Dançando ao Luar

— Estou pronta para a minha aula de dança! 

Link, que até então estivera ocupado com um pequeno cochilo, levantou os olhos sonolentos para a mulher que o acordara. Toda ela era excitação e entusiasmo, contrastando com a sua lassidão. 

— Como desejar, senhorita — disse ao levantar, com um arrastar de voz típico de quem se boceja.

Afastando o sono e recuperando a sua postura galante, Link estendeu a mão teatralmente.

— Dar-me-ia a honra desta dança?

Allya colocou a sua mão sobre a dele, incerta quanto à razão pela qual a sua cara se tornou incandescente. O moreno apanhou a lanterna de sempre do seu canto e conduziu-a colina acima, para uma zona entre elevações e árvores onde o terreno aplanava. Depois de colocar a gaiola da chama que lhes tinha mostrado o caminho no chão, estacou o seu movimento. Com um ligeiro puxão, Link levou o corpo de Allya a parar à frente do seu, a escassos centímetros de distância.

— Mão direita na minha, mão esquerda no meu ombro — disse, sussurrando no seu ouvido.

Os pelos do corpo de Allya eriçaram-se quando aquele tom de voz grave e sedoso atingiu os seus ouvidos, arrepiando-a até à alma. As suas mãos seguiram, a custo, as instruções que lhe foram dadas, hesitando antes de entrar em contacto com o corpo rijo e trabalhado de Link. O moreno, divertido com a sua timidez, fez questão de segurar com firmeza a palma que entrara em contacto com a sua. Quando pousou a mão direita na curvatura das costas de Allya, sobre o tecido negro do vestido, a ruiva estremeceu com a surpresa, tentado fugir. Link olhou de cima para os olhos brilhantes de nervosismo que encontraram os seus, não resistindo ao impulso de os aproximar mais do que o necessário para aquela dança.

— Mantém as costas assim direitas e segue a minha deixa.

Allya refreou a vontade de exclamar que as suas costas só se tinham endireitado pelo susto do toque de Link. Em vez disso, concentrou-se e tentou seguir os seus passos. Porém, mesmo com as explicações e indicações do homem à sua frente, havia uma coisa que ainda a incomodava: por muito que olhasse atentamente para os seus pés, não conseguia evitar pisar o parceiro vez ou outra.

— Desculpa. 

— Não tem problema, não me magoa. — Link libertou a mão que utilizava para segurar a de Allya, levantando o queixo dela suavemente. Quando conseguiu a sua atenção indisputada, o moreno baixou ligeiramente a cabeça e ofereceu-lhe um sorriso. — Mas dançarias melhor se não estivesses sempre a olhar para baixo. Foca-te noutra coisa que não o sítio onde colocas os pés. Tenta entrar no ritmo sem pensares muito no assunto.

Estar assim, com os seus rostos mais perto do que nunca, deixava a ruiva a sentir-se exposta. Parecia estar nua perante aqueles olhos cinza, atentos aos mínimos detalhes, ladrões de seu fôlego e da regularidade do seu coração.

Assim que os dedos de Link voltaram a envolver os seus, Allya olhou de novo para os seus pés, ainda que por meros instantes. De outro modo, não teria conseguido quebrar aquele feitiço que lhe fora lançado e reencontrar a sua voz.

— Não consigo, ainda não apanhei o jeito. Se deixar de olhar, vou pisar-te a toda a hora!

O sorriso que tinha subido pelos lábios morenos dele manteve-se o mesmo, mas o brilho dos seus olhos diminui de intensidade, tornando-se mais afável e divertido.

— Nesse caso... Peço desculpa. — Parando de dançar, Link agarrou Allya pela cintura, levantando-a do chão apenas o suficiente para a colocar sobre os seus próprios pés. — Talvez seja melhor ficarmos assim até sentires que apanhaste o jeito.

A ruiva assentiu quando percebeu a situação e Link tomou o gesto como um sinal para, em passos curtos mas decididos, retomar a dança.

— Com música seria diferente — justificou.

Allya, que deixou de sentir necessidade de olhar para os seus pés, levantou o rosto para encontrar o dele. Mesmo com ajuda, a sua altura diminuta continuava a não ser par para a de Link.

