46. Abluvion
Abluvion: that which has been washed away.
—---------------------------------------------------
Jungkook havia subestimado o quão nojento seria o lugar.
Eles haviam prendido suas mãos e pés, além de tê-lo vendado — quem que fossem, os homens realmente não estavam dispostos a ter outra baixa na equipe por causa de Jungkook.
Andando a passos tropeçados e hesitantes, tudo que Jungkook conseguia sentir era calor. Calor, e um cheiro pútrido de sangue seco e ferro oxidado. Aonde quer que estivessem levando-o, com certeza não era agradável.
Contando sofregamente com seus sentidos, ele percebeu que andava sobre um chão de terra batida. No entanto, cada passo seu e dos homens que o escoltavam eclodia pelo recinto e voltava em forma de ecos. Muito provavelmente eles ainda estivessem no subterrâneo.
E, apesar do lugar ser muito sensível a barulhos, por menores que fossem, Jungkook não ouvia nenhuma voz, perto ou longe. Sua única referência era a respiração quente insistente de um dos guardas contra seu pescoço, andando colado a ele como uma segunda pele para garantir que Jungkook não tentasse mais nada.
Conforme ia andando, Jungkook foi percebendo leves inclinações no piso, seguidas por desníveis mais acentuados, que o fizeram perceber o caminho de descida em espiral — como se eles já não estivessem fundo o suficiente na terra.
O espaço ficava cada vez mais abafado, e o guarda — se fosse possivel— cada vez mais colado a ele. O homem tinha cheiro de almíscar, fuligem e suor salgado, a proximidade fazia com que Jungkook quase pudesse sentir seu gosto, e ele estava ficando enjoado só de imaginar.
A passagem por um portão de ferro enorme (ou algum outro metal pesado) levou a mais outros três, todos supervisionados por outros guardas que cumprimentaram brevemente os parceiros durante a passagem. Muito provavelmente armados. Muito provavelmente prontos para matar Jungkook no caso de outro ataque. Ele puxou o nó que se formou na boca do estômago.
Até que, então, ele estava sendo jogado em uma cela suja. De forma abrupta, o homem com cheiro esquisito prendeu as algemas do pé Jungkook a uma corrente dentro da cela, mas deixando seus olhos e suas mãos livres.
Ele lhe deu um olhar de nojo, travando a cela num baque surdo e se virando para ir embora.
— Espera, onde eu estou? Quem são vocês? Me digam o que está acontecendo!
Jungkook tentou se erguer descoordenadamente, tentando se acostumar com o peso puxando seus tornozelos. O homem hesitou por um segundo, mas um colega tocou-o no braço e sussurrou algo em seu ouvidos, os dois se apressando para saírem logo dali.
Sozinho, Jungkook correu as mãos pelos cabelos desgrenhados e sujos, se segurando na última ponta de racionalidade que restava para não surtar. Como eu vou sair daqui? Porra!
Se o guarda na van estivesse falando a verdade, e não só blefando, Jungkook definitivamente precisava escapar com urgência. Ele não queria morrer, muito menos queimado vivo. Aliás, por que caralhos alguém faria algo do tipo?! Aquilo era vil, e as imagens que se formaram na cabeça de Jungkook o fizeram querer vomitar de novo.
Ele precisava escapar.
O garoto massageou os punhos doloridos, andando descalço de um lado para o outro na cela. Ele tinha perdido os sapatos dentro da van, enquanto... dava um jeito naquele homem. Ele tinha um corte na perna direita que havia causado um rasgo vertical na coxa, além da camiseta branca que estava praticamente em frangalhos. Jungkook não queria ver sua imagem no espelho naquele momento, ele mal fazia ideia do quão pior estava seu rosto.
Ele foi de volta até a porta da cela, mas é claro que as correntes não esticavam até ali, eles não dariam chance para que ele fugisse. O garoto pensava que, se conseguisse dar um jeito de chegar lá, poderia dar um jeito de usar seus poderes para roubar a chave.
A cela era fria e escura, uma terra batida e com apenas um balde em um canto. Dezenas de outras celas se estendiam na extensão do corredor, mas Jungkook não viu e nem ouviu ninguém. Ele se perguntava o porquê. A única fonte de luz vinha de lampiões antigos pendurados em pilastras de madeira aqui e ali, pois não havia janelas.
Ele se moveu até a parede oposta à tranca da cela — uma parede de pedras. Jungkook foi dando pequenas batidinhas entre elas, aproximando seu ouvido da parede na esperança de haver algum outro cômodo do outro lado, algo que servisse de passagem para a fuga, mas era óbvio que não. Ali, só havia toneladas e mais toneladas de terra subterrânea, fria e úmida.
