41. Dissiri

Dissiri:  to violently tear and rip apart, to tear into pieces
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Ele encarou o próprio reflexo.

O horror e o choque em seu rosto eram quase uma pintura. A garganta de Jungkook se fechou em um nó. Algum lugar de seu cérebro planejara rotas de fuga, mas seus pés não o seguiriam de jeito nenhum. Seus membros estavam rígidos, petrificados — ele mal podia acreditar no que estava diante de seus olhos

O Outro era uma réplica quase perfeita de Jungkook.

Eles tinham o mesmo corte de cabelo. Os mesmos dentes incisivos proeminentes. A mesma pintinha sob o lábio inferior. A mesma cicatriz discreta no supercílio. Os mesmos polegares assimétricos. Ele era Jungkook.

E ao mesmo tempo, eles não poderiam ser mais diferentes. Ele vestia roupas de couro, moldadas sobre cada uma de suas curvas — das curvas de Jungkook— ele se adornava em mais correntes e pedaços de metal do que o garoto podia contar.

Sua postura e seus ossos pareciam domados, mais afiados, e ele exibia uma soberba que nunca poderia ser vista em Jungkook. Ele tinha asas enormes, negras, com penas grandes e finas do tamanho da palma da mão de Jungkook, e seriam de tirar o fôlego, se a visão delas não o assustasse tanto. Mas os olhos... eles eram a verdadeira diferença.

Os olhos de Jungkook eram escuros, redondos, amigáveis e quase dengosos. Mas os Dele não. Para começar, eles eram vermelhos, da cor de rubis de sangue, e eram mais angulosos, semicerrados — do jeito de um predador.

Jin uma vez o dissera que os olhos eram os portais da alma. Se assim fosse, Jungkook sabia que estava fodido, porque ele não enxergava nada ali além da mais pura escuridão.

— Olá, Jungkook. — disse o Outro, saboreando as palavras na língua.

Ele estava sentado de lado, com os dois pés jogados sobre um dos braços do trono. Ele estava relaxado, tão relaxado quanto um monstro estaria após conseguir atrair uma presa diretamente para sua armadilha. Êxtase puro.

As palavras se embaralharam e morreram na língua de Jungkook.

O Outro, por sua vez, pareceu se divertir e, erguendo um coração, literalmente, espremeu-o nas mãos até que seu conteúdo se despejasse dentro de sua boca. Jungkook observou em choque, sem mover um dedo.

Quando a última gota caiu, ele lambeu os lábios, arremessando a peça para um canto qualquer como se não fosse nada. Limpando a boca sangrenta com as costas das mãos, Ele se ajeitou no trono para encarar Jungkook.

— Quem é você? — Jungkook tomou coragem. Coragem fraca e mentirosa, mas as palavras saíram sem que ele titubeasse e, no momento, a última coisa que Jungkook queria era parecer covarde.

— Quem eu sou? Oras, eu sou você. — A voz do Outro era baixa, quente, ele articulava as palavras muito claramente, não de um jeito que um humano faria. Jungkook balançou a cabeça.

— Você não é eu, v-você é... — Ele estremeceu. As palavras tentavam sair de sua boca com a mesma velocidade que seu cérebro processava as informações; não funcionou.

A Criatura apoiou as mãos sobre os braços da poltrona, se inclinando para frente e arregalando os olhos em mania.

— Vamos... diga! Diga, criança, o que eu sou...? — Seu tom era de desafio.

— V-Você é um demônio... — Saiu em um sussurro..

O Outro curvou os lábios de forma presunçosa, suspirando,  como se fosse exatamente a resposta que ele esperava ouvir.

— Um demônio? Eu? Nãonãonão. Eu sou muito mais que um demônio. — Ele apoiou uma mão sobre o esterno, inflando o peito. — Eu não nasci, Jungkook, eu fui forjado, e as mãos que me forjaram carregam muito mais glória e honra do que qualquer um desses porcos adestrados poderia sonhar. Não me confunda. Eu... Sou... Você. — Ele terminou olhando no fundo dos olhos de Jungkook.

Cada palavra e postura tomada pelo Outro pareciam ensaiadas, estudadas, como se ele soubesse exatamente o impacto que queria causar. Jungkook não manteve o contato visual.

Outro sorriso, ainda mais aberto e alimentado pelo choque e repúdio estampados tão claramente no rosto de Jungkook. Era divertido porque Jungkook não podia contrariar, não quando a verdade se apresentava bem diante de seus olhos, não quando ele estava tão aterrorizado que mal podia se mover ou reagir. Monstros gostavam de brincar com a comida antes de devorá-la, e ali não tinha por que ser diferente.

— Eu não sei o que você é, ou o que fez comigo, mas eu sei que você é uma criatura maligna, e demoníaca ou não, eu vou te destruir.

