O Que Há de Mais Sagrado em Histalia
As montanhas que compunham a cordilheira de Ghíscar eram casa de uma nação inteira, apesar das elevadas altitudes. Todo o reino de Histalia estava assente nos imponentes gigantes de pedra, com as suas fronteiras a oscilar entre os sopés e as áreas planas a poucas dezenas de milhas das raízes da cordilheira.
Seguindo o trilho que levava às galerias onde os Trekaris faziam os seus ninhos, Link olhou Histal. Havia vida e movimento, ainda que menos animado do que antes do ataque do Deserto. As ruas enchiam-se com mais crianças do que o normal, vindas das cidades e aldeias da região sul, mas as suas brincadeiras eram menos alegres e espalhafatosas. Os estabelecimentos estavam fechados ou com pouca clientela, refletindo a ausência das gentes e as dificuldades dos tempos. O mercado perto da fonte central não tinha os habituais panos de tecidos coloridos e padrões extravagantes que encimavam as tendas e bancas por esta altura do mês. Em vez disso, estava reduzido a meia dúzia de montras sem toldo dos vendedores locais, agora sem concorrência de comerciantes de outras nações ou mesmo das zonas nortenhas de Histalia.
Os moradores e os inquilinos temporários trocavam lamentos entre si ao passarem por amigos ou conhecidos nas ruas e avenidas, numa tentativa de aliviar a dor que a ausência prolongada dos homens e mulheres alistados no exército da nação provocava. O templo de Banna, já de si bastante concorrido, rebentava pelas costuras naqueles dias, inundado de fiéis que se perdiam em rezas, mesmo depois das Cerimónias de Adoração. Todos queriam pedir a Banna que os seus familiares nas frentes de batalha entendessem as suas próprias contradições, as dos seus inimigos e as do próprio mundo. Só assim adquiririam uma plenitude de espírito que lhes permitiria vencer as suas provações.
O par de sombras que cobriu Link numa passagem de fugazes instantes fez com que tomasse atenção ao caminho à sua frente. Na sua distração, não tinha reparado ter alcançado as galerias onde os Trekaris construíam as suas colónias.
As criaturas aladas eram os únicos vestígios da magia que desapareceu do mundo que ainda persistiam em Histalia. Todos os Deuses tinham deixando uma herança sagrada aos seus descendentes quando abandonaram o mundo terreno, regressando definitivamente ao Jardim Divino. Soharis, a Deusa da Clareza venerada pelo Deserto, deixou aos seus filhos o sangue que lhes corria nas veias e que Link sabia agora ser muito mais do que um simples mito. Banna, o Deus das Contradições, deixou aos humanos que o seguiam os Trekaris. Considerados os "Filhos do Deus da Montanha", as criaturas sagradas eram veneradas e respeitadas pelos histalianos como se fossem uma extensão do próprio Banna.
Nas terras do reino, ouvir o chamamento de um Trekari é a maior das bênçãos, equivalente a ser escolhido por Deus para, com a ajuda dos seus preciosos filhos, zelar pela segurança da nação. Por vezes, ter uma ligação com uma daquelas criaturas permitia até que uma criança comum fosse educada como realeza e que pudesse disputar a sucessão da coroa. Tahel, um amigo de infância dos Rozhira e príncipe por direito divino, tinha sido uma dessas crianças.
Link olhou para uma das inúmeras entradas das galerias escavadas nas montanhas, sentindo um aperto no peito.
Tahel nascera numa aldeia perto da fronteira Oeste de Histalia, no ano entre o nascimento da Rue e da Nimka. Um sacerdote de um dos templos menores de Banna trouxe-o para Histal quando ele, desdentado, com roupas esfarrapadas e joelhos esfolados, disse aos pais que ouvia alguma coisa a chamá-lo no coração da montanha. Depois de conseguir estabelecer um vinculo com Orlyn, a sua Trekari, e passar na prova eliminatória, Tahel foi o único a disputar a coroa com os Rozhira e a filha mais velha dos Solatus, também ela qualificada.