Pequenos pontos azuis chamaram sua atenção na parede, mofo. Se ele não morresse queimado, talvez a intoxicação por fungos o matasse primeiro — mas que ótimo.
Horas se passaram sem que ele ouvisse um único ruído. Os hematomas em seu corpo latejavam, com sangue seco encrustando nas dobras de sua pele e fazendo-o gemer cada vez que seus movimentos repuxavam a pele. Jungkook levou a mão até o corte na coxa. Por que não estava curando? A essa hora, Jungkook não deveria estar vendo nada além da pele branca e imaculada. Mas não, ele estava com uma ferida aberta, enorme, roxa, e nojenta.
Sem perceber, Jungkook oscilou entre um desmaio e outro, a cabeça inclinada para trás sobre a parede fria de pedra enquanto suor escorria pela face. Nada mais era suficiente. Descansar não o ajudava a melhorar, comida não o fazia se sentir revigorado, e tomar banho não o fazia se sentir... menos sujo. Agora, mais do que nunca, Jungkook sentia seu próprio corpo como uma carcaça incapacitante, ao invés de um receptáculo propulsor de seus poderes.
Fazia tanto tempo desde que ele havia se sentido realmente completo, com todos os sentidos preenchidos e acalmados. Tanto tempo desde que estivera com... ele. Os delírios de febre fizeram com que a mente de Jungkook se preenchesse com sonhos sobre Jimin.
Imagens fluíram com pensamentos acelerados e desordenados, seus poucos sorrisos doces, o olhar negro que penetrava cada um dos olhos de Jungkook e o fazia sentir-se nu, seus braços enlaçando-o num gesto protetor que fazia os pelinhos de Jungkook se arrepiarem. A cena desacelerou, Jimin tinha tomado-o nos braços e inclinado Jungkook, deixando a pele nua de seu pescoço exposta enquanto o moreno fechava os olhos e se permitia perder-se na sensação de seus corpos unidos. Como deveria ser.
Ele subiu beijos na região, arfando, enquanto os nós dos dedos de Jungkook se tornavam brancos de tanto apertarem os lençóis abaixo dele. Quando a tensão se tornou demais para suportar, Jungkook buscou a nuca de Jimin com necessidade, se apropriando de seus lábios no mesmo momento. Tê-lo ali era êxtase, medo e conforto, tudo de uma vez. Era casa, e a sensação que se tem ao achar uma lanterna numa noite escura. Era o pedido com afinco que as crianças faziam ao soprar um dente-de-leão, e as moedas jogadas pelos apaixonados na fonte de Afrodite.
Cada respiração era conectada, tudo era certo — era eles. A língua de Jimin era calma, paciente, ajeitando Jungkook em meio à afobação. Uma perna de Jungkook foi parar ao redor de sua cintura, prontamente segurada pelo outro. A mão de Jimin correu por sua coxa, e o moreno não pôde deixar de se empertigar. Sem fôlego, Jungkook finalmente abriu os olhos, se deparando com o outro encarando-lhe com ternura.
Com os lábios a centímetros de distância um do outro, Jungkook murmurou.
— Eu te amo.
E tudo mudou.
Jimin se levantou e se afastou como se tivesse tomado um choque. Ódio inflava seu rosto, substituindo toda a ternura que uma vez havia estado ali. As luzes se apagaram e o quarto ficou vermelho. Desesperado, Jungkook esticou a mão para alcançá-lo.
— Não!
A cama em que estava foi sendo empurrada com força a muitos metros de distância, e Jungkook ficou tonto ao se chocar com a cabeceira da cama. Um vazio imenso tomou conta de si, Jungkook desabou em lágrimas inconsoláveis saídas do centro de seu âmago sem nenhuma censura, nenhuma repreensão. Pura dor.
O vazio ao seu rodar passava diante dele muito rápido para que ele prestasse atenção. Até que ele o viu de novo. Jungkook chamou por Jimin, mas ele estava muito longe no vazio para ouvi-lo. Jungkook queria sair da cama, mas a velocidade forçava seu corpo contra a cabeceira.
— Jimin!!!
Outra pessoa apareceu. Mas ela estava de costas para Jungkook, longe demais para que ele pudesse perceber detalhes. Ele se aproximou de Jimin, que sorriu surpreso ao vê-lo. Quem ele era?
Os dois engataram em uma conversa surda, até que o homem irreconhecível puxou Jimin para um beijo rápido e cheio de luxúria, o qual o íncubo retribuiu na mesma intensidade. Mais lágrimas escorreram pelo rosto de Jungkook. Aquilo não devia estar acontecendo, aquilo não era justo, não era assim que deveria ser!
