Pergunta Sem Respostas
Mesmo quando a mudança de astros começou a pintar uma obra de arte no horizonte do outro lado do lago, Link continuou a partilhar as suas histórias, a pedido de Allya. A voz dele tivera o mesmo efeito que as canções de embalar que Kleomia cantava quando ela era mais nova, ajudando o cansaço a empurrá-la para a inconsciência.
Quando voltou a abrir os olhos, já não havia estrelas nem lua. A brisa já não soprava, agitando suavemente as folhas na copa da árvore. Se rodasse a cabeça, não encontraria o Link.
Resignada, a ruiva sentou-se na cama, esticando os músculos para os despertar. No movimento, os seus olhos captaram os cristais de Er incrustados na Cúpula e que eram visíveis através da janela. Ela estava grata por conseguir imaginar coisas que não estariam sequer ao seu alcance se não fossem os relatos de Link. Ouvi-lo falar sobre o seu dia a dia ou sobre peripécias que tinham decorrido na sua infância enchiam-na com uma mistura de divertimento e admiração. Porém, ela interrogava-se como seria poder ter o céu sobre a sua cabeça e observar todas as suas transformações ao longo do dia. Ela questionava-se sobre como seria poder sair da sua cidade, viajar e conhecer novas caras e culturas.
Sentindo o vazio de desejar algo inalcançável, Allya estudou o quarto, percebendo-o desabitado. Depois, alarmada, olhou de novo os cristais de Er na Cúpula, tomando atenção à sua tonalidade. Estavam mais amarelos do que era suposto.
— Finalmente estás acordada! — exclamou Reniae ao entrar de repente no quarto pela porta entreaberta. Allya já se tinha levantado e agachado ao lado da cama, remexendo no alçapão logo abaixo para tentar encontrar a roupa que usaria durante o dia. — Tentámos chamar-te, mas estavas ferrada. Parecias mesmo morta. A Charya quase que esteve para sair a correr e ir buscar a sua mentora, não fosses tu ter adoecido.
A ruiva vestia-se à pressa, amaldiçoando o momento em que, demasiado entretida com as histórias de Link, resistira ao cansaço. Se se tivesse deixado ir, teria acordado às horas de sempre.
— Ela já está acordada? — perguntou Tybalt, fazendo rolar a cadeira de rodas para a porta do quarto das filhas.
— Sim, felizmente. — Reniae adentrou a divisão para tirar de debaixo da cama aquilo que tinha vindo buscar. — Não está doente, só dormiu demais.
Tybalt olhou a filha mais velha.
— Estás atrasada.
— Eu sei, eu sei! — resmungou, lutando com os atacadores e o fecho da camisola ao mesmo tempo.
Sem desviar a sua atenção de duas das suas meninas, o homem recuou a cadeira de rodas para dentro do pequeno corredor, libertando o espaço em frente ao segundo quarto da casa atarracada.
— Se correres, talvez consigas que o Edvin deixe passar.
A mais velha beijou rapidamente a cabeça cobreada do pai antes de passar por ele, com Reniae a repetir os seus gestos atrás de si.
— Duvido muito! — disseram as irmãs.
Allya conhecia o patrão por experiência própria, mas Reniae tinha ouvido falar dele inúmeras vezes dentro daquelas quatro paredes. Era um homem demasiado rigoroso com os horários de entrada para deixar Allya escapar sem qualquer represália pelo seu atraso.
Saindo do corredor acinzentado para a sala, Allya deitou um olhar ao sofá onde Tentto passava as noites. A arrumação impecável da divisão indicava-lhe que o irmão já tinha saído de casa. E isso, em termos horários, era um péssimo sinal.
Reniae, apressada, passou à frente da irmã antes que esta tivesse tempo de alcançar a passagem na outra ponta da sala. As suas mãos carregavam um pequeno objeto metálico, provavelmente um dos seus projetos, que ela voltara ao quarto para recuperar momentos antes.
— O Tentto deixou-te comida na bancada! — disse para a Allya, que tinha atravessado a passagem da sala para o pequeno corredor para lá da maior divisão da casa. A sua irmã mais nova encontrava-se à sua direita, com a mão livre na maçaneta da porta da rua. — Eu vou avisar a mãe e a Charya de que não estás doente antes de ir para o trabalho.
— Vê lá se não chegas atrasada! — advertiu Polyana de repente.
Sobressaltada, Allya olhou para a avó à sua esquerda, parada na ombreira da porta da cozinha, antes de reparar na mão enrugada que agarrava o seu braço, impedindo-a de sair atrás de Reniae.
