50. Requiém, parte III

Seokjin sentia os pulmões ardendo enquanto cuspia sangue no chão.

O segundo instinto foi voar as mãos até o pescoço, tremendo. Uma atmosfera fria e úmida cercava-o em neblina, pontuada por minúsculas partículas de cinzas flutuantes, um cheiro pungente e já desgastado de madeira queimada infiltrava-lhe as narinas e tornava difícil respirar. Uma camada fina das cinzas forrava o chão de pedras esculpidas ao redor dele, cobrindo seu cabelo e suas roupas... brancas? Uma túnica branca, que ele não sabia como havia parado em seu corpo, arrastava-se levemente ao seu redor, as mangas escurecidas por conta das cinzas que se acumulavam no tecido.

— Onde eu estou? — o demônio sussurrou baixinho, com certo medo de receber resposta.

Limpando a boca com a manga da túnica, Seokjin se levantou para olhar ao redor.

Era uma espécie de pátio abandonado, cercado pelos destroços de uma sequência de arcos e colunas, como uma arena grega. O horizonte era cego, coberto por mais neblina, e o céu era uma pintura cinza — sem nuvens, sem sol, sem estrelas. De uma forma estranha, Seokjin sentia estar suspenso no ar, ou, talvez, no meio do limbo.

O único lugar ao qual ele podia se dirigir era a trilha de pedras negras que partia do centro da arena, onde ele havia acordado.

Sem ver outra saída, o homem decidiu por segui-las, hesitante demais para arriscar entrar na névoa densa e acabar se perdendo depois.

Andando pela estrada, Jin acabou chegando numa construção olimpiana, uma espécie de Parthenon negro, só que 10 vezes maior — ele nem conseguia enxergar o topo.

Uma escada de obsidiana o convidava a entrar no templo. O demônio engoliu em seco, com um mal pressentimento horrível, e ele inevitavelmente olhou para trás. Para sua surpresa e desespero, o caminho atrás dele havia sido encoberto em névoa. Ele soube então com certeza que aquilo era premeditado, alguém o estava encurralando até ali.

Seokjin fechou as mãos em punhos, sentindo suor frio descendo por suas têmporas, e então, ele subiu.

Seus passos ecoavam pelas pedras no chão, mas ele não ouvia nada além disso e de sua própria respiração. As colunas de dentro do templo eram parecidas com a da parte exterior, mas com arabescos macabros em toda a extensão, uma composição de mãos subindo por ela e olhos humanos cravejados com diamantes negros. Cada coluna era diferente da outra, uma com o desenho mais vil do que a outra, e ele decidiu parar de encarar no momento em que seu estômago revirou com um arabesco de vísceras humanas.

O chão também parecia formar um desenho gigante, provavelmente só possível de ser identificado por cima, mas o Djinn conseguiu notar a presença de desenhos geométricos, muitas linhas se cruzando, circunferências aqui e ali, pequenos e grandes triângulos entrepostos, mas nada que realmente saltasse aos olhos.

A caminhada pela penumbra parecia interminável, sua ansiedade atingindo o pico máximo no processo, até que ele finalmente se viu no centro do templo. Havia apenas uma sala, e as portas estavam abertas para ele, mas o interior era tão misterioso e indecifrável quanto o resto.

No mesmo momento, um calafrio espinhoso arrepiou a base de sua nuca, e Seokjin subitamente sentiu a necessidade angustiante de correr de volta por onde entrara, mas as portas se fecharam com um baque estrondoso logo após, cessando suas esperanças.

Névoa se ergueu do chão, e o homem sentiu o cheiro pútrido que subiu com ela com uma pontada de náusea.

Ele se aproximou lentamente, ouvindo fogo crepitar acima de sua cabeça, mas sem enxergá-lo.

