porque o meu sonho esbate os limites da paisagem, mas este lugar fica num planalto de média altitude. Só existe montanha naquela direção — disse ele, apontando para trás de Allya. — Dá para chegar aqui a pé ou a cavalo, mas o voo de um Trekari é sempre melhor, para quem tem essa opção.
A ruiva sorriu brevemente. Ela sabia que voar com a Myriu era um dos passatempos favoritos de Link, pelo que não era difícil imaginar que ele o utilizasse como escape para o sufoco provocado pelo dever de gerir e proteger uma nação inteira.
Encontrando o sorriso dela, o moreno esboçou o seu.
— Se algum dia nos encontrarmos fora destes sonhos, prometo levar-te a ver estrelas a sério. Estas, que são fruto das minhas memórias, são réplicas de fraca qualidade.
Ela espiou as estrelas novamente antes de lhe devolver a atenção.
— Mas estas parecem-me bem...
Nenhum dos dois continuou a conversa, a oferta fantasiosa gradualmente esquecida com o seu diluir no silêncio. Trocando olhares, eles limitaram-se a apreciar a companhia um do outro, sem nenhum pensamento particular em mente nem nenhuma emoção prevalecente. Na quietude, apenas as essências dos seus seres se comunicavam, numa língua há muito esquecida, intensificando o momento e adensando a atmosfera ao ponto de a poderem sentir qual espessa camada de humidade sobre a pele.
— Allya... Posso fazer-te uma pergunta?
Ela ajeitou a sua posição, roçando levemente as costas na árvore atrás de si. A mão de apoio na relva suportava parte do seu peso inclinado. A outra, que tinha desfalecido para o seu regaço, continuava parcialmente submersa no mar de índigo.
— Claro.
— Tens alguém durante o dia? Em Erysa?
— Como assim? Em que sentido?
Link levantou-se, deixando uma sensação vazia sobre as pernas dela. Rodando o corpo, ele ajustou-se para ficar de frente para Allya.
— No sentido romântico.
A pergunta apanhou-a desprevenida, obrigando-a a pigarrear com afetação para encontrar a voz.
— P-porque é que perguntas?
— Tens? — insistiu ele, desprezando as suas palavras.
— Não... Mas porque é que queres saber isso? — inquiriu, genuinamente confusa.
Ele riu da ignorância dela, balançando ligeiramente a cabeça. Não era nenhuma novidade que a ruiva podia ser muito densa, mas o facto não deixava de o surpreender. Mesmo depois de namoriscar e insinuar coisas da forma mais descarada que alguma vez tinha namoriscado ou insinuado na vida, a mensagem continuava a passar ao lado de Allya.
— Para saber se tenho alguma hipótese de ter um lugar no teu coração. Como tu tens no meu — acrescentou, não resistindo ao impulso de acariciar as costas da mão que ela tinha mais próxima de si.
A boca dela ficou seca, obrigando a língua a distribuir o pouco de saliva que lhe restava pelos lábios. Link estava sentado na relva a mais de dois palmos de distância de si, ainda que com o corpo ligeiramente inclinado para o seu. Todavia, aquele espaço entre eles parecia demasiado curto, amplificando os efeitos daquela fala.
Ele, atento aos mais ínfimos movimentos e às mais discretas reações, continuou a libertar as palavras que tinham tomado forma muitas noites antes. Se Allya não conseguia ler nas entrelinhas, ele tinha de deixar as coisas o mais óbvias possível.
— Eu sei que não notaste nada, mas já me sinto assim há muito tempo. — Ele sorriu. — Admiro o teu amor à tua família e a tua força de vontade. A tua densidade pode ser enervante por vezes, mas adiciona à tua fofura e ao teu charme, tal como a tua transparência. As tuas lágrimas pesam-me e a tua agitação desperta em mim uma necessidade absurda de te confortar e proteger. A tua alegria é absolutamente inebriante e o teu sorriso... — Link suspirou. — O teu sorriso chega a pôr-me louco!
A respiração de Allya acelerou. Tudo o que tinha acontecido entre eles ganhava agora uma nova luz.
— Allya, para mim, és a mulher mais bela de todas. Tanto por dentro, como por fora. — O seu corpo aproximou-se do dela, afogando-a no seu natural perfume terroso. — E por isso, gostava de pedir a tua permissão para te beijar.