— Está tudo bem — garantiu a mais nova, abrindo a porta. — O meu patrão nunca chega a horas!
Com uma gargalha, a jovem despediu-se da família e saiu de casa. A matriarca da família, com semblante sério, estendeu um embrulho a Allya.
— Tens aí comida. Para a próxima, se estás assim tão cansada, vais para a cama mais cedo. Não precisas de ficar a pé só para nos deitar a todos.
Tybalt estendeu o saco à filha, que aceitava o sermão da avó com um sorriso embaraçado. Não fora propriamente o cansaço do dia anterior o responsável por aquela situação, mas ela não conseguia explicar a verdade.
— Diz ao Edvin que te atrasaste por minha culpa. Ele sabe em que estado aquelas minas me deixaram. Com certeza vai ser brando contigo.
Allya concordou com o pai, ainda que não estivesse nos seus planos contar aquela desculpa inventada ao patrão. Ela sentia-se mal em mentir. A sua mentira por omissão de toda a situação com Link, ainda que inofensiva para a sua família e para o Zhou, já a deixava desconfortável o suficiente. Não havia necessidade de colocar o seu peito num aperto maior.
Despedindo-se do pai e da avó, Allya saiu de casa e correu com tudo o que tinha, numa tentativa de diminuir a punição eminente. Contudo, compreendeu ser um esforço fútil quando, ainda a um par de ruas de distância da mina, ouviu as badaladas da Torre. Estava a começar um dia de trabalho e ela não estava a entrar ao serviço.
A entrada da mina e as proximidades do edifício dos balneários estavam desertas quando a jovem, ainda a recuperar o fôlego, entrou para deixar os seus pertences num cacifo. Depois de beber água e de comer três das bolachas da sua marmita, feitas na noite anterior pelo seu irmão mais velho, Allya dirigiu-se para a zona de mineração de cabeça erguida. Ainda que soubesse que o dia seria duro e que as consequências da sua teimosia no plano onírico seriam com certeza suficientes para a desencorajarem a repetir o feito, ela só tinha a si mesma para culpar. Teria de ser mulherzinha o suficiente para se deitar na cama que fizera.
Edvin intercetou-a antes que a ruiva tivesse oportunidade de se enfiar no buraco a que ela chamava de posto de trabalho habitual há uns meses.
— Lacris! — Allya parou de andar ao ouvir a ameaça naquele tom de voz. Os seus olhos abandonaram a massa de rocha perfurada de onde os seus colegas entravam e saiam com fragmentos de uma substância que ela conhecia muito bem e pousaram no homem baixo e escanzelado que se dirigia a si. — Posso saber o motivo deste atraso?
A jovem suspirou mentalmente, preparando-se para as repercussões da sua resolução de não usar o pai doente como escudo.
— Peço imensa desculpa, Edvin. — A sua cabeça curvou um pouco, como se se estivesse a submeter fisicamente aos caprichos do homem mais baixo. — Adormeci. Prometo que não se repete.
O sermão que se seguiu foi longo e austero, com era de esperar. O patrão nunca fazia as coisas por menos. Porém, o castigo que foi anunciado depois de um período de silêncio, no qual Allya refletiu no que lhe tinha sido dito por duas vezes na mesma manhã e no qual o patrão a olhou de alto a baixo, foi mais leve do que a ruiva estava à espera.
— Para compensar, hoje vais trabalhar numa secção diferente e só sais da mina quando tiveres igualado o teu atraso com horas extra!
Allya teve de refrear a vontade de perguntar a Edvin se estava a falar a sério. Claro que, depois de o seguir, descobriu que trabalharia num dos mais apertados e tortuosos túneis da mina, onde até uma pessoa da sua estatura tinha dificuldade em movimentar-se e permanecer comodamente. Porém, não passava disso. No dia seguinte estaria de volta ao seu posto habitual, como se nada tivesse acontecido. O patrão nem sequer tinha mencionado um desconto no ordenado!
Vendo o patrão afastar-se com resmungos, tanto para ninguém em particular como para outros mineiros, Allya sentiu alívio. Depois, pensando melhor, questionou-se se aquela benevolência não estaria associada à recordação que Edvin mantinha do seu pai. Ainda que ela não falasse dele enquanto estivesse no trabalho, o patrão perguntava muitas vezes como ia Tybalt, mostrando que se importava com os seus mineiros mesmo depois de deixarem de estar ao seu serviço. Especialmente aqueles que saiam daqueles túneis com sequelas.