Uma figura opulenta se destacou no fundo da sala, antes camuflada nela como fumaça. Sentado sobre um trono, Jin pode avistar primeiro os olhos, as íris amarelas flamejantes dentro deles. Ele tinha o cabelo preto como as asas de um corvo, mechas onduladas ao redor de uma coroa prateada reluzente, encrustada com os mesmos diamantes negros de antes. O rosto era anguloso, com a mandíbula bem marcada, o nariz fino e empinado, lábios bem desenhados acentuados por maçãs do rosto altas. E, oh, a pele dele era pálida, tão pálida que, se Seokjin chegasse perto o suficiente, ele veria os traços azulados de suas veias estriadas.

Ele era lindo, o tipo de visão que fazia as pessoas irem ao delírio. O homem era alto, vestindo uma espécie de uniforme militar preto, mas não havia armas em sua bainha, ele não precisava. Ele era lindo, e também não era humano.

Mas aquela beleza não era a de um anjo.

— O filho pródigo à casa torna. — o homem enunciou, a voz grave e ríspida fazendo o coração de Seokjin dar saltos.

— Quem é você? — ele enunciou sob um suspiro, travado no lugar como pedra.

O estranho soltou uma risada breve, sem achar graça, com os lábios se esticando preguiçosamente.

— Oh, então você ainda não se lembra... Que decepcionante. — Jin torceu o rosto em uma careta. Como ele poderia conhecê-lo? — A mortalidade lhe caiu bem, Seokjin, o sangue fluindo em suas bochechas é adorável. — ele continuou.

O homem levantou-se de seu trono, descendo uma escadaria até ficar no mesmo patamar que Seokjin.

— Venha, junte-se a mim para o jantar. — ele esticou um dos braços para o centro, de onde uma mesa enorme acendeu-se por candelabros com um banquete para, no mínimo, umas quinze pessoas.

Hesitante, Jin puxou a cadeira no extremo oposto do homem, sentindo-se afundar sobre a superfície acolchoada. Uma disposição infinita de carnes, legumes e sobremesas variadas chamavam a atenção de Seokjin com seus aromas e cores irresistíveis. O medo não o deixou mover-se, e o homem (se possível defini-lo assim) se divertiu com isso.

— Vamos, coma, não está envenenado. Se eu quisesse, você já estaria morto. — ele constatou, e a trivialidade com que falou horrorizou Seokjin. No entanto, ele estava faminto, a náusea da fome era inegável àquela altura.

Jin engoliu em seco, tentando parar suas mãos de tremerem enquanto se servia uma porção de guisado de porco. 

— Você não sabe por quanto tempo eu esperei por isso. Faz muito tempo desde a última vez que nos vimos, eu admito que estava bem diferente na época... Mas, bem, aposto que, se você se esforçar, você vai lembrar de como nós costumávamos nos divertir. — o homem deu uma risadinha, tomando um gole de seu cálice de vinho.

De súbito, Seokjin parou com o garfo a centímetros da boca. Bile subiu à garganta quando ele se deu conta.

— Lúcifer.

Ele murmurou como se o nome lhe causasse dor física. Lúcifer assentiu, o sorriso branco estampado em seu rosto.

— Então eu realmente morri... — ele olhou por baixo dos cílios. O outro balançou a cabeça, devagar, inspirando cada um dos movimentos de Seokjin. — Mas se você está aqui, isso quer dizer que...

— Que você está no inferno? — O Demônio riu. — Oh, Seokjin, você não reconhece sua própria casa?

Não... aquilo era impossível! Ele estava... no céu? Com Ele? Aquilo só podia ser algum tipo de jogo.

Lúcifer repousou as costas sobre a cadeira, cruzando as pernas.

— Vejo que ainda tem dificuldade para botar sua memória em ordem. Bem, creio que seja de bom tom eu refrescá-la para você.

Seokjin repetiu o mesmo movimento, sentindo a cabeça girar. Ele tinha que estar preparado — o que quer que viesse pela frente, ele sabia que o arrebataria de vez.

Sua cabeça ainda estava demasiadamente nublada e confusa, de fato, mas a correspondência de Lúcifer com o Mal havia sido imediata. Isso seria algo do qual ele nunca se esqueceria. Sua alma tinha cicatrizes profundas da dor de estar em contato com ele, e essa dor nunca poderia ser dissimulada ou esquecida nem em um milhão de vidas. Era visceral, era violento.

