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Até o marido Silvio achara que Célia fora longe demais, ao sugerir o que sugerira, temendo pela reação de seu Lilo, pois falar de Ana Maria era quase um tabu na fazenda Rincão, mas surpreendentemente, ele não se importou, declarando:

— Célia, Célia... Que ideia mais maluca. Eu também não acredito nessas coisas, a Bíblia não fala nada disso, sabe? Mas você sempre me diz que Jesus falou que é preciso nascer de novo.

A filha de Lilo, em silêncio até então, rebateu:

— Esse nascer de novo, pai — já falei para a Célia, é em sentido figurado... Apenas representa "abandonar o homem velho, para que nasça um homem novo". É o símbolo do batismo.

Seu Onofre fez um aparte:

— Conheço a passagem. Nicodemos perguntou a Jesus como poderia ver o reino de Deus e ele disse "É necessário nascer de novo". Nicodemos ficou surpreso e perguntou: "Como posso voltar ao ventre de minha mãe e nascer de novo?", ao que ele respondeu: "Não te maravilhes disso, necessário vos é nascer de novo"...

Silvio completou:

— "O vento assopra onde quer e não sabes nem de onde vem, nem para onde vai, assim é todo aquele nascido do Espírito". Parece algo muito complexo, para ser tão somente o simbolismo de uma transformação interior, cujo marco inicial seria o "batismo"... Enfim... Aliás, no meio católico o simbolismo que João, o Batista, estipulou com o "mergulho nas águas", perdeu-se, uma vez que o batismo é feito em tenra idade, a criança ainda não teria o que modificar, nem poderia escolher. Já o adulto, sim.

A filha de Lilo procurou esclarecer:

— O batismo católico acabou por ter um significado mais amplo: limpar a mancha do pecado original, mas, no caso da "resolução interior", para isso existe a Crisma, que seria a confirmação do batismo, quando a pessoa já possui a condição de pensar por si mesma.

Célia sempre parecia senhora de si. Aguardou que todos expusessem suas ideias e completou:

— Que outra explicação podemos ter para os sonhos da Nancy? Para mim, são apenas a recordação do que ela viveu no passado, nada mais. E, se eu estiver certa, que bom, não é, seu Lilo, sua filha estaria de volta à casa que viveu tanto tempo atrás...

Lia, Onofre e Nancy entreolharam-se, lembrando-se das sensações experimentadas por Nancy, quando declarou aos dois ter tido a sensação de déjà vu, ou seja, a impressão de já ter estado ali antes, sendo-lhe tudo tão familiar... Era uma explicação mais do que razoável. Os olhos de seu Lilo brilharam. Ele simpatizara com a moça desde o primeiro momento e seria muito bom, sim, se fosse verdade, que Nancy fosse Ana Maria, mas a filha de Lilo não gostou nada do assunto:

— Olha, Célia, respeito muito a sua crença, mas acho que você não devia colocar caraminholas na cabeça do papai, não acha?

Lilo balançou a cabeça, gesticulando com as mãos:

— Ei, ei... Não vamos brigar... Filha, sou um velho calejado, não vou deixar me enredar por ideias fantasiosas, mas vamos encerrar o assunto por aqui? Ana Maria morreu há muito tempo e não voltou, a gente sabe que não. Ninguém volta da morte.

— E qual a explicação que o senhor dá para os sonhos, seu Lilo? — perguntou Onofre.

— Mistérios de Deus, meu amigo. Mistérios de Deus.

¤

Mas Lilo ficara encafifado com a ideia. Sim, que motivo haveria para aqueles sonhos? Após o jantar, estavam todos em confraternização na sala, preparando-se para dormir. Célia parecia incomodada e Silvio já percebera, conhecendo a mulher, quais eram suas intenções. A sensitiva estava querendo tatear em terreno perigoso e poderia machucar-se com o resultado de suas pretensões.

"Mas quando Célia bota na cabeça, não há Cristo que dê jeito. E ela é orientada por Espíritos elevados, eles sabem o que fazem", pensou Silvio.

— Seu Lilo — iniciou Célia —, eu sei que o senhor é católico, sua filha também, mas eu gostaria de sugerir que nós nos reuníssemos à mesa da sala de jantar e fizéssemos uma oração e uma leitura do Evangelho, que tal?

Lilo, excepcionalmente naquela noite, estava solícito e aberto a novas ideias. Acatou a sugestão, embora a filha não tivesse gostado muito, mas sabia que a ordem do pai sempre prevalecia, pois ele possuía forte ascendência moral sobre todos.

Assim, sentaram-se à mesa: Onofre, Lia, Nancy, Lilo, Célia, Silvio, Mariana (filha de Lilo) e o marido Sérgio, policial militar aposentado — que estivera fora durante o dia, mas chegara à noite, após o jantar.

— Precisamos dar as mãos? — perguntou Lia.

— Não, basta apoiá-las sobre a mesa — esclareceu Célia, sugerindo em seguida: — Vamos buscar nos sentir confortáveis, fechando nossos olhos. Farei uma oração e peço que todos me sigam em silêncio, apenas em pensamento.