Enquanto as suas pernas se focaram na tarefa de memorizar muscularmente os movimentos necessários àquela dança, os olhos dela tomaram a liberdade de apreciar os traços que compunham as feições de Link. A tão curta distância, a gravura negra que lhe tinha suscitado curiosidade em situações anteriores tornava-se particularmente nítida. Ainda que a luz natural fornecesse pouco contraste entre a pele e a tinta, a jovem podia compreender que os traços na maçã esquerda do rosto de Link formavam símbolos que lhe eram desconhecidos.

— Diz.

Os olhos dela, que estudavam a marca negra com atenção, desviaram-se para encontrar os dele.

— Está escrito na tua cara que queres dizer alguma coisa — esclareceu Link, esforçando-se para conter o divertimento.

— Posso... — Allya respirou fundo e humedeceu os lábios. — Posso perguntar sobre a marca que tens na maçã do rosto?

Ele parou o balanço dos seus corpos brevemente, espantado. A brusquidão da mudança de atitude trouxe à memória da ruiva a estranha reação que tinha recebido quando tocara a gravura de forma inconsciente, dias antes, submergindo-a numa onda de súbita compreensão. Devia ter estado calada.

— Desculpa! — O arrependimento ter eclipsado a felicidade do momento consumiu-a por inteiro, levando-a a encolher-se, envergonhada. — Esquece que perguntei.

Link, parecendo algo sério, negou com um ligeiro abanar de cabeça. Depois, retomou o movimento ao responder.

— É uma simplificação do brasão de Histalia. Todos com uma posição elevada dentro do reino o têm, para se distinguirem dos demais cidadãos. — O moreno fechou os seus olhos por uns segundos, olhando o horizonte sobre o ombro da parceira quando tornou a recolher as pálpebras. — Funciona, acima de tudo, para nos relembrar dos nossos deveres para com a nação.

Allya sentiu, desta vez na pele graças à da inquietação das palmas das mãos de Link, que aquele assunto o deixava desconfortável por algum motivo. Por isso, guardou para si as perguntas que ainda tinha.

— Já estive tempo suficiente em cima dos teus pés — declarou, atraindo a atenção dele de novo para si. — Acho que agora já vou conseguir dançar sem ajuda.

Link pestanejou algumas vezes. Quando as palavras dela lhe fizeram sentido, ele afrouxou o seu aperto, permitindo que Allya voltasse a colocar os pés no chão. Com a diferença de alturas devidamente restituída, ele desmanchou as posições em que estiveram congelados quais marionetas de madeira num pequeno teatro infantil, recuperando a naturalidade.

— Podemos parar, se quiseres — sugeriu, dando espaço à mais baixa. —  Isto sem música fica um pouco chato.

— Se cantares talvez fique menos chato — provocou a ruiva, colocando alguns fios de cabelo rebeldes para trás da orelha.

— Não mereces ser castigada com o meu péssimo talento para música.

— Eu até tentava cantar, mas não conheço a música. E mesmo que conhecesse, não valeria a pena — acrescentou. — Não existe nada que cure o rompimento de um tímpano, pelo que me disse a minha irmã.

Ele cruzou os braços, adotando uma postura intimidante. Contudo, a sua expressão deitava por terra qualquer tentativa de parecer ameaçador.

— Temos de competir para ver qual dos dois é o pior cantor?

— Não, por favor! Nenhum de nós merece o desastre! — exclamou ela, elevando as mãos em rendição.

O ar ficou mais leve. Aliviada por ver o divertimento voltar aos olhos acinzentados, Allya mimetizou a posição na qual estivera a dançar.

— Só mais uma vez. Por favor.

Link assentiu e avançou, encaixando o corpo no de Allya. Ela, ignorante de que a distância que agora os separava era a formalmente adequada, chegou-se para mais perto, recuperando a distância que o seu parceiro tinha imposto inicialmente. Ele, compreendendo esse facto, segurou-a mais perto de si, sorrindo.

— Aqui vamos nós — anunciou, levando Allya a rodopiar antes de iniciar a sequência de passos que lhe tinha ensinado.

Ela, depois de afastar a surpresa do movimento inesperado, muniu-se de confiança, seguindo a deixa de Link sem nunca olhar para baixo.

— Estou bastante melhor, não estou?

