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   O que eu venho lhe contar não é uma história de amor, muito menos uma história de mistérios e suspenses. De terror, por certo, em certo momento, de aventura, em outro… Mas não importa definições e rótulos. É uma história, apenas — fato que também não tem lá grande mérito. O que lhe é de importância era o que importava para Juninho; e o que importava​ para Juninho, era que a sirene já tinha tocado e o recreio já anunciava o seu fim. E a cada segundo que ele esperava, seu coração dava um passo em direção a garganta.

    O banheiro da escola nunca parecera um local tão desprotegido como naquele instante. A sensação que tinha era que haviam câmeras em todos os lugares. Da pia manchada e sem torneira ao mictório entupido, que empoçava um suco de coloração amarela e odor pouco apreciável. Do teto cheio de infiltrações ao idiota do menino engomadinho que escova os dentes, no outro lado. Tudo era suspeito, todos podiam ser caguetões.

   Ele suspirou, mantendo a calma. Afinal, estava tudo minuciosamente planejado. Aquele seria o dia em que garotos virariam homens, homens que tinham coragem e que não temiam a ira da senhora Consuelo.

   Mas aquela espera era uma tortura!

   — Anda, Grilo! — ele ouviu a voz de seu amigo, para o alívio de seus nervos.

   O garoto magricela fora empurrado para dentro do recinto no mesmo momento, cambaleando para o lado, balançando os braços esqueléticos como dois pedaços de bambu seco.

   — Ei! — retrucou ele, recompondo-se, com cara de poucos amigos. — Tá maluco, véi?!

   Juninho olhou para os lados em um sobressalto.

   — Calem a boca! — exclamou, sussurrando. Fitou os três amigos, que pareciam estar tão nervosos quanto ele. — E aí? Preparados?

   Grilo balançou a cabeça, afirmando com veemência:

   — A pelada nos aguarda!

   — Adeus aula de história! — completou o Bocão, se deleitando com a ideia.

   — Não sei, não… — disse Edu, o gordinho cagão, como já era conhecido.

   Os três encararam o amigo com a rotineira expressão de desapontamento. Faziam isso em todas as aventuras que o gordinho se amedrontadava em entrar; e não eram poucas. Contudo, Juninho estava decidido a fazer daquela aventura, especial. E seria especial para todos eles.

   — Ah, mas cê sabe, sim! — afirmou ele, incisivo, o que fez com que um ar de dúvida pairasse sobre a face bochechuda do amigo.  — Já planejamos tudo há vários dias! Seria hoje, não seria? E cê topou!

    Edu moveu os lábios, insinuando que tinha retórica para aquele julgamento, mas pareceu desistir no instante em que Juninho e Bocão começaram a empurrá-lo em direção a saída.

   — Vamo, vamo — animou-se Bocão, trazendo para os outros uma sensação de que estavam diante do melhor momento para o feito.

   Saíram à espreita, velhacos como calangos. Estavam mais que certos em toda a cautela que tinham, pois, entre os corredores do antigo Colégio Antônio Augusto, morava o pior dos gaviões. Era um morcego, melhor dizendo, porque era assim que haviam apelidado a inspetora do colégio: morcegão. Tudo isso se devia a uma particularidade da senhora Consuelo, que, de tão velha e acabada, tinha as pelancas do braço caídas e molengas. A senhora, ranzinza desde que os garotos se entendiam por gente, tinha o hábito de sacolejar os braços abertos enquanto dava seus sermões intermináveis. E a pelanca sempre estava lá, balançando ao léu, esticando-se com o efeito da gravidade, o que lembrava as asas de um morcego.

   Olharam para os lados, enquanto os passos eram dados com a leveza de quatro bailarinas. O burburinho dos alunos aos poucos desaparecia, com todos voltando para as suas salas de aula.

   — Onde cêis viram ela por último? — Juninho quis saber.

   — A morcegão? Tava danando com os meninos do quarto ano. Parece que eles tinham inventado de fazer guerra com o lanche — Grilo informou de forma precisa.