— Era uma vez dois anjos: jovens, fortes e audaciosos. Um deles era amado por todos, e vivia cada dia como se fosse o mais feliz de sua vida. O outro, no entanto, era ambicioso e sempre queria mais. No entanto, no meio de tantas diferenças e desaprovações, os dois, de algum modo, acharam uma forma de se apaixonar.

Lúcifer fez uma pausa para encarar Seokjin, mas esse se recusou a corresponder o olhar.

— A relação dos dois foi progredindo em sigilo e, em uma noite, entre carícias e sussurros proibidos, o anjo confessou ao outro que ele tinha planos de revolução, uma mudança drástica naquele mundo estranho e engessado que não os permitia amarem-se. O anjo bonzinho concordou em ajudar, em reunir outros anjos tão descontentes quanto eles para tomar o poder dos Céus mas, na véspera da batalha, algo aconteceu.

— Enquanto se preparava para lutar, o anjo malvado soube que havia sido traído, que seu amado havia mudado de ideia e ido confessar tudo ao seu Criador, com esperanças de que pudesse obter a expiação de seus pecados. — ele deu um sorriso amarelo, bebericando mais de seu vinho. — Cristo, é claro, agiu no mesmo momento. Reuniu seus soldados mais fortes, os mais leais e, é claro, o anjo bonzinho — um de seus favoritos — para lutar contra os divergentes.

A menção fez Jin corar, sentindo-se sujo e humilhado, tendo flashes em sua cabeça daquelas cenas de uma vida muito distante. O pior de tudo era que tudo aquilo era verdade, ele sabia que era. Seokjin era um traidor, e o amante de um monstro.

— Todos achavam que a batalha estava ganha, afinal, mesmo um Serafim poderosíssimo ainda não poderia chegar aos pés do Criador. Mas eles não sabiam da minha arma secreta: você.

Seokjin enfim encontrou os olhos de Lúcifer. Ele lambeu os lábios, absorvendo cada deliciosa expressão no rosto dolorido de Jin.

— Dias antes desse fatídico evento, você, meu querido, havia roubado um bem precioso do Velho para mim. Com esses olhos inocentes, ninguém jamais poderia desconfiar de uma coisa tão bela e pura quanto você, e isso mudou tudo. O poder que você me deu fez o jogo girar ao meu favor... — Lúcifer suspirou. — Eu ainda lembro vividamente do rosto dele quando minha lâmina o perfurou, quando ele viu o próprio sangue jorrando para fora. E então, eu, naturalmente, assumi o lugar que me era merecido por direito.

Seokjin não conseguiu disfarçar quando o horror tomou conta do rosto, a boca aberta em choque enquanto as lágrimas escorriam do rosto petrificado.

— Já emocionado, meu querido? Eu ainda nem comecei... — Jin pressionou os lábios com força, enxugando as lágrimas na túnica imunda. Lúcifer suspirou regozijante e triunfante.

— Seguindo na minha vingança, eu espalhei todos os meus aliados pela Terra, e me diverti bastante vendo todas as suas travessuras... — eu confesso, na época eu tinha um quê teatral. E, bem, com os traidores eu fui criativo. Alguns eu tranquei aqui para me distrair, outros eu transformei em criaturas horripilantes que deturparam suas formas celestiais, mas a maioria acabou se adaptando muito bem ao Inferno. E você, meu amor, teve o destino escolhido a dedo por mim.

Jin mal conseguia respirar entre uma frase e outra. A dor e a vergonha que ele sentia de si mesmo dominavam tudo, ele desejava com todas as forças que aquilo não passasse de um pesadelo, e que então ele pudesse acordar ou simplesmente perecer de uma vez.

— Eu observei tudo, sabe? Quando você caiu, quando você gritou por suas asas, eu de verdade senti sua dor. Mas, sabe como é, você precisava ser punido.