Os olhos de Allya vacilaram por uns segundos entre os olhos acinzentados e os lábios escuros e carnudos dele.
— E porque é que me queres beijar? — forçou, numa rouquidão que lhe era incaracterística.
As pontas dos dedos de Link subiram lentamente pelo braço nu de Allya até ao seu maxilar, provocando-lhe arrepios. Ela estava obviamente inquieta, mas não era receio.
— Para sanar a minha loucura.
Os dedos dele desenharam a linha da mandíbula dela, terminando no queixo, sob os lábios.
— Para confirmar o que sinto.
Os seus olhares cruzaram-se.
— Para ter a certeza de que não estou a ver coisas onde não existem.
No silêncio, só as suas respirações pesadas se faziam ouvir.
Allya sentiu o suor na palma das mãos e a cabeça leve. Seria mentira dizer que não tinha percebido a atração que existia entre os dois. Ela reconhecia que tinha dificuldade em compreender mensagens subentendidas e deixas sociais, mas aquele caso era gritante o suficiente para se fazer notar.
Porém, seria mais do que isso? Haveria no seu coração sentimentos idênticos aos que Link acabava de confessar?
O seu olhar, antes perdido, concentrou-se no homem diante de si. Link precisava de um beijo como prova definitiva. E talvez não fosse o único.
— B-beija-me — sussurrou, reunindo toda a determinação que conseguiu para afastar a hesitação. — Por favor.
As feições expectantes de Link, que esmoreciam com a perda da esperança e com o arrependimento de ter estragado uma excelente relação com a sua confissão egoísta, iluminaram-se. O seu sorriso maroto e sedutor repuxou os seus lábios durante os instantes em que se inclinou para diante, puxando-a para si.
As mãos dele envolveram o rosto pálido dela com carinho. Allya fechou os olhos, expectante, e Link começou por distribuir pequenos beijos em torno daqueles lábios rosados que tanto o cativavam. Ele queria saborear o momento com o qual fantasiara e fazê-la sentir-se confortável com todo o processo.
Parando, Link deu à ruiva um momento para afastar o choque. Depois, vendo que ela não utilizava a oportunidade para fugir, retomou. Os seus lábios sobrepuseram-se aos dela, perfeitamente encaixados, num beijo casto que foi repetido uma e outra vez, com cada um mais longo e saboroso que o anterior.
Porém, o momento depressa se intensificou. Allya deitou a razão e as inibições ao vento e Link foi dominado pelo instinto. Os sentimentos que tinham crescido noite após noite dançavam no peito de ambos, transformando o afeto numa ânsia imensa por carinho e contacto. Mais do que se expressarem, os dois precisavam de sentir na pele e nos lábios que eram correspondidos.
O beijo, delicioso e electrizante, foi interrompido apenas pela necessidade de respirar. Link envolvia a cintura dela e Allya, praticamente no colo do moreno, envolvia o seu pescoço.
— Eu sabia... — arfou Link, com a testa colada à dela. — O meu coração já não me pertence. — O seu olhar dirigiu-se para as íris castanhas claras dela, brilhantes de confusão. — Eu amo-te, Allya.
A ruiva sentiu o seu interior estremecer com aquelas palavras. No seu peito, uma panóplia de sentimentos tamborilava, furiosos, assoberbando-a. O seu fôlego, que Link tinha consumido, teimava em não regressar. A sua racionalidade, derretida pelo calor do momento, fazia companhia às suas pernas e aos seus braços na massa de gelatina que dela sobrava.
Porém, Allya compreendeu. Aquilo que a puxava para ele era mais do que simples atração. A inquietação de não o ter por perto, a alegria de o rever, o fascínio de o admirar e a prontidão de o ouvir eram sintomas de um fogo que lhe ardia no peito.
Podia ser a primeira vez que admitia para si mesma a verdade, mas Allya tinha a certeza. A paixão nunca lhe tinha sido tão familiar como naquele momento.
Ainda assim, ela deixou a única oportunidade que tinha de o confessar escapar. Porque quando Link a abraçou contra o peito largo, inclinando-se, e os seus lábios se tocaram para um segundo beijo, o mundo ficou negro.
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