O Plano Onírico

Allya rodou de repente o corpo para o lago quando um ruído a apanhou desprevenida. Ao fazê-lo, teve oportunidade de ver uma figura masculina a ultrapassar a superfície aquática com um movimento brusco de cabeça. Depois, passando a mão pelo cabelo encharcado, o homem começou a sair da água, caminhando na sua direção. 

A intensa luz da lua que reinava naquela noite limpa permitiu a Allya reconhecer, ainda a uma certa distância, que o homem na água era Link. Feliz por o rever, ela abriu um sorriso. Ele, reconhecendo-a na margem, correspondeu.

Allya ficou a vê-lo sair até perceber, pela contínua revelação da sua pele bronzeada, que Link estava nu. Constrangida, virou o rosto mesmo a tempo, questionando-se a si própria porque razão não reparara nas roupas dobradas no chão mesmo ao lado dos seus pés.

— A água estava boa? — perguntou com esforço, afastando-se para dar espaço a Link de recuperar a sua indumentária sem que ela visse mais pele e anatomia do que aquela que deveria. Interiormente, Allya rezava para que a voz não tivesse saído tão afetada como lhe tinha parecido.

Link agachou-se na relva, rindo.

— Desculpa, não percebi que já era tão tarde. — Levantou-se e usou o casaco para tirar o excesso de água do corpo, olhando de soslaio para a sua companhia. Allya ainda se encontrava de costas, numa tentativa de lhe dar privacidade. — A água está ótima. Gostarias de experimentar por ti própria?

Ao ouvir aquilo, a sua respiração ficou-lhe presa na garganta e as suas faces entraram em combustão. Felizmente, Allya estava de costas para Link e este não conseguia ver no seu corpo as evidências dos pensamentos suscitados por aquela simples sugestão.

— Deixa estar... Eu não sei nadar — justificou por entre o barulho dos tecidos. 

Tinha-lhe ocorrido também que ficaria extremamente exposta e próxima daquele belo homem, que para todos os efeitos ainda era um perfeito estranho, e que o vestido negro, assim como o pouco que usava por baixo, não eram apropriados para nadar. Porém, Allya deixou-se ficar pela razão mais simples e menos embaraçosa.

— A sério? — Ela fez um murmúrio de confirmação e Link, lembrando-se da noite anterior, olhou para ela de relance sobre o ombro antes de vestir a camisola. — Não sabes porque nunca te ensinaram ou porque não tens sequer lugar para aprender em Erysa?

Ela apertou as mãos uma na outra, incapaz de descrever aquilo que sentiu quando Link provou que estivera atento às suas palavras e que se lembrava.

— Existem alguns corpos de água relativamente grandes em Erysa, mas ninguém nada neles. Para ser sincera, não sei se alguém sabe sequer nadar.

— Nunca ninguém tentou? — O tom de voz dele transpareceu confusão.

Allya suspirou e olhou o céu estrelado sobre a cabeça.

— A água é maioritariamente para consumo. Conseguimos utilizar os fungos que crescem nas margens para a purificar se, por algum motivo, a água vier suja, mas... — Encolheu os ombros. —Além disso, mesmo que não fosse para beber, não teríamos muito tempo para aprender a nadar e a por essas técnicas em prática até nos ser atribuída a nossa função na sociedade. — O seu olhar desceu para as suas mãos abertas. A sua profissão era facilmente denunciada pelas unhas partidas e irregulares, e pela pele áspera e marcada das suas palmas. — A infância acaba muito cedo em Erysa.

Link olhou as costas da mulher à sua frente, tentando avaliar o peso que ela carregava diariamente pelo cansaço da sua voz e pelos ombros descaídos.

— Isso é tão deprimente — murmurou, avançando cautelosamente na sua direcção. — Queres que te ensine, para saberes o que andas a perder? — acrescentou num tom mais divertido.

Ainda de frente para a superfície do lago, Allya sorriu timidamente. Os pensamentos obscenos de antes tinham regressado.

— Obrigada, mas talvez noutro dia — respondeu, rodando a cabeça de lado, mas mantendo os olhos no chão, não inteiramente ciente de que Link estava mesmo atrás de si.