Fosse como fosse, Allya agradeceu mentalmente por aquele pequeno milagre e jurou não repetir o feito. Em seguida, respirando fundo, esgueirou-se para o interior do túnel onde passaria o dia.
Com o calor e as dores musculares, Allya não teve tempo durante o dia para pensar noutra coisa que não fosse a extração de Poeira. Toda a sua atenção estava concentrada na técnica necessária para desincrustar os fragmentos de Poeira da rocha que envolve Erysa e na sua própria respiração, que se tornava mais sofrida com o prolongar da sua estadia.
Sem qualquer noção da passagem do tempo, a jovem só se apercebeu que as suas horas extraordinárias tinham acabado quando o patrão lhe deu um berro da entrada do túnel, dizendo-lhe que poderia ir para casa. Ao contrário do que lhe era habitual, Allya começou a recuar mal ouviu o aviso. Sentia-se tão esgotada e dorida que não se daria ao luxo de permanecer soterrada muito mais tempo.
As suas pernas cederam quando por fim se libertou da rocha que a encarcerava. Allya deixou-se estar sentada no chão, a arfar, apreciando a facilidade com que podia respirar ali, naquele espaço mais amplo. Erysa é naturalmente quente, mas o interior dos túneis da mina consegue atingir temperaturas que, aliadas ao cansaço dos trabalhadores, pode levar a desmaios por falta de ar.
— Precisas de ajuda para te levantar?
Abrindo os olhos, a ruiva viu a mão de Zhou estendida na sua direção.
— O que é que estás aqui a fazer? — perguntou com o fôlego que aqueles momentos sentada lhe tinham trazido. Com certeza que as badaladas da Torre já tinham soado há muito, dado o quão silencioso e deserto se encontrava o espaço à sua volta.
— Sabia que ias ficar neste estado e não quis que fosses sozinha para casa — sorriu, puxando-a para cima.
Allya sorriu abertamente e deixou que o melhor amigo a amparasse na caminhada até aos cacifos. Depois de tanto tempo enclausurada, o seu corpo ainda se estava a habituar aos movimentos que pareciam ter sido feitos pela última vez há décadas.
— O Edvin ainda aí está?
O baque da porta do cacifo de Allya sucedeu a sua fala, valendo-lhe uma careta de Zhou, que se assustou com o ruído.
— Não. Ele foi para casa logo depois de passar por ti — respondeu, encolhendo os ombros quando ela recusou a sua ajuda.
Os dois caminharam em passo lento pelas ruas da cidade que aparentava nunca dormir. Mesmo depois das badalas, lojas e oficinas mantinham as luzes ligadas, especialmente próximo da Torre. À sua volta, erisanos davam vida às ruas de pedra entre os edifícios cuja monotonicidade era quebrada apenas pelas peças de vestuário presas nos estendais das janelas.
— Zhou?
Ele girou a cabeça na sua direção e aproximou o seu passo, para que os dois pudessem conversar confortavelmente.
— Dizem que Erysa é tudo o que resta no mundo e que não há mais sobreviventes, certo? — perguntou.
Depois da conversa com Link na noite anterior, Allya tivera interesse em perguntar a Polyana sobre o assunto. Porém, a sua pressa em sair de casa pela manhã tinha apagado aquela dúvida da sua mente, assim como a estranha sensação de que não sabia tanto de Erysa como deveria saber. E agora que o seu cérebro, mais ocioso e oxigenado, tivera tempo para rever a lista de tarefas diárias que ainda tinha por completar, a questão tinha assolado de novo a sua mente.
Zhou assentiu, confuso com a pergunta.
— Mas sobreviventes de quê?
A sua cara pensativa revelava que também ele não sabia a que é que os antigos erisanos tinham sobrevivido.
— Não faço ideia... Mas para quê essa pergunta agora?
— A Charya e a Reniae estavam a falar disso no outro dia e percebi que as histórias que ouvimos desde miúdos não explicam grande coisa nesse aspeto — disse, sentindo um peso maior no estômago à medida que as palavras a abandonavam. Não conseguia dizer ao Zhou que tinha sido o Link a colocar aquela dúvida em primeiro lugar.
