Epílogo

Ainda no laranjal, passado o susto, Silvio lera o trecho de um livro:

"Os Espíritos não tem sexo e quando reencarnam, podem fazê-lo num corpo de homem ou mulher, pois cada sexo, como cada posição social, irá oferecer provas e deveres especiais, bem como diferentes experiências".

Sob aquela ótica, Nancy fora colocada diante de uma possível explicação para homens sentindo-se mulher (ou vice-versa), que ela jamais havia cogitado. A ela, porém, tudo parecia muito forçado e fantasioso. Que fosse uma possível explicação, mas dizer que sempre era assim?

— Nem sempre — tentara esclarecer Silvio —, mas é que nesses casos, o corpo biológico, como acessório do Espírito, quase nunca está em sintonia com a real essência da alma. Ainda que a alma não possua sexo, uma vez tendo vivido mais tempo como homem ou como mulher, quando num corpo que não lhe é habitual, é natural que possa haver uma rejeição...

— Mas então — perguntara Nancy — se eu não quiser ser mulher, pois que desejo ser homem, na verdade teria que aceitar minha condição biológica, sob pena de perder a experiência?

Era uma pergunta difícil, que botava em xeque a teoria. Célia buscara uma saída:

— Não podemos reduzir as coisas a uma só ideia e devemos ainda lembrar, nada nos é imposto, é quase sempre escolha nossa, vir assim ou assado, mas às vezes recuamos diante da escolha. Não acontece a toda hora, fazer escolhas que depois nos arrependemos?

"No teu caso, porém, tenho outro palpite: reencarnar no corpo de uma mulher é uma tentativa de refrear seus instintos masculinos, quem sabe? Você fez muito mal a uma mulher, por causa de ciúmes doentios... Mas não se martirize, Ana já o perdoou. Então, agarre essa oportunidade e faça a sua companheira Lia o mais feliz que puder.

Nancy voltou o olhar com ternura para Lia. Silvio concluiu:

— É, nenhum caso é mesmo igual ao outro. As encarnações servem como evolução e o fato de eventualmente um Espírito não estar em sintonia com o corpo, não tira a oportunidade do aprendizado, afinal a perspectiva do outro gênero estará sempre presente e, por fim, o objetivo último do Espírito é a integralidade das duas essências, a masculina e a feminina.

— Então o Pepeu Gomes tinha razão? — lembrou Nancy da canção num estalo, cantarolando: — "Se Deus é menina e menino, sou masculino e feminino".

Todos gargalharam.

Onofre, do alto de sua cultura, brindou-os com uma linda analogia:

— A anima e o animus! São descritos na escola de psicologia analítica de Carl Jung... Jung descreveu o 'animus' como o lado masculino inconsciente de uma mulher; e a 'anima' como o lado feminino inconsciente de um homem.

Silvio considerara a alusão muito feliz:

— Sim e me faz lembrar de um nobre orador que, partindo dessas premissas, falou de Jesus e de seu lado "animus", quando se mostrava objetivo e enérgico; ou de seu lado "anima", quando se mostrava terno e amoroso. Um Espírito evoluído, com certeza, presentes nele as duas essências.

¤

Quando todos já se preparavam para partir, outro carro fez a curva estrada afora, espargindo poeira para todos os lados. Lia espantou-se:

— Meu Deus, quem é esse doido!

Logo o veículo parava a vinte metros de distância, talvez para evitar que as partículas de terra os envolvessem por completo. Baixada a poeira, um homem saiu do automóvel. Para surpresa de todos, era Sérgio. E no carro de Silvio:

— Ah, estão todos aí? É bom mesmo que estejam todos juntos. O que houve, Silvio? Por que soltou o cabo da bateria do carro?

Havia um ar de intimidação. Silvio ficou sem jeito:

— Eu queria... Eu e Célia... A gente queria falar com Nancy, longe da fazenda.

Sérgio passou levemente a mão sobre a arma no coldre da cintura, em mais um gesto intimidatório:

— E por quê?

— Porque... Célia, falo para ele?

Célia adiantou-se:

— Não queríamos que Lilo soubesse...