O homem de cabelos azul-índigo sorriu perante a distração da ruiva e agarrou suavemente no seu queixo com o indicador e o polegar, voltando-a completamente para si.

— Já podes olhar.

O corpo de Allya seguiu a sua cabeça. Por rodar tão de repente sobre as pontas dos pés, a jovem viu-se obrigada a colocar ambas as mãos sobre o peito de Link para se equilibrar, constatando assim a pouca distância que separava os seus corpos. O seu instinto dizia-lhe que deveria recuperar a distância de segurança, mas os dedos de Link mantiveram-se no mesmo lugar e o seu olhar acabou perdido nas contas acinzentadas a alguns centímetros acima da sua cabeça.

Allya estudou o homem à sua frente, absorvendo cada detalhe do seu rosto, não percebendo que abria um sorriso cada vez maior no processo.

— Está tudo bem? — perguntou ele com divertimento. Involuntariamente, a sua expressão facial espelhou a da ruiva, desde a curvatura dos lábios até ao brilho no olhar.

— Sim, está. Só estou muito feliz por te ver novamente.

A mão bronzeada de Link mexeu-se lentamente, permitindo-lhe acariciar a bochecha pálida dela com o polegar. Ainda que confusa com o gesto, Allya deixou-se levar, inclinando-se um nadinha para o seu toque, apreciando o calor confortável que sentiu.

 — Eu também estou.

Os seus sorrisos tornaram-se tímidos antes do entendimento da situação penetrar as suas consciências. Allya, tomada pelo constrangimento, afastou a face avermelhada do alcance do homem à sua frente. Ele, voltando a si, nada fez para a deter. 

No silêncio da noite, Link deixou cair a mão que mantinha suspensa para agarrar uma das que ela tinha ainda no seu peito. Com delicadeza, ele envolveu o seu pulso e começou a caminhar de costas em direção à árvore, puxando-a. Durante toda a extensão da caminhada, Allya não conseguiu desviar os seus olhos do local onde ele a tocava. Ia de tal modo concentrada naquilo que sentia na zona de contacto entre as suas peles, que nem deu por Link se inclinar para apanhar o casaco encharcado do chão a meio do caminho e de o atirar para um ramo baixo antes de a ajudar a deitar na relva, na sombra da copa frondosa da árvore.

Minutos depois de Link se deitar a seu lado, Allya quebrou a tensão que se fazia sentir no mudo ar noturno, determinada a expurgar a sua curiosidade.

— Onde é que estamos?

A cabeça dele rolou sobre a relva, trazendo fibras verdes agarradas aos seus cabelos húmidos. Allya olhava para cima e ele olhava para ela.

— Dadas as circunstâncias que nos trouxeram aqui, só consigo conceber que estejamos numa dimensão diferente da nossa. — Ele dedicou um olhar rápido à paisagem antes de voltar a centrar a sua atenção. — Estamos, muito provavelmente, no plano dos sonhos. E dado que nunca viste estrelas na vida, acho que fica bastante óbvio que estamos nos meus sonhos.

A atenção de Link estava nas sombras que o luar que se derramava por entre a copa da árvore fazia nas feições de Allya. A dela, porém, estava agora no sentido das palavras dele, depois de tanto tempo sob o domínio do suave ondular das folhas em frente dos seus olhos. Allya nunca tinha pensado no assunto, mas aquela explicação parecia-lhe certeira.

— Eu não me lembro de alguma vez ter sonhado até ontem... — O seu rosto virou-se para Link a seu lado. — Porque é que de repente estou a partilhar sonhos com um desconhecido? Ainda por cima um sonho tão real...

A expressão serena que ele empregava vacilou por instantes. E, ainda que Allya tivesse visto claramente o movimento em torno dos lábios carnudos e o estremecimento das sobrancelhas díspares, ela não era capaz de definir o sentimento que dominara Link antes dele o esconder atrás da máscara de seriedade.

— Para isso eu não tenho respostas... Sei tanto quanto tu.

A mão grande dele aproximou-se da dela, apertando-a brevemente, naquilo que pareceu uma tentativa de transmitir conforto. Ela apenas aquiesceu e ergueu o tronco, retirando a mão do aperto onde tinha estado. Por momentos, parecia que o silêncio voltaria a instalar-se.