Já se tinham passado alguns minutos e Allya, qual aluna dedicada, tinha mostrado uma tremenda evolução. Não tinha adquirido a forma perfeita nem era um símbolo de graciosidade, mas estava muito mais relaxada a dançar.

— Sim. Bastante.

Assim que o elogio saiu dos lábios de Link, o pequeno pé de Allya aterrou sobre o seu. Devido à falta de força e de peso, o gesto não o incomodou. Contudo, a ruiva estremeceu instintivamente, presenteando-o com uma careta hilariante.

— Bem, eu disse que ia conseguir dançar sem ajuda, não disse que o ia fazer na perfeição.

A gargalhada que acometeu a jovem, a somar à sua expressão, teve força suficiente para o contagiar.

— Podemos praticar de vez em quando, se quiseres — disse, forçando as suas mãos a abandonarem o corpo dela. Recuando um passo, Link curvou-se numa vénia costumeira, pondo fim à lição de dança. — Com treino, serás uma excelente bailarina.

Um gesto de cabeça foi a única resposta que ele recebeu. A ruiva, sentindo as consequências de dançar em tensão durante tanto tempo, deitou-se na relva a poucos centímetros de distância da lanterna. Sem precisar de se mexer, ela sentiu os músculos acordarem lentamente à medida que as costas se moldavam ao solo, trazendo-lhe algum alívio para o desconforto.

Allya suspirou em contentamento. 

— Para quê o suspiro?

Ela deixou de admirar a beleza que a noite pintara sobre a sua cabeça para o olhar. Link estava sentado mesmo ao lado da sua cabeça, com os braços atrás das costas, a apoiar o peso do seu tronco.

— Por nada — disse, incapaz de explicar que aquele momento a deixara feliz e que, por uns instantes, se embriagara naquela felicidade sem motivo aparente. — Obrigada pela lição.

 Ele ficou a fitá-la em silêncio e Allya susteve o seu olhar. 

O ângulo de visão de baixo para cima, combinado com a incidência da luz lunar, levaram Allya a conseguir analisar a face de Link de uma forma que nunca conseguira antes. Sob um novo jogo de luz e sombras, ela compreendeu, mesmo àquela distância, que a falha na sobrancelha direita de Link não era natural. Havia uma diferença de pele, um vestígio de um lenho que há muito tinha sarado.

Link coçou a sobrancelha sob o seu escrutínio, acabando por bufar uma gargalhada.

— Não consegues conter essa tua curiosidade, pois não?

Ela franziu o cenho na direção dele, inclinando ligeiramente a cabeça de forma inconsciente. 

— Queres que te conte sobre a cicatriz? — O indicador moreno dele apontou para a área acima do seu olho direito. — Estiveste a olhar para aqui este tempo todo e tens outra vez aquela expressão que fazes quando alguma coisa te intriga.

A surpresa de Allya foi substituída pela vergonha de ter sido apanhada. Apesar dos seus esforços de evitar tocar noutro assunto que pudesse deixar Link desconfortável, a sua expressão tinha traído as suas intenções.

Ela agonizou sobre a resposta que deveria dar. Por um lado, queria ver a sua curiosidade satisfeita. Tudo nele a interessava e a história por detrás daquele gilvaz não era exceção. Por outro, não se sentiria bem se Link voltasse a ser subjugado pela agitação e pela a ansiedade.

Mas ele, alegre por não ser o único a sentir curiosidade pela pessoa com quem passava as noites, tomou a palavra antes que ela pudesse responder.

— Fi-la num dia de chuva. Lembraste do que é a chuva?

Tinham tido uma conversa sobre o assunto há algumas noites, pelo que Allya não teve dificuldade em recordar. 

— É a água que cai do céu. — Ela olhou para o firmamento, coberto apenas de pontos brilhantes num manto negro, aproveitando o exercício para tentar imaginar o fenómeno. — Porque o sol, no seu calor, puxa a água para o céu, formando nuvens. E quando as nuvens ficam demasiado pesadas, elas desmancham-se e chove.

Ele assentiu. Era necessário recordar-se de que Erysa tinha um teto de pedra para o facto de ela não saber o que era a chuva deixar de o espantar tanto.