— F-Foi você? — Jin agarrou a toalha da mesa, apertando tão forte que os nós dos dedos ficaram brancos.

— Não seja tão sentimental, você deveria me agradecer, eu te tornei muito mais poderoso do que você jamais seria como serafim. — ele dispensou-o com um aceno de mão preguiçoso.

— Mas por quê? Eu te traí, não foi? Por que você simplesmente não me torturou ou me deixou apodrecer no inferno? — ele rosnou, sentindo as emoções se embolarem num nó.

— Eu te amava, Jin. Mais do que você poderia imaginar, mais do que qualquer um. — Lúcifer o encarou no fundo dos olhos, ajeitando a postura. —  E, claro, parte do meu sucesso foi graças a você, eu não podia deixar isso passar batido.

Mas a melhor parte nem é essa.

Jin não era mais do que uma peça minúscula encolhida na cadeira. Ele nunca havia se sentido tão perdido, tão... vazio. Ele estava se sentindo desmoronando, agonizando demoradamente em cada palavra dita por Lúcifer, e mesmo com tanto, ele ainda se sentia tão confuso...

— Te observar, até certo ponto, foi bem divertido, mas você se acomodou, Jin. Você ficou preguiçoso, desmotivado e melancólico, como um homem de carne. Eu sabia que precisaria de uma peça nova para reviver o jogo, e foi nesse momento que eu tive uma ideia brilhante: como será que você reagiria sendo colocado para escolher novamente entre a Luz e a Escuridão? Eu me perguntei para qual lado você penderia dessa vez, influenciado por todos os defeitos e sentimentos humanos, sem anjinhos alados ou deuses para te impedir.

— A visão sobre Jungkook...

— Oh, e você tornou tudo tão mais divertido quando decidiu salvá-lo, quando se rendeu àquele pequeno pedaço de caos... Eu me inspirei muito em você para fazê-lo: eu alimentei aquele garoto com a mesma Luz e Escuridão que partiram do seu corpo imortal — eu sabia que você iria amá-lo. Fazia sentido, afinal, ele é praticamente uma cópia sua. Rebelde, implacável, insubordinado, e tão, tão doce! — ele gemeu em zombaria.

— P-Por que você fez isso? Ele era inocente, ele era apenas um bebê! Você o transformou nessa... coisa maligna, e por quê? por diversão? — Seokjin gritou, espalmando as mãos na mesa com toda a raiva que possuía.

Mas Lúcifer ainda seguia indiferente.

— Sim, sim, eu admito com prazer que fui a fonte da destruição da criança. Mas quem permitiu que ela vivesse para se transformar num monstro foi você, Seokjin. Sem você, ele nunca teria desenvolvido os poderes, a capacidade de atrair as feras, e portanto não haveria Apocalipse.

Lúcifer se levantou, andando até uma pilastra lateral e olhando para baixo com um sorriso nos lábios.

— Venha ver, meu amor, tudo isso é seu.

Sentindo as pernas fraquejarem, Jin se arrastou desengonçado até a pilastra ao lado. Abaixo deles, o mundo se transformava numa bola de fogo ambulante.

Lúcifer, satisfeito, achou seu lugar atrás de Seokjin, envolvendo sua cintura com uma das mãos, enquanto os lábios roçavam de leve em seu ouvido.

— Viu só? Nós não somos tão diferentes assim. Nós somos parte do mesmo princípio, Jin, fomos feitos para ficar juntos... E agora, será para sempre, do jeitinho que você queria.

— Nunca! — Seokjin bradou, empurrando Lúcifer para o outro lado do cômodo.

O Demônio aterrissou sobre um dos joelhos, confuso por um instante, encarando Jin com um meio sorriso.

— Que assim seja, então.

Em milissegundos, Lúcifer agarrava o pescoço do moreno e o enterrava no chão, quebrando as pedras embaixo do homem.

Arfando, Jin deu um pontapé em seu estômago, aproveitando o momento para botar distância entre eles.

— Você não pode me vencer, Jin, eu sou Deus! — ele abriu os braços, rindo. Num mero estalar de dedos, o topo do templo se abriu, e a grande mesa de jantar sumira.