— Há, no entanto, uma coisa a que te posso responder.

Com renovada curiosidade, ela desfitou o enorme lago e tornou a olhá-lo.

— Perguntas sobre mim. Aposto que tens um monte delas.

As gargalhadas foram inevitáveis. Link tentou manter-se sério, mas um sorriso escapou-lhe dos lábios.

— O que é? Se ficarmos a saber coisas um sobre o outro, deixamos de ser estranhos. — Link ergueu também o tronco, acabando por ir abraçar os joelhos fletidos. — Ontem contaste-me sobre Erysa. Hoje deixo-te perguntar-me o que quiseres.

Allya aceitou a sua proposta com um sorriso. Ainda que se encontrasse numa situação invulgar, sem saber o como e o porquê de ter vindo parar aos sonhos de Link, o seu instinto dizia-lhe que estava tudo bem. Que era seguro estar ali e partilhar informações sobre si e a sua vida, porque o homem à sua frente não tinha intenções maldosas. Que podia satisfazer a sua curiosidade e fazer um amigo pelo caminho.

Até porque nenhum dos dois fazia ideia de quanto tempo é que aqueles sonhos iam durar. Deviam aproveitá-los enquanto podiam.

— Fala-me sobre o sitio onde vives — pediu docemente. — Fala-me de como é viver num lugar onde não tens a Cúpula sobre a tua cabeça e os cristais de Er a assinalar a passagem do tempo. Fala-me de como é viver debaixo do céu.

— Pensei que a tua primeira pergunta fosse algo mais pessoal. Algo sobre mim — admitiu Link, rindo, fingindo-se ultrajado. — Mas tudo bem. Eu satisfaço a tua curiosidade.

Allya deitou-se de novo, de olhos fechados, pronta a usar a sua imaginação para visualizar aquilo que ele lhe descreveria.

— Eu vivo em Histal, a capital de uma nação chamada Histalia.

— Nação?

Ela abriu um olho para espiar Link, que olhou também para ela, indeciso.

— Como é que eu explico isto? — A sua mão calejada percorreu o seu cabelo, libertando as suas mechas azuladas da relva que se tinha colado entretanto. — O mundo é um grande pedaço de terra que está dividido em pedacinhos mais pequenos. Esses pedacinhos mais pequenos, a que chamamos de nações, têm nomes diferentes, são controladas por pessoas diferentes e têm habitantes de raças diferentes. Porém, são todos grandes o suficiente para terem várias cidades lá dentro. E a cidade principal, que é chamada de capital, é onde se concentram as pessoas que cuidam e gerem a nação. Ficou claro?

Allya fez uma careta.

— Esses conceitos são estranhos para mim, porque Erysa é só uma cidade e não há praticamente nada para lá dela.

Foi a vez de Link estranhar as palavras que preencheram a noite.

— Erysa não tem cidades vizinhas?

— Não. Tanto quanto sabemos, tudo o que existia para além de Erysa desapareceu há imenso tempo. Nós e a nossa cidade somos os únicos sobreviventes.

— Sobreviventes do quê?

A ruiva congelou por momentos, a remoer a informação que tinha partilhado e aquilo que ele lhe tinha perguntado.

— Eu... Não sei, na verdade. As histórias que contam sobre o passado de Erysa não dizem muito mais...

Allya sentiu-se incomodada por não saber responder àquela questão. Sentia que era algo que deveria fazer parte da sua herança cultural, daquilo que era enquanto cidadã de Erysa, mas nunca tivera oportunidade para saber mais ou para ficar curiosa com o assunto. O trabalho depressa se tornou o centro da sua vida e as suas preocupações passaram a ser a recolha de Poeira, o dinheiro para pagar ao Químico e o bem estar da sua família. Tudo para além disso raramente tinha lugar nos seus pensamentos.

Link reparou no incómodo de Allya e desviou a conversa.

— Como é que sobrevivem sem fazer trocas comerciais com outras cidades? Como é que obtêm aquilo que precisam mas não conseguem produzir?

Allya soergueu-se, apoiando-se nos cotovelos.