Enquanto Célia fazia a prece, uma sensação de paz envolveu a mente de todos. O ato de não repetir em voz alta, deu ensejo aos participantes de refletirem sobre cada palavra que era dita. Célia proferiu, no entanto, um Pai Nosso sensivelmente modificado, mas não menos belo:

Nosso Pai, que estás em toda parte;
Santificado seja o teu nome, pelo louvor de todas as criaturas;
Venha a nós o teu reino de amor e sabedoria;
Seja feita a tua vontade, acima dos nossos desejos, tanto na terra, quanto nos círculos espirituais;
O pão nosso, do corpo e da mente, dá-nos hoje;
Perdoa as nossas dívidas, ensinando-nos a perdoar nossos devedores, com o esquecimento de todo o mal;
Não permitas que venhamos a cair sob os golpes da tentação de nossa própria inferioridade;
Livrai-nos do mal que ainda reside em nós mesmos;
Porque só em ti brilha a luz eterna do reino e do poder, da glória e da paz, da justiça e do amor para sempre!
Assim Seja.

Lia estava encantada:

— Nossa, que lindo, Célia.

— É uma prece baseada no Pai Nosso, de Jesus. Linda, não?

Em seguida, Célia solicitou a seu Lilo uma Bíblia e fez uma leitura de um trecho que, segundo ela, previamente já tinha escolhido. Falava sobre o perdão e da necessidade de o praticarmos.

— "Sede perfeitos como vosso Pai Celestial", disse Jesus. "Ele não faz nascer o sol sobre bons e maus? E não faz chover sobre justos e injustos? Sede, pois, perfeitos como vosso Pai celeste. Não resistais ao mau, amai os vossos inimigos e orai pelos que vos perseguem e caluniam, porque, se amardes apenas os que vos amam, que mérito haverá nisso"?

Célia havia feito um resumo da passagem de Mateus, capítulo 5, versículos 38 a 48 e pediu a Silvio que fizesse um comentário breve. O marido agradeceu:

— Obrigado pela oportunidade. Vejam que coisa interessante... Na prece do Pai Nosso, que está no capítulo 6 de Mateus, Jesus pede a Deus para "livrar-nos do mal", porém, em capítulo anterior, ele fala para não "resistirmos ao mau". Como pode isso, alguém saberia dizer?

Nancy e Lia rapidamente lançaram um olhar para seu Onofre, que não se fez de rogado:

— Bela observação, Silvio. Posso tentar explicar?

— À vontade.

— Devemos resistir ao mal (com éle) e não ao mau (com u). O mal, isto é, o pecado, a ausência do bem, deve ser evitado e por isso Jesus pede a Deus que nos livre de todo o mal. Quando, porém, ele diz para não resistirmos ao mau, refere-se às pessoas e não ao pecado. As pessoas praticam o mal, tornando-se más. Ao sujeito que age de forma má para conosco, devemos dar a outra face. Isso significa não resistir ao mau.

— Mas dar a outra face, não seria uma tolice, seu Onofre? Se alguém vier nos bater, não vamos nos defender, então?

Silvio adiantou-se a Onofre, sorrindo:

— Nancy, nunca devemos levar as palavras de Jesus ao pé da letra, ele busca sempre um ensinamento e o faz via de regra de forma figurada, com analogias às coisas corriqueiras da vida. Dar a outra face não proíbe a defesa, mas solicita não pagar na mesma moeda. A famosa pena de talião, que dizia "olho por olho, dente por dente"...

Célia esclareceu:

— Exatamente e Jesus começa essa passagem justamente por ela, dizendo: "Ouvistes o que foi dito aos antigos, olho por olho, dente por dente; eu, porém, vos digo: não resistais ao mau, se alguém lhes bater numa face, oferece também a outra".

Lilo estava encantado com a discussão e até Mariana estava gostando. Sérgio não era muito afeito a questões religiosas e achava aquilo tudo bobagem. Para ele, a vida real não comportava tais utopias, como a de perdoar. Ele era mais afeito aos antigos, na base do 'bateu, levou'.

Mariana externou seu pensamento:

— Então 'dar a outra face' quer dizer: não revidar, certo?

Silvio aplaudiu:

— Isso mesmo, Mariana. É não revidar e, principalmente, não desejar vingar-se. Esse o espírito do perdão, pois, ao perdoar, a pessoa decide não revidar, portanto, elimina de si o desejo de vingança. O perdão, porém, não nos exime de nosso acerto com as leis divinas, mas tira de nós o peso do ressentimento e da mágoa, que tanto nos fazem mal. Ressentir significa "sentir de novo", portanto, não nos faz bem alimentar e ressentir mágoas.

Silvio mal acabara de dizer aquelas palavras e todos se assustaram com Célia, que pareceu desconfortável na cadeira, crispando as mãos sobre a mesa, com tanta força, que a toalha enrugou-se sob seus dedos. Suas feições pareciam diferentes, transfiguradas. Algum tipo de fenômeno, desconhecido da maioria, parecia estar acontecendo. Quando a médium falou, todos notaram a voz carregada e em timbre diferente de seu habitual:

— Perdão, somente palavras vazias... Ninguém sabe do meu sofrimento... Por anos a fio, desejo vingança... — proferiu, diante dos olhares atônitos dos presentes, cujos corações palpitavam dentro do peito, receosos e descompassados.

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