Como ditava a tradição, os príncipes tiveram de enfrentar várias provas e desafios, algumas com a nação como audiência, outras na quietude das bibliotecas do Palácio. Os sacerdotes de Banna, encarregues da organização da seleção do herdeiro da coroa, declararam Tahel como 4º classificado tendo, por isso, ficado como um dos braços direitos de Link na divisão de Trekaris do exército do reino. Porém, agora jazia morto, algures debaixo de um sem fim de grãos de areia. Ele e Orlyn tinham sido duas das poucas baixas que o esquadrão teve na tentativa falhada de subjugar o Deserto e eram mais um par de vidas que Link se via na obrigação de vingar.
O jovem sentiu que Myriu se aproximava por detrás de si através da ligação que partilhavam. Contudo, um chamamento numa outra frequência e um outro bater de asas, num ritmo alternado com o da sua companheira bestial, diziam-lhe que ela não estava sozinha.
Voltando-se, Link estendeu as mãos para acolher as aterragens da sua Trekari e de Inx, o companheiro do seu pai. Como era característico dos machos da sua espécie, Inx era mais pequeno que Myriu, com uma pelagem mais uniforme e apática e as hastes menos ramificadas. Porém, tinha a mesma aura de predador, com garras e presas afiadas, uma envergadura impressionante, uma estrutura óssea a emoldurar as orelhas grandes e arredondadas, que se projetava do centro da cabeça como chifres aguçados, e um tamanho que impunha respeito.
Link afagou brevemente o macho atrás da coroa de penas inconstante pelos anos, tentando transmitir algum conforto. A ausência de Tyredon não estava a ser fácil para Inx e o tufo de pelos acinzentados que ficou na mão do príncipe depois do suave toque no seu dorso era prova disso. Em seguida, virando-se para a origem de um resmungo, o humano deu a sua atenção indisputada à sua companheira.
A fêmea fechou os grandes olhos topázio quando encostou as hastes que lhe adornavam o focinho felino na testa do seu humano, num cumprimento silencioso. Link, não resistindo às saudades, enterrou a cabeça e os braços nas penas que lhe adornavam o pescoço, abraçando Myriu.
— Estou de volta. Desculpa a demora, Myr — suplicou. — Perdoa-me.
Ela grunhiu suavemente antes de, com uma turrinha, o provocar. O príncipe, ciente das suas intenções, conseguiu deixar de lado o seu pesar e soltar uma gargalhada sentida. Com um salto, subiu para o dorso nu da sua companheira que, agachando-se, tomou impulso para subir aos céus.
Durante vários minutos, o par sobrevoou Histal. Inx acompanhou-os de perto, convidado por Link a usar as correntes de ar como forma de aliviar a ansiedade. Juntos apreciaram a paisagem, fizeram manobras e piruetas e disputaram corridas, procurando ver qual a criatura mais veloz. E quando por fim tornou a colocar os pés no chão, convencido de que se tinha excedido no tempo de abstração, Link sentiu-se de novo ele próprio. Não o General que deveria ter protegido Histalia, não o irmão que permitiu que Kato morresse, nem o príncipe que deixou uma nação inteira desamparada. Apenas o Link, um jovem que gostava de sentir na pele a sensação de rasgar as nuvens quase tanto como adorava sentir o peso da sua lâmina ao cortar o ar. Um jovem ligado a uma das maiores e mais dominantes Trekaris da colónia matriarcal, com a qual reavivara o laço há muito dormente apenas com aquele voo.
Mas a sensação foi sol de pouca dura. A Rainha Ariadne tinha subido o trilho íngreme e traiçoeiro para os esperar na entrada das galerias, deixando a dama de companhia inúmeros metros mais abaixo, no local onde os ladrilhos que partiam do palácio davam origem à gravilha sobre a camada de terra batida que cobria a rocha sólida.
— Mãe — cumprimentou Link, estranhando vê-la ali. Raramente pessoas sem conexão se aproximavam dos ninhos de Trekari, especialmente por serem tão poucos os que tinham permissão para fazê-lo. — Eu já ia descer, não precisavas de ter vindo.
