4. Questão de interpretação


A cada passo seu, eu sentia os pelos nos meus braços eriçarem. Eu tinha acabado de saber que, por um motivo desconhecido, Abimael morrera e que agora você era o rei. Você.

Depois de todos esses anos, você.

E eu sequer tinha autorização de dizer "eu sinto muito". De dizer que senti sua falta todos esses anos. E que eu cumprira minha promessa.

Um nó estava se formando na minha garganta e eu tremia tanto que sentia que meus joelhos não seriam capazes de me sustentar.

Mas, em vez de vir até nós, você, de repente, fez uma curva brusca e saiu pela porta lateral de vidro, em direção aos jardins.

Olhei para o seu secretário confusa.

— O que estamos prestes a fazer é ultra confidencial e de extrema importância — ele falou, apalpando o próprio pescoço na região do aperto da gravata.

Então, eu a vi.

Princesa Trícia.

Seguindo o seu exato trajeto para fora do salão.

Eu não queria entender. Lutei para não compreender. Mas entendi.

Pudera. O maldito de terno dourado sussurrou:

— O anúncio deve ser feito hoje mesmo. Assim que Sua Alteza Real de Blek Nordmor aceitar o pedido.

Meus olhos se encheram de lágrimas, incertas se caíam pelo luto por Abimael, pela mágoa ou pela decepção.

* * *

Nós dizíamos que o amor era algo fora do tempo e do espaço. Que nada poderia apagá-lo, nem distância, nem idade. Foram essas as palavras que você me disse, quando consegui fugir para informá-lo que íamos partir:

— Eu vou esperar por você, Lilly! Espere por mim! Nós vamos nos casar.

Palavras de uma criança.

É até mesmo justificável que você tenha esquecido ou desistido.

Eu nem pude me despedir. A decisão dos meus pais de fugir durante a invasão talvez não tenha sido a atitude mais corajosa, especialmente como secretários pessoais do rei e da rainha, mas vamos nos lembrar que eles tinham uma filha pequena para cuidar. E eu não consigo sequer imaginar o trauma de ver pessoas que você ama serem assassinadas diante de seus olhos. Então quem sou eu para julgar?

Embora... pelo que ouvi, você talvez saiba muito bem o que é isso.

Sinto muito. Mesmo.

Sei o quanto você amava seus pais e eu não desejaria essa dor para ninguém. E sei que você passou por muitos traumas. Sozinho. E vivemos décadas, sem notícia alheia, sem sinal de vida, nada que nos unisse.

Mas foi fora do tempo e do espaço que preservei suas memórias. Como o amor que dizíamos ter. Foram ali que elas floresceram e fincaram raízes no meu coração. Para sempre gravadas. Eternamente vivas.

Como você poderia amar outra pessoa?

Eu não conseguia apreender isso naqueles poucos segundos que tive antes de eu mesma sair para o jardim.

A célebre Princesa Trícia de Blek Nordmor estava acompanhada por duas damas de companhia. Com o seu leque, estava fazendo o tipo acanhada, cobrindo parcialmente o rosto, o que em nada combinava com os rumores que corriam por aí. A verdade é que eu estava pré-programada para detestá-la. Mas não queria detestá-la. Se ela seria sua esposa, eu queria, de todo coração, amá-la.

Quando me aproximei, ela estava dizendo para suas companheiras com um forte dialeto típico do sul de Blek Nordmor:

— Parece mais um fazendeiro do que um rei.

E aí minha opinião sobre ela foi formada.

Eu definitivamente a odiava.

Ela percebeu minha aproximação e disse, quase cantando:

— Diga que estou deliciada por conhecê-lo.

Eu me virei para você e disse no nosso idioma nativo:

— Você mais parece um fazendeiro do que um rei.

Como eu disse, eu não me arrependo. Não fui contra o meu juramento: interpretei.

E interpretar envolve muito mais do que apenas traduzir palavra a palavra. Eu transmito conteúdo, significado. Em outras palavras, era isso que aquela vaca queria realmente dizer.

Em nenhum momento, você olhou para mim.

Nem de relance.

Ou talvez já tivesse dado uma espiada, num momento em que eu estava ocupada com a princesa e não me reconhecera?

Como era possível?

Você não mudou nada. Estava exatamente como eu imaginava que estaria como adulto. Sim, as sobrancelhas estavam mais espessas, o rosto mais alongado, os ombros mais largos, o cabelo mais escuro. Mas, ainda tinha a mesma expressão de menino, o menino pelo qual eu me apaixonara.

E, foi com a mesma expressão de menino que você caiu na risada.

— Fazendeiro? — você disse com humor, como se tivesse acabado de receber um elogio. — Que prazer extraordinário conhecê-la, vossa alteza.

Por um segundo, achei que você tinha entendido o que ela me mandara dizer e por isso a resposta tão simpática. Demorou alguns segundos para que eu percebesse que estava sendo sarcástico.

Ou, ao menos, eu desejei entender que era sarcasmo.

Talvez seja por isso que eu tenha traduzido:

— Pena que eu não possa dizer o mesmo.

A cor, que já não era muita, sumiu do rosto da princesa e, por um segundo, realmente achei que você iria perceber o meu esquema. Mas ela se recompôs rapidamente, piscando muito, enquanto uma de suas damas sussurrava:

— Lembre-se o motivo de estar aqui. Você tem uma missão, vossa alteza.