   — Ótimo! — As mochilas já estavam escondidas nas caçambas de lixo do lado de fora, senhora Consuelo estava despistada e eles estavam prontos. Só tinham que botar o plano em ação. — Vamo! — Juninho gritou, começando a correr em direção ao muro.

   Iriam fugir. Iriam para a liberdade da praça​, onde poderiam jogar bola ao invés de ter que saber quando o maldito do Dom Pedro II tinha berrado na beira da grotinha. Ninguém merecia mais uma aula de história, disso não tinham dúvida, e eu concordaria, apesar de tudo. Iriam, finalmente, pular o muro.

   O coração de Juninho desandou de vez, como se quisesse pular o paredão de concreto por conta própria, fora do peito do menino. Ele sabia que estava com medo e que todo aquele nervosismo era a sua consciência de bom aluno gritando, sufocada no fundo de sua cabeça. Entretanto, ele não costumava ouvi-la, de qualquer forma.

   Chegaram como jatos no lugar marcado. O muro era alto, muito alto. Mas eles eram bons em escalar. Por mais que o muro parecesse uma muralha, não seria ali que teriam medo de alguns metros de subida. Grilo, magro de dar dó, foi o primeiro a subir, quase sendo levado para cima com a força da brisa. Bocão, honrando ser o mais forte do grupo, também não tardou em se colocar lá no alto. Juninho fora logo depois, aproveitando a adrenalina que o faria subir o Everest, caso fosse necessário.

   Porém, se Grilo era leve como uma pluma, Edu não provia das mesmas habilidades quilogrâmicas. O garoto se empenhou na missão, disso Juninho não podia falar mal, mas seus pés estavam grudados ao solo.

   — Anda, seu mamute! — Bocão incentivou, sensivelmente. — Bota essa bunda pra trabalhar!

   — Eu… eu… — o pobre arfava de cansaço. — Eu não consigo… — Olhou para os lados, como se pressentindo o mal se aproximando. — Vão vocês!

   — Mas, o quê? — Juninho se indignou.

   — Vão vocês, eu fico. Não dá! Eu… — Olhou outra vez para o pátio a sua volta. Estava desesperado. — Tchau! — avisou, segundos antes de sair correndo em debandada.

   Os outros três meninos assistiram a cena, perplexos com a frouxidão do amigo.

   — Afe… — Juninho balançou a cabeça, negando-se em acreditar no que estava óbvio que iria acontecer. — Pior que a mochila dele já tá aqui fora… — Ele apontou para a caçamba, encostada no muro do lado livre da prisão. A caçamba, contudo, estava vazia. — Mas…

   Não conseguiu terminar de falar. Preferiu deixar que os próprios companheiros analisassem a situação.

   — Cadê nossas mochilas?! — Grilo exasperou-se. — Cadê o lixo?!

   Juninho levou a mão ao rosto.

   — O caminhão de lixo passou…

   — Ah, não, puta merda! Meu tablet tava lá dentro! — Bocão não tentou esconder a frustração.

   Grilo terminou de contabilizar a perda:

   — A nossa bola também. Que bosta! — Enquanto resmungava, saltou para o outro lado em um ato irracional.

   O efeito da sua ira veio logo em seguida. A aterrissagem deixou a desejar; o corpo seco e sem amortecedores se chocou desengonçadamente com o chão, fazendo o seu tornozelo beijar a calçada. O pé virou, torcendo a junta como se feita de pano. O grito de dor ecoou pelos quatro cantos do bairro. Caiu no chão, rolando, descontrolado, enquanto colocava a mão sobre o local lesionado.

   — É muito burro mesmo, viu! — Bocão reprovou, ao passo que pulava para o chão, com a destreza que o amigo não possuíra.

    Juninho suspirou, sentado em cima do muro. Se os gritos do amigo não estivessem tão altos, poderia jurar que ouvira sua consciência de bom aluno rindo da sua desgraça. Preparou-se para pular. Mas, antes que agisse, desparou-se com o mais inesperado.

    Lá está ela. Os braços cruzados. Os olhos cheios de ira. As ventas abertas como as de um boi bravo.

    Estava no meio do pátio, não havia como escapar; fitava-o com toda a precisão do mundo.

    A morcegão.

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