A mulher olhou-o de alto a baixo, fixando por instantes o brinco que balouçava da sua orelha com uma infeção ensanguentada antes de dar atenção a Inx. O Trekari aproximou-se cautelosamente, expondo o flanco ao envolver Ariadne com a cauda. A Rainha, sorrindo com compaixão, satisfez aquele desejo silencioso, afagando a perna traseira que terminava com um coto na articulação entre a tíbia e o fémur.
Por vezes, Link tinha dúvidas quanto à relação que existia entre os pais. Ainda que houvesse sorrisos e ocasionais gargalhadas, os monarcas eram muito discretos e formais entre si, pelo menos na presença de terceiros. Porém, bastavam cenas como aquela para ter a certeza que o pai amava a mãe, mesmo que não o gritasse aos quatro ventos.
Os Trekari não fogem de contacto humano, mas têm as suas reservas quanto a pessoas que não têm qualquer tipo de vínculo com os seus semelhantes. Contudo, as pessoas com quem os seus humanos partilham o coração têm um tratamento diferente. Com a perfeita sintonia entre o humano e a sua companhia bestial, o amor que o cavaleiro sente por alguém é partilhado com a sua montada, vinculando um afeto sem motivo aparente. E até Inx, com a sua idade avançada e humor a condizer, era capaz de tratar Ariadne com o mesmo afeto que dirigia a Tyredon.
— O teu tio e a tua irmã estão de volta. O Nazum disse que tinha qualquer coisa sobre a retaliação ao Deserto para falar contigo — proferiu ao fim de um tempo de silêncio.
Nazum Solatus poderia ser o mais poderoso dos três duques do reino e a posição de Ariadne como monarca poderia exigir que ela o endereçasse com respeito e formalismos, mas sempre que se encontrava sozinha com a família, a mulher voltava aos seus hábitos de infância e referia o seu irmão pelo nome próprio, como se nada tivesse mudado com o passar dos anos. Como se a diferença de estatutos fosse insignificante e ela não se tivesse casado com um príncipe, agora Rei, adotando o apelido Rozhira ao se tornar Rainha.
— Podias ter pedido a um criado ou a um mensageiro que me viesse notificar — bufou o mais novo, acariciando Myriu uma última vez.
— Eu vim porque quis.
Inx terminou o contacto, de certa forma incomodado, e Ariadne ficou a vê-lo afastar-se, com um misto de saudade e pesar no olhar. Saber que o Trekari estava vivo alegrava-a com a de certeza de que também Tyredon se mantinha neste mundo, adiando o início da sua estadia no Jardim Divino. Porém, a ansiedade da criatura aflorava nela a preocupação nascida da incerteza. Tal como nas alturas em que a quietude dos salões abafava os seus pensamentos e o escuro silencioso dos seus aposentos a engolia, a sua mente vagava ao olhar para Inx, imaginando mil e uma situações que o seu marido poderia estar a viver naquele momento, cada uma mais medonha e aterradora do que a anterior.
Por uns instantes, Ariadne cerrou os olhos. Depois, afastando o medo que se agarrava de novo ao seu ser como uma criança birrenta que se pendura nas saias da mãe, a Rainha tornou a encarar o filho. Ao fazê-lo, escondeu da vista de Link o brasão que, apesar de diferente do restante da família, ele conhecia como a palma da sua mão. Em pequeno, sempre que Ariadne o acolhera no regaço, os seus pequenos e travessos dedos infantis tinham levado o seu tempo a delinear aquele traçado, vezes e vezes sem conta.
Os príncipes e o Rei de Histalia carregavam nas maçãs do rosto uma montanha assente numa pena de Trekari, numa simplificação do brasão de armas do reino. Os consortes, como Ariadne, usavam no pescoço uma montanha encimada por um par de hastes das criaturas sagradas, para simbolizar o seu papel na proteção e liderança do reino apesar da ausência de ligação de sangue à coroa.