Lúcifer se ergueu no ar, lançando um candelabro imenso na direção de Seokjin, que desviou, usando seus poderes demoníacos para se erguer no ar atrás dele.

O homem lançou uma bola de luz no estômago de Lúcifer, que uivou de dor ao mesmo tempo em que o tecido na região se desfez em pó. Jin atravessou o ar como uma flecha, socando a mandíbula do outro para desnorteá-lo.

Ele sabia que nunca conseguiria vencê-lo enquanto Lúcifer estivesse em pleno poder, a única chance era deixá-lo o mais próximo da inconsciência possível para que ele o desarmasse. Jin evocava sua memória, sem sucesso, do item que roubara no passado, o item que tornara o demônio poderoso, mas nada nele parecia se sobressair do resto.

Sangue espirrou do nariz de Lúcifer, cessando nem um minuto mais tarde, e Jin se manteve naquele mesmo ciclo de golpes rápidos por muito tempo.

Eventualmente, o Demônio se cansou.

— Chega de brincadeiras, Seokjin, seu lugar agora é comigo.

Lúcifer segurou o punho do demônio no meio do ar, puxando-o para perto de si até que seus corpos se colassem. Jin tentava, sem sucesso, impedir as lágrimas de chegarem às bochechas. Lúcifer era forte demais, uma barreira rígida e impenetrável contra o corpo de Seokjin, e ao mesmo tempo que sua mente gritava perigo, seu corpo também ameaçava relaxar e dizer "casa".

— Eu fiz tudo isso por nós, Jin, tudo o que você queria agora pode ser seu. Apenas eu e você na Eternidade, com todo o luxo e poder que você imaginar. A única coisa que você precisa fazer é dizer sim e se submeter à mim. — Lúcifer sussurrou.

— E o que vai ser dos meus amigos? Da minha família? Você vai matar todos. — Jin disse entredentes.

— A morte é inevitável para qualquer ser provido de mortalidade, é o único futuro certo para os humanos. Não se preocupe: futuramente, vários deles se reencontrarão com você, meu amor— Lúcifer aninhou Seokjin em seu peito, a voz baixa e suave como seda, como uma canção de ninar.

Fumaça negra os cercava por todos os lados, entrando pelas narinas de Seokjin e o deixando atordoado. A dor que ele sentia era imensa, um milhão de agulhas finas em sua pele e, ao mesmo tempo, a familiaridade daquele calor era tudo que seu corpo queria, era o que faltava, o que Seokjin procurara em dezenas de humanos e nunca achara. O aperto de Lúcifer era cada vez mais forte, e ele sentia cada vez menos vontade de resistir.

Seokjin se permitiu repousar em seu peito, a superfície dura e inflexível. E então, ele finalmente ouviu.

Tum

Tum.

Seus olhos abriram de imediato, mas ele não ousou se mover.

Tum

Tum.

Ele então percebeu o que era aquele barulho...

Era a porra do coração de Lúcifer.

Mas essa era a parte que o perturbava: anjos não possuíam coração.

Mais, Lúcifer não estava nem perto de ser um homem mortal, então como...

"O coração, você precisa precisa pegar o coração!!"

Uma voz desconhecida sussurrou no fundo de sua mente.

"Ele roubou o coração, Jin, você precisa pegá-lo de volta se quiser derrotá-lo."

Lúcifer então se mexeu desconfortavelmente, a mão ligeiramente tensa nas costas de Seokjin.

"Rápido, ele está começando a desconfiar!"

Jin se afastou um pouco, olhando em seus olhos com a maior doçura que poderia projetar.

— Eu estou pronto, agora. — ele sorriu, espalmando a mão carinhosamente em seu peito.

Lúcifer sorriu largamente, as írises douradas flamejantes com malícia.

Mas a doçura então se transformou em outra coisa e, antes que pudesse perceber, a mão de Seokjin estava posta em forma de garra, e ele usava toda sua força para cravar uma bola de luz branca no peito de Lúcifer.