Sabiam que Sérgio era um policial estourado, todo tato era necessário, mas parecia sempre difícil que ele dialogasse com civilidade:

— Soubesse do quê? Parem de me enrolar, vocês dois!

Célia resolveu ser contundente:

— Que Lia é a reencarnação de José, o assassino de Ana! Achamos que seu Lilo poderia não gostar de saber disso. Quisemos poupá-lo.

Sérgio soltou uma estrondosa gargalhada, provocando a revoada de passarinhos que bicavam laranjas:

— Célia, chega! Chega dessas tolices!

Célia deu alguns passos na direção de Sérgio. Silvio fez menção de segurar seu braço, mas ela o balançou, como a dizer: "Sei o que estou fazendo, fique tranquilo". Proferiu:

— Do que você tem medo, Sérgio?

— Eu? Do que está falando?

— Tem medo de algo? — insistiu.

Ele riu:

— Claro que não! Sou um policial treinado. Não tenho medo de nada.

— Nem do passado?

Célia, percebendo que o desarmara psicologicamente, ainda que houvesse um 38 em sua cintura, aproximou-se bravamente e segurou em suas mãos:

— Do passado, não é? Por isso está na defensiva, desde ontem? Tem medo que eu descubra algo?

Sérgio estava lívido. Célia seguiu, mais confiante do que nunca:

— Será que ontem, quando Ana disse haver um assassino naquela mesa, ela não se referia exatamente a José, reencarnado como Nancy? Você matou alguém, estou certa?

Toda a pompa e postura policial de Sérgio desmoronaram. Ele não sabia dizer, mas era como se Célia o desnudasse de uma forma jamais vista. Tentou um subterfúgio:

— Para um policial, matar alguém é algo da profissão. Sim, eu matei! Mas foi no exercício da profissão!

Célia sentia em sua voz ainda um tremular que indicava não haver total sinceridade em suas palavras. Arriscou:

— Foi no exercício da profissão, mas não em legítima defesa, não é? E não foi uma pessoa qualquer...

Era incrível o poder que Célia tinha, parecia realmente haver uma força espiritual oculta, a movê-la. Por um momento, todos tiveram essa convicção, principalmente quando Sérgio desabou a chorar:

— Perdão! Eu preciso de perdão. Eu matei o José!

Entreolharam-se, perplexos. Ele prosseguiu:

— Eu o matei... Aquele maldito! Ana Maria, tão jovem, tão linda, tão indefesa, dois filhos no berço... Eu não podia deixá-lo vivo, não podia.

E então explicou: na diligência que buscava encontrar José, foragido após o homicídio de Ana, Sérgio conseguiu adiantar-se a dois companheiros e atirou no infeliz, sem dó nem piedade, dizendo que José o atacara com um pedaço de pau. Mas de uma cerca caída ele próprio retirara um caibro, colocando-o na mão do genro de Lilo.

Célia ainda não estava satisfeita:

— Você tem algo mais a dizer, eu sei. Foi sim no exercício da profissão, mas não exatamente...

Ele não tinha como resistir àquela força:

— Verdade... João Gouveia deu-me muito dinheiro na época para que eu acabasse com o miserável.

Um peso parecia saído de suas costas. Nunca imaginou que revelar seu segredo, de forma tão vexatória, pudesse paradoxalmente trazer-lhe uma paz tão inesperada. Célia abraçou-o, para seu total espanto. Não lembrava de ter tido um abraço como aquele em toda sua vida. Ela sussurrou em seu ouvido:

— A verdade é sempre o melhor caminho. É um crime prescrito, mas você deve satisfações à sociedade. Está pronto?

— Creio que sim.

— Então vá em frente!

¤

— Acreditou em tudo aquilo, seu Onofre?

Onofre desceu do carro, voltando-se uma última vez para as duas:

— Sobre o Sérgio, sim. Já sobre você ser a reencarnação de José... Ao menos explicou os sonhos... Mas de uma coisa eu tenho certeza: jamais, em tempo algum, dona Marieta poderá saber. Ela nunca aceitaria essa explicação como válida. Melhor a pouparmos desse dissabor, o que acham?

Riram, enquanto dona Marieta, de seu portão, avistando a cena, repetia para si mesma:

"Pouca vergonha!"

Fim.

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