— Deverias descansar mais uns dias, filho. Todos queremos que isto acabe depressa e que o teu pai e a Mestre de Segredos retornem sãos e salvos, mas ainda agora acordaste. Não quero...
— Mãe — cortou Link.
De expressão grave, ele aproximou-se da mulher que lhe deu vida, oferecendo-lhe o braço para a escoltar. As criaturas sagradas, vendo-os de saída, retornaram para os seus ninhos e para a companhia do resto da sua colónia.
— Não te preocupes, eu sei o que estou a fazer — disse, tentando transmitir a confiança que não sentia realmente. — Não tarda o pai estará de volta e tudo isto não terá passado de um feio pesadelo. Em breve, as coisas ficarão mais calmas, Majestade — rematou, como se quisesse colocar entre eles distância suficiente para evidenciar os seus cargos e deveres para com a nação.
Ariadne encarou o filho com olhos capazes de descobrir mais segredos do que aqueles que ele gostaria de revelar. Porém, nada disse ao aceitar o seu braço e começar a caminhar de retorno ao Palácio, deixando por dizer as suas preocupações com o único filho varão ainda vivo. O moreno tinha um grande peso nos ombros mas, mesmo que ela não gostasse de o admitir em voz alta, uma coisa era certa: sem Arietta, só o Link, General de Histalia e segundo príncipe do reino, os conseguiria salvar a todos naquele momento.
Desceram o trilho em silêncio, com a dama de companhia da Rainha vários passos atrás, numa postura elegante mas subserviente. Todos à sua passagem lhes dirigiam vénias respeitosas, ao que mãe e filho correspondiam apenas com um vago sorriso e uma cortesia de cabeça. Estavam ambos demasiado imersos nos próprios pensamentos, andando distraidamente pelos jardins do Palácio e pelos corredores alcatifados até à ala principal do primeiro piso.
— Devia deixar-te trabalhar — disse Ariadne tristemente, estacando na entrada do corredor que dava para o salão de reuniões .
Link compreendeu o clima estranho que se tinha formado entre eles por sua causa e apertou as mãos da mãe nas suas. Por muito que se voltassem a ver daí a algumas horas, quando a criadagem servisse a ceia, ele detestaria deixar Ariadne naquele estado por mais um minuto que fosse.
Contudo, não teve oportunidade de verbalizar o seu pedido de desculpas e as palavras sinceras que se seguiriam.
— Link! Mãe!
Nimka percorria o corredor com passos leves e uma agilidade felina, a túnica que a cobria a flutuar com cada passada, num ir e vir ritmado, e as contas que adornavam as tranças, agora presas num rabo de cavalo, a deixar como rasto o eco do seu embate. Atrás de si, assertivo mas descontraído, seguia um homem de cabelos grisalhos, entretido a retirar as grossas luvas que tinha calçadas, a espada à cintura a balouçar na sua bainha. O chamamento da mais nova atraiu a sua atenção, prendendo o seu olhar claro, algures entre o cinzento e o verde, no par de monarcas no meio do corredor.
— Majestade, Alteza — cumprimentou o mais velho, fazendo a vénia ao estacar diante deles.
— Que prazer revê-lo, Duque Solatus — retribuiu Link, mantendo as formalidades, antes de se deixar envolver pelos braços de Nimka, que não perdia uma oportunidade para ignorar os protocolos.
Ariadne, ciente de que tinha apenas olhos e ouvidos de confiança à sua volta, deixou a familiaridade aflorar, amenizando o clima.
— Irmão Nazum.
O Duque de Solatus abanou a cabeça em repreensão.
— Uma Rainha não deve tratar os súbditos com títulos nobiliárquicos apenas pelo nome, Ari — disse, com misto de condescendência e divertimento a arquear ligeiramente os seus lábios rosados.
— Uma Rainha pode fazer o que bem lhe apetecer, Naz — retrocou, evocando a criança que um dia fora por breves instantes ao cair deliberadamente naquela tentativa descarada de acender uma antiga picardia.