— Aaaaaargh!

A mão de Jin se afundou na carne, e Lúcifer tentou, sem sucesso, afastá-lo, no momento em que a mão se apossou do músculo pulsante.

Os dois então começaram a cair pelo ar, centenas de metros acima do chão. Lúcifer espumava e xingava Seokjin, ódio e traição estampados no rosto enquanto ele usava as garras e os poderes para tentar tirá-lo de cima de si. E ele teria conseguido, é claro, se Seokjin não estivesse sendo ajudado.

Como mágica, Jin sentiu dezenas de mãos invisíveis sobre si, ao redor de seu corpo e segurando sua mão, impulsionando-o, ajudando a arrancar o coração. Ter as mãos nas entranhas do demônio era nojento e repulsivo, o tipo de coisa que Jin nunca se imaginou fazendo. O corpo de Lúcifer usava todas as ferramentas que tinha para tentar repelir a ameaça — garras perfurando e arranhando os membros de Seokjin, choques de náusea e dor intensa que o atingiam em ondas, e até mesmo alguma substância secretada que fazia Jin sentir que sua mão ardia em chamas.

Ele sentiu cada uma das artérias se soltando, cada um dos músculos retorcendo e, de certa forma tentando se prender a ele e, no final, ele sentiu a dor nos olhos de Lúcifer quando ele por fim arrancou o coração de dentro de si.

Eles atingiram o chão com tudo, voando por cima das pedras em alta velocidade por metros até finalmente pararem. Jin bateu a cabeça em uma pilastra, sentindo algo quente escorrendo por sua testa na mesma hora. Ainda com o coração em mãos, ele o escondeu da melhor forma que pode atrás de uma ruína de pedras antes de se virar para Lúcifer.

O Demônio, caído no chão, usava as pontas das garras de suas extensas asas negras para se erguer, o glamour finalmente sendo desfeito. Seokjin agora não via senão uma criatura repugnante diante de si, e ele estava mais do que pronto para colocar um fim àquela história infernal.

— Você vai pagar caro por isso, Jin. — Lúcifer riu, encurvado sobre si mesmo com um olhar maníaco no rosto. — Eu vou comer as suas entranhas vivo, seu miserável.

— Eu não tenho mais medo, você não tem poder sobre mim mais.

— Ora, seu...

Lúcifer voou para cima de Seokjin, as pontas das asas fincadas em Seokjin enquanto as cortava e rasgava sua pele como um animal selvagem. Jin tentava segurá-lo, fazendo pouco para impedir o acesso de fúria, cuspindo sangue compulsivamente na mesma medida em que rugia de dor — mas ele ainda não estava terminado.

Com uma lasca de mármore escondida em mãos, Jin a enterrou no pescoço de Lúcifer usando todo o resto de força que possuía. Lúcifer recuou em choque repentino, correndo as mãos em aflição até a própria garganta enquanto engasgava e cuspia sangue por todos os lados.

Fluído negro começou a descer de seus olhos e narinas enquanto ele tentava, em vão, segurar o fluxo no pescoço, e Jin aproveitou a oportunidade para se arrastar com os cotovelos para trás, observando a cena em perplexidade.

A visão de Seokjin era nublada e embaçada, por vezes imaginando ver silhuetas aqui e ali, mas ele se manteve acordado durante todo o padecimento do demônio, assistindo seu corpo se desfazendo lenta e torturosamente. No momento em que Lúcifer deu seu último suspiro, Jin então permitiu que a inconsciência começasse a tomar conta de si.

Corpos esguios e cintilantes então começarem a se aproximar dele, delicadamente, silenciosamente, erguendo seu corpo fragilizado sobre alguma superfície muito macia.

Ele não enxergava nada, muito menos ouvia, era presente apenas a sensação de estar flutuando no lar, indo até muito, muito longe.

Após algum tempo, seu corpo foi rebaixado, e uma mão gentil pressionou sua testa. A ação, de alguma forma, fez com que ele se sentisse mais disposto.

