Céu Estrelado
— Al, anda lá! Já passa da hora!
A jovem continuou enfiada no buraco, concentrada na sua tarefa. Zhou meteu a cabeça na entrada e gritou de novo.
— Allya, não me obrigues a puxar-te à força cá para fora!
O grito fez efeito. A jovem olhou por cima do ombro no túnel minúsculo, encarando o amigo.
— O que é que queres?
Ele arregalou os olhos, incrédulo.
— A Torre da Praça já deu as badaladas, Al. Já são horas de ir para casa.
— A sério? Não ouvi. — Ela voltou-se para a frente, para o seu trabalho inacabado. — Deixa-me só tirar este pedaço e já saio!
Zhou começou a andar em círculos em frente ao túnel, chateado com a demora.
— Como assim não ouviste? As paredes até tremem com as badaladas. — Ele reaproximou-se da entrada do túnel, reparando que ela não se mexera. — Deixa isso! A Poeira não vai a lado nenhum! Ainda vai estar aí amanhã quando cá chegares.
— É só mais este pedaço!
— Allya, eu vou-me embora!
Ele começou a afastar-se. Suspirando, ela cedeu e começou a rastejar às arrecuas para fora do túnel onde estava enfiada.
— Até que enfim! Toma. — Zhou atirou-lhe o seu saco para cima mal ela saiu do buraco. — Agora mexe essas pernas que eu tenho fome e quero jantar ainda hoje.
Revirando os olhos, Allya seguiu o amigo pelo caminho que dava para o coração da cidade de Erysa.
Allya trabalhava todos os dias na recolha de Poeira — o bem mais precioso da cidade — desde que o seu pai adoecera. Não era o trabalho que ela tinha idealizado quando era mais nova, mas o salário era bom o suficiente para a fazer esquecer esse detalhe. Para sustentar a família ela era capaz de tudo: incluindo sacrificar parte da sua felicidade.
— Eu levo-te a casa.
Allya desviou-se de uma mulher carregada de caixas e das três crianças que a seguiam, quase embatendo num homem que se arrastava de volta a casa. Mesmo a uma hora tardia, aquela parte da cidade está sempre muito movimentada.
— Deixa estar, Z. Ainda tenho uma paragem para fazer e não quero que chegues atrasado ao jantar.
Zhou parou no meio da rua, sem se importar com os protestos que recebeu de quem caminhava atrás de si. Ao seu lado, Allya fez o mesmo.
— Tens a certeza? A minha mãe não se importa que eu chegue tarde, se for para te acompanhar.
— Tenho. — Allya deu três passos, colocou-se em bicos do pés e beijou a sua face suja antes de começar a andar de costas na direcção que precisava de seguir. — Até amanhã.
Zhou sorriu e fez uma estranha e cómica vénia.
— Até amanhã, Al.
E depois foi cada um para seu lado.
Antes de chegar a casa, a jovem fez uma paragem no Químico para comprar a nova dose de medicamentos para o pai. Graças à rapidez e eficiência de uma das assistentes da loja, Allya foi atendida em menos de nada e chegou a casa no exacto momento que o seu irmão mais velho, Tentto, servia a comida à familia.
— Estás atrasada outra vez.
— Não, mãe. — Ela pousou o saco na entrada e os medicamentos no móvel do minúsculo corredor antes de entrar na cozinha. — Cheguei mesmo a horas.
O pequeno espaço era maioritariamente ocupado pela mesa grande o suficiente para acomodar a família toda, a qual já se encontrava sentada. Andando no sentido dos ponteiros do relógio, Allya beijou a face da avó, das duas irmãs mais novas, da mãe e de Tentto, que andava atarefado para cá e para lá na cozinha, antes de chegar ao seu lugar.
— Trabalhaste muito? — perguntou o pai com um sorriso.
Allya aproximou-se da sua cadeira de rodas, parada na cabeceira da mesa mesmo ao seu lado e beijou o topo da sua cabeça com ternura.
— Nem por isso. Mais do mesmo.
O pai também tinha trabalhado nas minas a recolher Poeira, necessária para colocar a funcionar qualquer máquina na cidade. Uma vida inteira de mineiro, em posições pouco naturais e a inalar constantemente partículas de Poeira tinham deixado as suas marcas no seu corpo. A mãe de Allya não gostava que esta seguisse as pegadas do pai, mas aquele trabalho era o que mais contribuía para o sustento da família. Contra aquele facto, a mulher não tinha argumentos e ficava em silêncio a ver a sua filha mais velha a percorrer um trilho que ela conhecia muito bem.
Tentto distribuiu a refeição por todos e sentou-se à mesa, dando início ao jantar. Quando terminaram, todos ficaram na mesa por quase mais uma hora, apenas a conversar. Durante o dia nunca se viam, por isso a noite servia para diminuir a distância que as obrigações profissionais lhes impunham.