Para esconder o desconforto que aquela mentira lhe tinha causado, o seu olhar subiu brevemente para os cristais de Er antes de alcançar esquina de um edifício. Depois, por se terem deparado com uma carreta empurrada por um comerciante ao entrarem na nova rua, os amigos viram-se obrigados a abrir caminho antes de se reunirem alguns metros mais à frente. Essas ações, para grande felicidade de Allya, levaram a que Zhou não tivesse oportunidade de reparar que ela mentira.
— Isso é verdade... Mas de qualquer maneira, não importa. Já não há nada para além de Erysa.
— Mas será que não há mesmo?
— Claro que não há. Todas as pessoas que tentaram sair da cidade, incluindo muitos exploradores, ou acabaram mortos ou encontraram becos sem saída.
Allya ficou a matutar no assunto na distância que faltava até ao ponto da cidade onde os dois normalmente se despediam. Zhou, por seu turno, ao ver a seriedade contemplativa no semblante da amiga, cedeu com um suspiro antes que ela lhe pudesse dizer adeus.
— Se quiseres, posso perguntar à Aellara se descobre alguma coisa — ofereceu.
A face da jovem iluminou-se com a menção da irmã mais velha de Zhou, que trabalhava nos arquivos da cidade. Se existisse alguma informação que não era conhecimento geral dos erisanos, com certeza que estaria ali armazenada.
— Obrigada! — exclamou, atirando-se ao pescoço do amigo como se não estivesse cheia de dores musculares.
Zhou sorriu ante o entusiasmo dela e afagou as suas costas.
— Não te prometo que ela se dedique a isto nem que o faça com urgência, se por acaso aceitar ajudar.
Allya libertou-o do seu aperto.
— Claro. Ela que não entre em problemas nem em trabalhos por causa das minhas perguntas.
Zhou afagou-lhe a cabeça, soltando da cara suada a franja ruiva e desalinhando o restante do cabelo.
— Vê se dormes, para não chegares atrasada amanhã também — atirou provocadoramente antes de lhe virar costas, sacudindo o cabelo aloirado preso num rabo de cavalo.
— Bom descanso para ti também, Zhou! — gritou ela de volta, rindo enquanto via o amigo desaparecer por entre a multidão na rua.
O restante caminho até casa fez-se num ápice. Quando deu por isso, Allya já estava sentada à mesa de jantar, a comer a refeição que o irmão tinha preparado, juntamente com os restantes familiares, que tinham esperado o seu regresso para começar a comer. Depois, em vez da normal hora reservada para momentos em família, todos a empurraram para o duche, para que se preparasse para dormir. Não havia necessidade de repetir o sermão que todos sabiam que tanto Polyana como Edvin tinham pregado naquela manhã.
Tão cedo a mandaram para a cama, que Allya foi a primeira do quarto a deitar-se. Charya e Reniae foram deitadas por Kleomia algum tempo depois e Polyana, auxiliada por Tentto, foi a última a adentrar a divisão.
— Avó? — perguntou Allya, cortando o silêncio que reinava na casa há vários minutos e que os seus ouvidos já não suportavam escutar. A sua voz não tinha sido mais do que um sussurro, numa tentativa de não acordar as irmãs que tinham cessado a sua conversa pouco tempo antes.
A velha rodou a cabeça sobre a almofada, olhando para a neta através da pouca claridade que os cristais de Er derramavam pela janela.
— Sim, querida?
Allya apertou as cobertas.
— Contaste-nos muitas vezes que Erysa é a única cidade sobrevivente. Mas nós somos sobreviventes do quê? — questionou, usando o mesmo tom de voz de antes.
— Não sei, minha querida. Contei-vos tudo o que sei. Nunca me disseram mais do que a informação que transmiti, primeiro ao teu pai, e depois a vocês. Pelo menos que eu me lembre....
Deitada na direção da avó, a jovem sentiu a pontada de desilusão. Se Polyana não sabia, poucas ou nenhumas pessoas na cidade o saberiam.
— Talvez sejamos apenas sobreviventes do próprio tempo... Mas para quê a pergunta?
— Ocorreu-me depois de ouvir falar sobre isso no caminho para casa.
Polyana sentiu a desilusão na voz da neta.
— Desculpa não conseguir satisfazer a tua curiosidade, Allya.
Ainda que estivessem mergulhadas no escuro e a sua avó não conseguisse ver nada, especialmente sem óculos, Allya colocou um sorriso apaziguador na face, por hábito.
— Não tem mal, avó. Desculpa não te deixar dormir. Boa noite.
A matriarca ouviu a neta virar-se para a parede antes de fitar o teto, congelando na posição em que passaria a noite.
— Boa noite, querida.
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