Ao ver o sorriso esbatido de Ariadne, o semblante do Duque retomou a neutralidade. Contudo, por dentro, sentia-se aliviado.
Ela podia ter percebido a sua tentativa indiscreta de a animar e poderia ter correspondido apenas para não o preocupar, mas ver a sua irmãzinha sem os vincos da angústia no rosto retirava-lhe um peso do peito. Desde a tragédia que a vida de Ariadne não tinha cor e havia pouco que se pudesse fazer por ela para tentar aliviar aquele fardo de dor e ansiedade. Só agora, com o despertar do seu sobrinho, é que um novo ar parecia varrer os corredores do palácio, levando para longe o aroma fétido da morte e da desgraça.
— Folgo em ver-te desperto e sem sequelas, Link.
Nimka afastou-se do irmão, dando espaço a Nazum para assumir o seu lugar num abraço saudoso.
— Obrigado, tio. Por tudo.
O príncipe apertou-o uma última vez. Ao sair do enlace, os seus olhos encontraram a mãe e a irmã antes de devolver a atenção ao mais velho.
— Posso ter estado inconsciente, mas sei que o lado Rozhira da família e este reino devem muito à Casa Solatus. Quando esta situação estiver resolvida, terei a certeza de encontrar recompensa adequada.
O tio dispensou o elogio com um gesto de mão.
— A Casa Solatus nada mais fez do que cumprir o seu dever. Tanto eu, como a minha esposa e os meus filhos ficamos honrados de poder dar tudo por proteger Histalia e os histalianos.
Pelo canto do olho, Ariadne captou o gesto discreto que a sua dama de companhia lhe endereçou e, reconhecendo o significado, interrompeu a conversa de família.
— Por falar na tua esposa, caro Nazum, terei de me retirar. A Regen está à minha espera para discutirmos a acomodação das povoações do sul nos arredores de Histal. Mando servir a ceia para todos? — rematou, encarando o irmão mais velho.
Nazum olhou Link de soslaio. Tinha muita coisa que reportar ao sobrinho e, conhecendo-o como conhecia, teriam inúmeras horas de planeamento depois disso. Se chegasse a sair do Palácio, provavelmente seria bem para lá das horas normais da última refeição. E, tendo em conta ocasiões anteriores, por essa altura a Regen estaria demasiado exausta para atravessar a cidade de volta ao seu palacete. Sempre que a mulher e a irmã discutiam a distribuição de comida, o acolhimento de órfãos e refugiados ou a assistência que se deveria dar às famílias dos que faleciam ao serviço de Histalia, Regen Solatus, já de si bastante fraca, ficava de rastos. No seu esforço e aflição, a sua esposa dedicava-se às questões em mãos até as dores de cabeça mal a deixarem abrir os olhos e o seu espirito aparentar ter sido devorado por alguma besta.
O mais certo e prático era terem de voltar a passar a noite ali, numa das alas dos convidados.
— Agradecia.
— Muito bem. Mandarei preparar também um quarto, caso decidam ficar connosco. Eu e a Duquesa estaremos no Salão de Cristal, se necessitarem de alguma coisa — esclareceu, antes de desaparecer com a dama de companhia na direção da estufa fria nos jardins onde a cunhada a esperava.
Depois das vénias de cortesia, o Duque e os seus sobrinhos seguiram Ariadne com o olhar até a verem desaparecer no fundo do corredor, depois de dobrar a esquina com a Baronesa que a servia como dama de companhia há décadas.
— Dado a ineficácia das negociações até agora, deduzo que o próximo passo seja atacar o Deserto. O que vai ser de Histal na nossa ausência? — perguntou Nazum, o seu instinto de proteção a falar mais alto que a sua vontade de acabar com aquela situação de imediato. — Estás a pensar dividir as nossas forças?
Link suspirou.
— Não temos outro remédio. O meu pai fez questão de só podermos contar connosco próprios — sentenciou, ganhando uma careta de constrangimento da irmã e do tio.