Passada a hora de conversa, Allya foi tomar banho para retirar do corpo o suor e a sujidade, antes de se dirigir ao quarto que partilhava com as irmãs e com a avó. Depois de aconchegar as mais pequenas e de se certificar que a avó não precisava de mais nada, a jovem passou no quatro dos pais para lhes desejar boas noites antes de parar na porta da sala. Aquela era a maior divisão da casa, apesar de não ser assim tão grande. No entanto, tinha espaço o suficiente para abrir o sofá cama onde o seu irmão Tentto dormia todas as noites.
— Boa noite.
O jovem olhou por cima do ombro para a porta que dava para o corredor. Ao fazê-lo, encontrou a Allya encostada à ombreira da porta, com uma camisa de dormir velha e escura vestida e com o curto cabelo alaranjado molhado e solto. Ele bem que tentou, mas não conseguiu evitar ficar fascinado pela imagem à sua frente.
Tentto tinha sido adotado por aquela família quando ele e Allya eram crianças pequenas. Durante muitos anos ele não nutria por ela mais do que afeto fraternal. No entanto, percebeu que aquilo que sentia por Allya começou a mudar na sua adolescência. Agora que eram ambos jovens adultos, ele com 21 e ela com 20, Tentto sabia que a amava como um homem ama uma mulher.
O jovem sabia que era errado e tentava a todo o custo estrangular aqueles sentimentos, mas era impossível. Ninguém escolhe quem ama. Muito menos o Tentto.
— Boa noite, Al — respondeu com um sorriso.
A jovem não reparou no constrangimento do irmão e sorriu de volta, retornando para o seu quarto em seguida. Estava de tal maneira cansada que deixou o seu corpo dorido cair pesadamente no velho e duro colchão da cama, com cuidado para não acordar ninguém. Ficou por uns minutos a observar pela janela a Cúpula, até já não aguentar o peso das suas pálpebras. Cansada, deixou que os seus olhos fechassem, pronta para o habitual sono sem sonhos.
No entanto, a escuridão familiar que a envolveu não durou muito tempo. Quando deu por si, tinha uma intensa claridade a incomodá-la, mesmo estando de olhos fechados.
Curiosa com a origem de tanta luz, Allya abriu os olhos. E quando o fez, não conseguia acreditar no que via.
Por cima da sua cabeça já não se encontrava o familiar teto rachado e manchado de humidade, mas sim um manto azul escuro pontilhado. Parecia a Cúpula sobre Erysa, mas com muitos mais cristais de Er espalhados em torno de um grande e redondo cristal que derramava uma luz pálida sobre tudo ao seu alcance.
Ao sentar-se direita, ela reparou noutros pormenores: para além da sua velha camisa de dormir ter sido substituída por um vestido preto comprido e cintado, ela também já não estava na sua cama. O chão onde tinha estado deitada era fofo, verde e filamentoso e balouçava levemente com a brisa. Allya nunca tinha visto nada como aquilo.
Curiosa com o lugar maravilhoso onde fora parar, a jovem levantou-se. Mas como ela não tinha grande vista do sítio onde se encontrava, por causa dos montes que a rodeavam como uma muralha, Allya aventurou-se a ir mais longe.
No topo de um monte, ela olhou em volta. A vasta paisagem estendia-se para lá do horizonte, dando-lhe uma sensação de liberdade que a escura e acanhada cidade de Erysa jamais lhe proporcionara.
Em baixo, mesmo à sua frente, a jovem viu um manto de água e, perto do mesmo, um estranho e largo poste com fitas nas ramificações. Intrigada, ela decidiu aproximar-se, olhando constantemente ao seu redor.
Quando finalmente alcançou o curioso objeto, Ally colocou ambas as mãos sobre o mesmo, sentido a sua textura rugosa. Ao olhar para cima, ela mal conseguia ver os cristais da Cúpula por entre as fitas das ramificações.
— Quem és tu? Como é que chegaste aqui?
Allya assustou-se e retirou as mãos do objeto com brusquidão. Ao seu lado estava um jovem mais alto que ela a segurar uma lanterna alimentada com fogo. A luz alaranjada, tão parecida com a tonalidade dos cristais de Er durante a tarde, iluminava-lhe o rosto e permitia a Allya distinguir os seus pormenores, desde o seu cabelo azul escuro, passando pelos olhos acinzentados, até ao corte na sobrancelha direita e ao estranho símbolo negro gravado na maçã do rosto esquerda.
— Eu sou a Allya. — Ela olhou-o de alto a baixo, reparando na sua estranha indumentária. — E não faço ideia de como vim cá parar. Quando adormeci estava na minha cama e quando dei por mim, tinha acordado aqui.
— Tu...