— Erga-se, Serafim. — a voz disse baixinho.

Jin levantou, abrindo os olhos preguiçosamente. Imediatamente, seus olhos arderam com a luminosidade alta, e ele precisou escondê-los com a mão para tentar se adaptar ao local.

Hoje, o Bem encerra sua mais árdua e desafiadora batalha contra o Mal. Hoje, nos erguemos vitoriosos diante de todos os nossos irmãos. — Uma voz comemorou, e de pronto centenas de comemorações alegres se seguiram em volta de Seokjin.

Depois do mais difícil dos trabalhos, você retorna até nós resplandecente, Seokjin, e é hora em que você reassuma seu lugar de direito. Seja bem vindo, filho.

Muitos começaram a abraçar Seokjin — anjos — ele finalmente conseguia enxergar, rostos estranhamente familiares, mas há muito tempo esquecidos por ele. Confuso, ele se via enroscado de braço em braço, alheio à toda aquela alegria.

— Espere, Pai, eu não entendo...

As vozes cessaram, e Seokjin se viu de novo encarando a luz.

— Lúcifer está morto, você nos libertou. — um anjo respondeu.

—M-Mas e os demônios? O apocalipse? O que aconteceu com os Humanos?

Os Caídos retornaram ao lar. No entanto, as criaturas das trevas, criadas pela escuridão de Lúcifer, deixaram de existir no mesmo momento que ele. Infelizmente, muitas vidas foram perdidas, mas nenhuma estará desamparada a partir de agora, com vosso trabalho.

— Mas e meus amigos...? Meu Jungkook ainda está vivo, Pai? Ele também foi uma vítima, não mereceu nenhum mal que lhe ocorreu— ele engoliu em seco.

Nenhum ser vivo ou morto foge às leis da natureza. Existe mérito e peso em cada uma de vossas ações. O corpo do garoto vive, e sua alma, fortificada.

Instantaneamente, Seokjin se sentiu relaxar.

— Pai, eu fico muito feliz e grato de poder estar de volta depois de tanto tempo, mas eu não posso negar a vontade do meu coração, a vontade de andar entre os vivos. E-Eu sei que isso é insolente da minha parte, egoísta, talvez, mas eu me apeguei muito às relações que eu cultivei e, bem, eu também tenho muitos projetos e muitas coisas para faz...

O desejo que é puro de intenção nunca será negado. Você tem a verdade do Dever dentro de si?

— Sim. Minhas obrigações jamais serão esquecidas ou negligenciadas.

Então não há mais o que ser dito. Seja agente de minhas vontades na Terra, pratique o Amor em cada ação de seu corpo mortal. E quando for a hora, receberemos-te com a mesma alegria.

— Muito obrigado, Pai, muito obrigado.

Agora vá, há muito trabalho a ser feito. E não se esqueça de seus irmãos, eles também permanecerão.

Seokjin planejava questionar, "que irmãos?", mas antes que pudesse abrir a boca, tudo ficou escuro.

**

O primeiro suspiro de Jungkook doeu como o inferno.

Imediatamente, o garoto começou a se engasgar e se mexer, sem entender o que estava acontecendo.

Sua cabeça doía, seus pulmões ardiam, e ele não conseguia enxergar um palmo à sua frente.

— O qu... Ai meu deus! Ele acordou!! Por favor, avisem todo mundo, ele acordou!! — Uma voz fina gritou ao longe.

Alarmes ensurdecedores soaram, e logo dezenas de pessoas estavam em cima de Jungkook.

— Jungkook, está tudo bem. Você está bem, tente não se mexer muito, o médico já vai chegar.

Tudo depois aconteceu muito rápido. Retiraram um tubo extenso de dentro de sua boca, fios saíram e outros entraram, muitos rostos desconhecidos sorridentes. Nenhuma explicação sofisticada lhe foi dada (não que ele conseguisse falar ou perguntar qualquer coisa com a garganta dolorida), apenas lhe serviram chás e falavam repetidamente para que ele esperasse, falando alguma coisa sobre coma e acidente. Sua cabeça era um borrão dolorido, ele não sabia dizer até que ponto de suas memórias eram verdadeiras ou apenas alucinações do coquetel de remédios.