— Estava a chover muito naquele dia e eu estava lá fora com o meu instrutor há demasiado tempo. Eu ainda era um miúdo e já não aguentava o peso das roupas ensopadas sobre o corpo. Desesperado para acabar com aquele treino de espadas, atirei-me num ataque precipitado e escorreguei. Ia cair diretamente na espada do Otto, o meu instrutor. Se ele não tivesse bons reflexos, tinha ficado com muito mais do que apenas uma cicatriz. A esta hora, provavelmente estava cego do meu olho direito.

— O que são espadas?

Ele olhou para cima, pensativo.

— Sabes o que são facas?

Ela fez uma careta de desagrado que Link por pouco não perdeu.

— Claro que sei o que são. São ferramentas. São lâminas que servem para cortar.

Um aceno de cabeça confirmou que a definição de facas era a mesma para Erysa e Histalia. Link não saberia como responder àquela pergunta se Allya não fizesse a mínima ideia do que eram facas.

— Espadas são semelhantes a facas... — As suas mãos deixaram de apoiar o seu peso para representar a dimensão normal de uma espada. — Mas têm lâminas mais compridas.

A ruiva colocou os braços atrás da cabeça, apoiando o pescoço com as mãos para ficar confortável.

— Para que é que alguém haveria de querer uma ferramenta com lâminas tão grandes? 

— A definição mais correta de uma espada não é ferramenta, mas arma. — A confusão de Allya fê-lo entender que teria de explicar muitos dos próximos termos que utilizaria a seguir. — "Arma" é o nome que se dá a qualquer ferramenta que serve para ataque ou defesa. As grandes nações por vezes têm desentendimentos e acabam por se agredir uns aos outros através dos seus exércitos.

— Já ouvi falar disso! — exclamou Allya, interrompendo a explicação. — As lendas que são contadas em Erysa que envolvem reis também têm exércitos! Não sabia que eles tinham espadas.

— Os exércitos podem ter outras armas para além de espadas, dependendo da sua especialidade. Mas a espada costuma ser a mais comum.

— Erysa não tem nada disso. Somos uma cidade bastante pequena e pacífica. Os nossos desentendimentos não costumam ser resolvidos pela violência, tendo em conta o clima de familiaridade em que vivemos.

— Brandir uma espada não se resume a violência — afirmou Link, sério.

Allya tomou redobrada atenção, sentando-se para poder seguir os movimentos do moreno, que entretanto se levantara.

— Mais do que atacar ou proteger alguém, a espada pode ser usada de forma que não está ligada à guerra. — Link partiu um ramo de uma árvore próxima, quebrando as suas ramificações até adquirir a estrutura semelhante a uma espada. — Por exemplo, quando tomamos em consideração a dança das espadas, tradicional de uma das nações vizinhas de Histalia, vemos que pode ser utilizada como ferramenta de uma representação artística.

Sentindo o peso do ramo, Link começou uma sequência de movimentos, brandindo o fragmento vegetal como se fosse a sua lâmina. Para os olhos inexperientes da ruiva, aquilo parecia uma dança. Porém, Link nunca a aprendera.

 Ainda se lembrava do grupo de homens e mulheres que tinha dançado à sua frente, quando enviados na nação de Axios visitaram Histalia para negociar acordos comerciais. Os seus movimentos coordenados tinham transmitido uma graciosidade e uma destreza que raramente se podia testemunhar, impressionando o moreno. Mas as suas memórias da ocasião, que ficavam cada vez mais vagas com o tempo, não eram suficientes para replicar a coreografia usada para retratar a história daquele reino. Por isso, limitou-se a repetir os exercícios que fazia durante os treinos de combate a solo para transmitir a sua ideia.

Allya, ignorante da verdade, ficou maravilhada com a demonstração.

— Ou pode ser apenas um passatempo, para exercitar o corpo e a mente — disse o moreno, parando no local onde começara.

— Tu fazes das espadas o teu passatempo? 

Link, que tinha atirado o ramo para o chão e passava ambas as mãos pelos fios azul-índigo para retirar o cabelo suado da face, sorriu-lhe.

— De vez em quando. Especialmente se estiver de chuva. — Ele sentou-se de novo no chão, desta vez deixando a lanterna entre eles. — É das minhas atividades favoritas para passar o tempo ao ar livre.

Ouvir a expressão "ar livre" tomou a curiosidade de Allya de assalto, compelindo-a a fazer mais perguntas. E Link, satisfeito, dispôs-se a responder a todas até ao nascer do sol.

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