As palavras do desconhecido morreram-se-lhe na garganta. Os seus olhos arregalaram-se de espanto por uns momentos, mas depressa voltaram ao normal. Parecia que, de alguma forma, ele entendia o que se estava a passar. Ao contrário de Allya.
— Porque é que estavas agarrada à árvore? — O estranho desviou a conversa de repente e abriu um pequeno sorriso. — Estavas a falar com ela ou assim?
— Árvore? Então é assim que se chama? — perguntou ela, olhando o objeto com renovada curiosidade, esquecendo por completo toda a bizarrice da situação e as suas desconfianças.
Ele ficou espantado.
— Nunca tinhas visto uma na vida?
Ela negou com a cabeça.
— E as fitas penduradas nas ramificações? — perguntou, apontando para cima.
— São folhas e estão penduradas nos ramos da árvore.
— Oh... — Ela olhou em volta. — E os filamentos no chão?
Ele enrugou a testa, erguendo a sobrancelha mutilada.
— A relva?
— Relva...
Allya afastou-se um pouco do desconhecido, saindo por completo debaixo da sobra da copa da árvore e caminhando até à beira da água. Ao fazê-lo, inclinou a cabeça para trás, sentindo-se de novo maravilhada.
— É tão lindo...
O desconhecido aproximou-se dela sem a sua lanterna e seguiu o seu olhar.
— Vais me dizer que também nunca tinhas visto estrelas?
Ela encarou-o.
— Estrelas? É isso que lhes chamas? — Os seus olhos voltaram-se de novo para cima. — Em Erysa chamamos-lhes cristais de Er. Mas nunca tinha visto tantos juntos, especialmente numa Cúpula tão grande. Nem nunca tinha visto um cristal como aquele — acrescentou, apontando para a fonte natural de luz noturna.
— Cristais? Essa é nova! — Ele riu-se e Allya não achou piada nenhuma. — Os pontinhos pequenos são estrelas e aquele maior é a lua. Mas onde raio é que tu vives? Debaixo de uma pedra? Parece que nunca viste o céu!
Allya sentou-se na relva.
— Por acaso... sim.
O jovem ficou confuso, mas Allya nada disse por uns momentos. Ficou apenas a admirar o céu, a lua e as estrelas enquanto repetia para si mesma as novas palavras.
— Falas-me mais sobre o céu e as estrelas? — perguntou num sussurro.
— Só se me contares o porquê de nunca as teres visto antes.
Allya pensou por uns minutos mas acabou por assentir, sem nunca tirar os olhos do firmamento. E quando ele finalmente se sentou ao seu lado, Allya começou a sua narrativa.
Ela explicou-lhe que a cidade onde vivia, Erysa, estava rodeada por rocha em todas as direções. Não havia nada verde como relva ou árvores. E acima das suas cabeças não havia céu, mas antes a Cúpula — uma porção de rocha impregnada com cristais de Er, que brilhavam intensamente e que mudavam de cor três vezes ao dia: amarelo de manhã, laranja à tarde e azul à noite. Ela não sabia muito bem como é que aquilo acontecia, mas também nunca tinha pensado no assunto ou recebido explicação para tal. Era um dado adquirido. Nunca ninguém se lembrava de o questionar.
Em troca, o desconhecido contou-lhe que as estrelas não passavam de massas de gases de grandes dimensões a explodir que, por estarem a anos luz de distância, demoravam muitos anos até desaparecerem do céu. Contou-lhe que a lua era brilhante porque reflectia a luz do sol, a estrela diurna que completava o par de astros que descrevem uma eterna dança em torno do mundo, numa perseguição inútil e sem fim.
Motivado pela curiosidade dela, o estranho falou-lhe também das constelações, das suas histórias e dos desenhos que formavam no céu, passando as horas seguintes a ajudá-la a identificá-las no firmamento.
Ficaram assim até uma claridade surgir no horizonte, atrás dos montes do outro lado do lago — claridade essa que o jovem explicou ser o nascer do Sol. Mal o céu começou a mudar de cor, os dois deitaram-se em silêncio, a admirar o evento. E, quanto mais claro ficava o céu, mais pesadas ficavam as pálpebras de Allya.
— Estou cheia de sono... Acho que vou adormecer... — comentou ela entre bocejos, virando-se para o desconhecido.
O jovem deitou-se de lado, com a cabeça apoiada na mão e os olhos voltados para ela.
— Podes dormir, Allya.
— Mas ainda... não sei... o teu nome...
Por muito que se esforçasse para manter os olhos abertos e para não arrastar a fala, ela não conseguia. Era mais forte que ela.
A última coisa que Allya viu foi um sorriso.
— Link. O meu nome é Link.
— Muito... prazer...
E o mundo ficou negro outra vez.
Bạn đang đọc truyện trên: AzTruyen.Top