Foi então que a porta se abriu com um estrondo, e diante de seus olhos inacreditados, Seokjin passava por ela. Acompanhado por alguém.

— Kookie? É você? Você acordou mesmo? — o homem já dizia em meio às lágrimas.

Seokjin se jogou sobre ele com tudo, o abraçando o mais forte que podia.

— Eu sabia que você ia voltar, eu sabia. — ele sussurrou. Igualmente emocionado, Jungkook não conseguiu fazer outra coisa senão chorar. Ver Seokjin vivo de novo era como ver uma miragem.

— Bem vindo de volta, moleque, você fez falta— Jungkook torceu o pescoço para observar, e era... Namjoon? — Sei que vocês têm muito o que conversar, eu vou dar privacidade e ir atrás do bendito médico. Até daqui a pouco— o moreno acenou antes de sair pela porta.

— Eu sei, eu sei, eu vou explicar tudo. — Jin o tranquilizou. — Você esteve em coma por 6 meses, Kookie, tem noção disso? Todo mundo disse que a sua situação era irreversível, mas eu sempre acreditei em você— os olhos do moreno se arregalaram.

As horas seguintes foram exaustivamente explicativas. Nesse pequeno tempo, Jungkook aprendeu e compreendeu muitas coisas, das quais:

1) Por MILÊNIOS, o mundo foi governado e manipulado por Lúcifer, enquanto todos os seres celestiais estiveram subjugados ou transformados em bestas.

2)Seu tutor era a porra do salvador do mundo inteiro (e um serafim!!!)

3) Ele finalmente era normal. Quer dizer, tirando o fato de que agora ele tinha uma cicatriz enorme que atravessava seu abdômen inteiro e fazia ele se sentir uma espécie de Frankenstein... Enfim.

4) Todo mundo, exceto eles, se lembrava do apocalipse como um mera cataclisma ambiental, nada de demônios ferozes ou algo do tipo.

5) Namjoon era filho de Sunhee, que esteve aprisionada todos aqueles anos por ter descoberto o pacto com Satã e os planos demoníacos que o marido tinha para a Igreja. Nos últimos meses, por convocação das Nações Unidas, Namjoon comandava um projeto global na reestruturação e reorganização dos mais diversos tipos de templos religiosos destruídos no desastre, assumindo um cargo infinitamente mais importante do que seu falecido pai imaginava para ele. Não só isso, ele ajudou e apoiou Seokjin durante todo o seu processo de readaptação e da hospitalização de Jungkook, o que resultou no surgimento de um romance entre os dois.

6)Quanto aos seus amigos, Hoseok estava em peregrinação, fazendo parte de alguma missão humanitária dos monges tibetanos ( Segundo Seokjin, ele acabara de largar tudo e entrar num avião de volta para a Coreia no mesmo momento em que ouviu a novidade sobre seu despertar).

7) Yoongi acabou por sair do negócio das drogas e agora sua empresa focava na pesquisa e desenvolvimento de curas revolucionárias, principalmente no ramo de patologias mentais e de natureza hipofisária.

8) O paradeiro de Jimin era desconhecido. Após ser hospitalizado, Jimin passou 1 mês inteiro plantado na UTI ao lado dele, tendo que ser tirado de lá à força várias vezes. Quando chegou a notícia de que Jungkook provavelmente nunca mais acordaria, ele desabou completamente e tentou se matar, o que fez com que ele fosse forçado a se internar numa clínica em algum lugar da Suécia e deixar os negócios para Taehyung. Em algum momento, ele fugiu e nunca mais foi visto.

9) Taehyung havia virado CEO de Serendipity e contraído todas as ações para si. Nos meses que se passaram, ele abriu mais clubes e criou sua própria marca de roupas, se tornando o ícone fashion e empresarial mais falado do momento.

E 10) Jungkook aprendeu que, pela primeira vez, ele finalmente era livre.

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