A outra completou:

— Sim, nós já sabíamos que essas pessoas de Detryen são rudes e ignorantes. Não se deixe abater. Pense nas riquezas que ele trará ao seu reino.

Só de curiosidade: vocês realmente não perceberam minha expressão horrorizada no rosto?

Ela sorriu com doçura e respondeu:

— Ora, vossa majestade, entendo que é difícil, mas nós dois sabemos por que estamos aqui, não? Nós temos que pensar nos nossos súditos.

— Eu estou apenas interessada no seu dinheiro, príncipe — interpretei. — Você não passa de uma pilha de moedas de prata a meu ver. Uma casca vazia, um cocô.

Ao pronunciar a palavra "cocô" em detryeniano, a princesa me encarou e eu gelei, certa de que ela tinha me entendido. Afinal, não é tão distante assim do kaka utilizado em Blek Nordmor.

E você? Você até parecia um pouco abalado com a sinceridade da donzela, mas não magoado. Foi aí que percebi que você não se importava. Não era amor que o movia. Nem sequer simpatia.

Você simplesmente não estava nem aí.

Antes que ela dissesse qualquer coisa, no entanto, você apresentou os presentes. 

— Este aqui... — Você estendeu um urso de pelúcia a ela. Aliás, o urso. — Este é o símbolo do nosso povo. O animal que carregamos no brasão de Detryen. É o que estou oferecendo a você.

— Este aqui... — comecei, incerta do que dizer. — Eu trouxe porque me lembra de você. Você tem bochechas tão gordas quanto a de um urso.

Sim, eu posso ter começado a exagerar um pouco a essa altura.

Mas a expressão chocada no rosto da Trícia não tem preço. Desculpe, você está sentindo o castelo tremer? Sou eu ainda dando risada, daqui do calabouço.

Você não se deixou intimidar pela aparente ingratidão. Você apresentou mais um presente. Uma caixinha aberta com um relógio de prata. Não, não um relógio.

O relógio de Abimael.

— Que este relógio seja um símbolo — você falou com gravidade, enquanto tomava o relógio nas mãos e o apertava entre o polegar e a lateral do indicador. — Um símbolo de um amor que existe fora do tempo e do espaço. Um compromisso que não diminui com o tempo. Promessas que não expiram.

O que dizer diante disso, vossa majestade Avner?

Não me entenda errado. Eu poderia facilmente inventar alguma coisa do tipo "isso é um símbolo do fato de que ao seu lado tenho certeza que o tempo vai demorar para passar, porque você é uma chata irritante" ou "um símbolo de como cada segundo ao seu lado será agonizante".

Mas, eu não pude.

Eu nunca soube disso: que palavras podem perder seu valor se repetidas além da medida para as quais foram feitas, ou se investidas em alvos errados, ou se lançadas sem cuidado. Como trapos imundos, desgastados, rasgados, um fantasma dos trajes nobres que um dia representaram.

E foi assim, com tanto descaso, que o "amor que existe fora do tempo e do espaço" perdera todo o significado.

Entende agora, querido? Que me importa uma sentença de morte? Que me importa qualquer coisa? Qual sentença pior do que interpretar estas palavras dos seus lábios para outra mulher além de mim?

As lágrimas já desciam copiosamente dos meus olhos, quando o mundo explodiu em cores e sons. Fogos de artifício e luzes estourando por todos os lados.

Era a passagem de ano que se esgueirara totalmente despercebida.

Num único impulso, você agarrou a mão dela bem diante de mim e a beijou.

Disse:

— Um feliz ano novo para nós dois. Que este seja o primeiro ano de nossas vidas juntos.

Resfoleguei e, em prantos, gritei para a princesa:

— Que se dane nossas vidas, nossos corações, nosso senso de honra! Vamos nos casar! É o mesmo que a morte!

Foi só aí que você me olhou.

Pela primeira vez, realmente olhou para mim.

E eu não quis dizer "sinto muito".

Ou que eu senti sua falta.

Ou que eu mantive minha promessa.

Seu rosto empalideceu e vi seus lábios pronunciarem inaudivelmente:

— Lilly?

— Morte! Morte a nós dois! — continuei a interpretação furiosa, aos berros, para a princesa Trícia que nos encarava obviamente confusa.

Você agarrou o meu braço com força e pelo jeito achou sua voz quando disse:

— Lilly! Lilly! É você? O que está fazendo?

— Eu me demito! — gritei no seu idioma e cuspi.

Foi uma gentileza.

O que eu queria mesmo era bater na sua cara.

— Você não pode se demitir — você gritou de volta. — O que acha que está fazendo?

— Isso? — Bati no seu peito, um pouco menos doloroso. — Você quebra sua promessa por isso?

Foi nesse instante que seus lacaios me agarraram e me trouxeram até aqui.

Continuo perguntando: por isso?

Diga-me, vossa majestade, que tipo de relacionamento planejava ter com sua adorável esposa? Um casamento em que nenhuma parte se digna a aprender uma única palavra no idioma alheio. O que é comunicação entre dois interesseiros, não é mesmo? Será que pretendia me arrastar para a lua-de-mel a fim de traduzir os fingidos auges de prazer da dondoca ou seria capaz de discernir a dissimulação sozinho?

Assino esta minha confissão quantas vezes for necessário. Não me arrependo de nada.

Mas, sinto muito por Abimael. Eu gostava dele. De verdade.

E sinto muito por nós dois.


Sua Lilly


* * *


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