Jungkook gritou outra vez sentindo sua forças se extinguindo, seu peito doendo como se mil agulhas o perfurassem. Por que ele não ouvia?
A cama finalmente parou. Jungkook praticamente pulou para fora, tropeçando no caminho e quase caindo, mas ele nem se importou. Ele correu até eles, mas a distância nunca diminuía, seus joelhos cansados tremiam no caminho clamando por descanso. Quando Jungkook finalmente conseguiu alcançá-los, as pernas cederam, ele caiu de joelhos bem diante deles.
Os dois interromperam o beijo, trocando olhares maliciosos um para o outro antes de se virarem para Jungkook. Jimin fez uma expressão de nojo e desprezo, sem trocar uma palavra, e o outro deu um risinho cínico antes de impulsionar as pernas ao redor da cintura de Jimin para que ele o carregasse no colo. Sem olhar para trás, os dois foram embora através de uma névoa escura, deixando Jungkook para trás.
— Por favor, não me deixe aqui! Por favoooor... — Jungkook soluçou, sem conseguir se mover. — E-Eu preciso de você, Jimin, não me abandone! — ele choramingou, estendendo os braços.
Mas já era tarde demais. Tudo estava perdido. As sombras engoliram Jungkook, preenchendo seu corpo em pó e fumaça. Ele tossiu, tentando afastar as sombras, mas elas já haviam se estabilizado nele, bem lá dentro. Um último arquejo foi perdido na escuridão antes que Jungkook sucumbisse, caindo em desalento no chão. Sozinho. Com frio.
**
Um barulho o trouxe de volta. Jungkook abriu os olhos com dificuldade, o peito subindo e descendo acelerado pelo pesadelo que acabava de ter. Havia uma batida fraca vindo de seu lado esquerdo, e foi assim que ele percebeu que segurava com força uma das barras laterais da cela.
Ele se sentou mais ereto, imediatamente se arrependendo ao puxar consigo a perna machucada. A batida se tornou mais incessante, e ele não pode mais ignorar.
Na cela vizinha, uma mão batia na grade que os separava, tentando chamar a atenção de Jungkook. De imediato, ele ficou confuso, como poderia ter outra pessoa ali sem que ele percebesse?
A mão estendeu algo através de grade, e Jungkook a pegou nas mãos. Ele comprimiu os olhos para enxergar melhor. Era... uma mulher, minúscula e toda suja, mas era uma mulher. Ela pronunciou "coma" com os lábios, embora ele não conseguisse ouvir sua voz. Será que ela era muda?
Jungkook olhou para o objeto que ela tinha botado em suas mãos — um pedaço pequeno de pão. Com gratidão em seus olhos, ele murmurou um "obrigado", o qual a mulher a princípio não entendeu, mas depois balançou a cabeça e fez um sinal positivo com o polegar.
O garoto levou o alimento até os lábios, torcendo o nariz quando se deparou com um gosto esquisito. Afastando o alimento das mãos, Jungkook percebeu pequenos pontos azuis sobre toda a superfície do pão. Aquilo era mofo? O mofo da parede?
Tanto faz, ele pensou. Jungkook estava faminto demais para se preocupar, ele não podia se dar o luxo de desperdiçar algo precioso como comida. A mulher o observava atenta, queimando Jungkook através dos olhos.
O rosto da mulher era marrom de sujeira, coberto por grossas camadas de cabelo embaraçado e igualmente sujo, e ela usava um vestido maltrapilho branco desbotado. Pelo estado, ela parecia estar há muito tempo na prisão, mas por quê? Todas as outras celas pareciam estar vazias, menos a dela. Aquilo não podia ser coincidência.
— Qual o seu nome? — Jungkook tentou dizer, rápido demais para que ela lesse seus lábios. Ele então tentou novamente, dessa vez se certificando de que estava pronunciando as sílabas com calma e clareza.
A mulher pareceu ficar desconfortável por um momento, parecendo ter algum tipo de conflito interno. Ela cortou contato visual com Jungkook, e o garoto só foi entender o que ela estava fazendo quando ela o chamou com a mão e apontou para o chão.
Escrito de forma rudimentar, a mulher havia forçado o dedo no chão de terra para que uma palavra se formasse, "Sun-hee".
— Muito prazer, Sunhee.
—————————————————————
Notas da autora: releiam o capítulo 25, " Apricity". Beijinhos.
Bạn đang đọc truyện trên: AzTruyen.Top