— Erysa sobrevive com tudo aquilo que produz ou que consegue recolher nas cavernas circundantes. Não temos necessidades que não conseguimos suprimir.

O espanto dominou o corpo de Link, que a fitou com olhos arregalados.

— Erysa é auto-suficiente?

Allya pensou um pouco no significado daquela palavra antes de acenar com a cabeça, como se aquilo não fosse nada de mais. Pelo suspiro derrotado de Link, era evidente que havia outra maneira de uma cidade, ou uma nação, sobreviver. Contudo, ela não via como. Se Erysa não fosse auto-suficiente, já teria colapsado há muito.

— Histalia sonha em ser auto-suficiente. Mas agora que somos uma nação próspera, com mais cabeças do que aquelas que conseguimos alimentar, e que adquirimos hábitos de consumo de bens e serviços dos quais não somos especialistas, não conseguimos atingir esse sonho de independência. E, para dizer a verdade, já poucos vêm sentido nesse sonho antigo.

O moreno voltou a abraçar os joelhos e a fixar o olhar em frente.

— As trocas comerciais que temos dentro da nossa nação e com nações vizinhas permitem-nos descobrir coisas novas. Permitem-nos alargar os nossos horizontes e aprender uns com os outros.

Compreendendo pelo tom de voz de Link que este se encontrava perdido em qualquer coisa que era visível apenas aos seus olhos, Allya deitou-se de pálpebras cerradas uma vez mais.

— As grandes cidades têm mercados onde abundam as mais exóticas iguarias e os mais variados objetos. Onde gentes de todos os povos se reúnem para discutir e negociar nas suas línguas nativas e onde crianças brincam, correndo entre as bancas e a multidão, enquanto esperam pelos pais. Onde quem produz a mais pode obter algum lucro e onde quem tem necessidade pode adquirir o que não consegue produzir. 

» Em torno do mercado encontram-se as ruas de oficinas, tabernas, pousadas e outros estabelecimentos que possam fornecer serviços à população mas que necessitem de estadia mais sólida e permanente. Uma vez que Histalia é uma nação de montanha, todas as zonas de comércio ficam na parte mais baixa das cidades e as zonas residenciais ficam a altitudes mais elevadas. A capital, Histal, é a única cidade de Histalia onde, acima da zona residencial, ainda se encontra o Palácio Real.

— Então, Histalia tem monarquia? — interrompeu Allya, lembrando-se das histórias fantasiosas que ouvira em criança.

Link assentiu, ainda que ela não o tivesse visto.

— Sim. Histalia, como a maioria das outras nações, é regida pelos monarcas e pelos nobres da sua corte. Por ter Rei e Rainha, Histalia é também considerada uma Nação-Reino.

— Ora aí está uma palavra que me é familiar — disse Allya, ainda de olhos fechados. — É bom conseguir compreender agora o que é um Reino de que as lendas e histórias que ouvimos em Erysa falam.

Ele olhou-a. Ainda lhe era estranho as diferenças que existiam entre os seus mundos.

— Como é que é em Erysa?

Allya abandonou a escuridão da sua visão interior e interligou os seus olhares.

— Erysa tem um chefe que é eleito de 10 em 10 anos. Quem tem o cargo é chamado de edil e cada edil escolhe depois a equipa de oficiais que o auxilia na gerência da cidade. Coisa que, tirando algumas excepções, não deve ser muito complicado. Erysa tem sempre o mesmo ritmo e os mesmos procedimentos. Manter a cidade a funcionar é a mesma coisa que manter o mecanismo das fábricas oleado: requer metodologias sistemáticas, mas não é muito exigente.

Link riu com a comparação. Mesmo tendo pedido para a ruiva explicar o conceito de fábrica que lhe era estranho, ele tinha conseguido entender o significado da frase.

— Histalia, e Histal em particular, têm tanto movimento que cada dia apresenta um desafio diferente. Uma vez....

Durante as horas que se seguiram até ao raiar da aurora, Link levou o seu tempo a descrever como era viver em Histalia, contando histórias de aventuras que vivera ou que soubera de outrém. E Allya ouviu-o com a maior das atenções, ciente de que aquela era a única oportunidade de descobrir um mundo para além do seu.

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