Tyredon era um monarca capaz de trazer prosperidade a Histalia. A sua visão e as suas políticas tinham-no ajudado a investir nas áreas certas do reino e a formar valiosos acordos mercantis com outras nações, fazendo Histalia crescer. Porém, o seu temperamento era o seu pior inimigo. A sua índole naturalmente ranzinza e irascível tinha resumido a maioria das relações diplomáticas a acordos comerciais e conexões de cortesia que Rue tinha conseguido salvar com o tempo, não havendo por isso nenhum tipo de aliança ou tratado para ajuda militar com o estrangeiro.
Politicamente, ninguém estenderia a mão a Histalia porque o Rei Tyredon, plenamente confiante no poderio do seu exército, nunca se preocupou em acautelar algum desastre como aquele que agora se vivia. Porém, pela mesma razão, era pouco provável que quisessem atacar Histalia quando esta estivesse focada no seu conflito com o Império do Deserto. A topografia íngreme colocava os nativos em vantagem e todos os segredos que se escondiam nas galerias das montanhas, e que Tyredon fizera questão de exagerar, semeavam dúvida suficiente para dissuadir os menos determinados.
Mesmo assim, era melhor prevenir do que acreditar na boa vontade de terceiros e acabar a remediar a situação. Já tinham cometido esse erro uma vez, não se podiam dar ao luxo de o repetir.
— Não precisas de abdicar de muitos efetivos, Link. A Guarda da Rainha é suficiente para defender Histal, já que conhece cada recanto e beco desta cidade — interveio Nimka, com uma súbita onda de confiança espelhada no seu sorriso arisco. — Para além disso, a Rue pode coordenar alguns arqueiros para não deixarmos as fronteiras desamparadas.
Link concordava que o lugar das suas irmãs era longe da frente de batalha. Porém, não era apenas devido ao seu medo de que algo lhes pudesse acontecer, à semelhança de Kato. Era também estratégia.
Nimka era a Capitã mais nova do exército de Histália. Apesar de não ter experiência efetiva em nenhuma situação de guerra, a jovem era exímia nas suas funções de proteção, pelo que deixá-la para trás com a sua Guarda poderia ser suficiente para salvaguardar Histal. Por seu turno, Rue era não só uma excelente diplomata, sabendo mais de planeamento do que propriamente de combate, como uma arqueira muito mais dotada do que ele próprio. Se conseguisse dispensar alguns arqueiros e Trekaris para ficarem sob o seu comando, teria um destacamento de contingência, pronto a atuar em qualquer frente, na eventualidade de algum imprevisto, salvaguardando a segurança de Histalia e a sua própria paz de espírito.
De qualquer forma, não se poderiam dar ao luxo de colocar todas as criaturas sagradas do reino em perigo. Se não sobrassem criaturas nas colónias, os Trekaris extinguir-se-iam, arrastando os histalianos consigo pouco depois.
— Certo. Podemos definir uma estratégia que deixe alguns esquadrões aqui com vocês, para ajudar a proteger e a coordenar as operações. Também é bom termos uma força extra que se possa juntar à batalha em caso de necessidade.
Nimka sorriu, feliz por não ter de discutir com o irmão para se sentir útil ao reino na sua hora de maior aflição.
— Vamos ter muito trabalho pela frente. É melhor não perdermos mais tempo — declarou Nazum, estendendo o braço num convite silencioso para se dirigirem ao salão de reuniões.
Link conteve um suspiro ao começar a andar, ladeado pela irmã e pelo Duque. Ainda tinha de terminar de ler os relatórios e de se atualizar sobre a vulnerabilidade das fronteiras, o estado das outras províncias de Histalia e a atitude dos outros duques do reino antes de poder divisar um plano com os seus oficiais. Mesmo que tivesse de aguardar o retorno dos irmãos Solatus e que Atticus reunisse todos os sobreviventes que pudessem contribuir com os seus testemunhos, era muito trabalho para fazer e pouco tempo para o executar.
Mas Link tinha que fazê-lo, desse por onde desse.
O desfecho daquela contenda dependia grandemente das suas decisões.
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