O Outro passou a língua sob os lábios, inclinando o queixo de forma muito sutil e graciosa, ao mesmo tempo que sua sombra parecia se projetar de forma mais incisiva e imponente sobre Jungkook.

— Tente, se você é mesmo tão valente. Mas antes, saiba de algo: esse lugar agora é meu e, quer você ou não, o único motivo de você ainda estar respirando é porque eu permito. Não se iluda achando que está me intimidando, a verdadeira presa aqui é você, rapazinho, sempre foi. Quem dá todas as peças por aqui sou eu. Você já deveria saber disso, não? — ele deu uma risadinha irônica.

— O que você quer dizer por "seu lugar"? Você está na minha mente, é o meu corpo... — Jungkook mordeu a língua. A revelação o atingiu como um soco. Mas ele não conseguiria falar.

Falar em voz alta era legitimar a existência do Outro ali, era reconhecer que a verdade estava bem debaixo de seu nariz e ele não havia sido capaz de enxergar. Jungkook havia sido arrastado até ali na ilusão de ter total controle da situação, quando, na verdade, ele era o rato de laboratório.

— Foi você... Desde o começo, o meu cheiro... as mortes... tudo isso aqui... — Jungkook gesticulou —  Foi tudo você... Por quê? — Jungkook gaguejou.

— Bingo. — o Outro sorriu. — O quê? Você vai mesmo agir tão surpreso? Esse corpo pode ter nascido seu, mas ele me pertence há muito tempo. Você é meu, Jungkook, corpo e alma.

— E-Eu não sou seu. Nunca vou ser! Você não me conhece, você não sabe-

A criatura levantou as sobrancelhas numa expressão cínica.

— Oh, não sei? Jungkook, você pode não se conhecer, mas eu o conheço. Muito Bem. Você pode mentir para todos, até para si mesmo, mas nunca para mim. Eu sei de cada lembrança dolorosa, cada pensamento perverso, cada desejo sombrio e devasso seu. Eu sou o seu presente, passado e futuro, Jungkook. Nada acontece sem que eu saiba, nenhum batimento desse seu pequeno e inútil coração humano acontece sem a minha ciência. E em pouco tempo, já não haverá nós ou você, apenas eu.

— Por que você está fazendo isso? Por que agora? Por que eu? — Seus olhos ardiam, incapazes de piscar ou desviar o olhar, ele não se atrevia.

— Céus, você pode parar de agir como uma vítima por um minuto, sim? Isso é tão cansativo... Deve ser por isso que aquele íncubo.. Jimin? — deve ser algo do tipo — te despreza tanto. Tão escandaloso...

— Não. Fale. O. Nome. Dele. — Jungkook cerrou a mandíbula.

— Não? Por acaso, isso te incomoda? Não... Isso te enfurece, não é? Seu sangue ferve por causa dele. Talvez você nem estivesse pensando antes, mas agora você definitivamente me quer morto — Ele gargalhou, se ajeitando confortavelmente em seu trono mórbido.

— Você não faz ideia.

— Tsc, patético. Você mal escapou das minhas armadilhas, teria sido absorvido se não fosse... — Ele fechou os lábios. Dando uma tossidinha, ele continuou. — Você mal consegue se manter de pé, Jungkook. Tenha um pouco de orgulho, e eu te darei um pouco de dignidade para morrer, mas você precisa colaborar comigo.

— Eu não vou te ajudar com porra nenhuma! Esse "patético" aqui escapou de todas as suas armadilhas e cenários ridículos. Eu não sou fraco como você pensa, e eu não vou deixar que você tire mais nada de mim. Você não vai tomar conta do meu corpo!

A criatura riu de novo, dessa vez com força. A expressão raivosa de Jungkook se transformou em confusão, e quando a voz do Outro ficou um tom mais baixo e rouca, se transformou em medo.

— Você não percebeu mesmo... tão engraçado. Eu modifiquei sim sua alma e cada canto em que pude botar as mãos, mas a essência ainda é sua, os pensamentos e as memórias que construíram as bases desse reino foram feitas pela sua mente. Você deveria me agradecer, na verdade. Eu te deixei ver quem você deseja tanto ser. Depois, a persona que você finge ser— todos os seus sentimentos mais íntimos e perturbadores reunidos e organizados nas caixinhas mais bonitinhas e apresentáveis... — ele fez uma pausa.

Se inclinando o máximo possível, com olhos vermelhos e bem abertos penetrando cada vértice do corpo de Jungkook, o Outro pronunciou cada palavra com ainda mais deleite.

— Mas aqui, Jungkook, não há farsas ou mentiras. Aqui só existe o seu instinto, o seu desejo, a sua verdadeira natureza selvagem e descontrolada. Aquilo eram apenas projeções, mas esse lugar, eu, nós somos a única coisa realmente verdadeira sobre você, a única coisa da qual você não consegue escapar. Eu sou toda a sua ira, a sua vaidade, a sua luxúria... tudo que você tenta dissimular e suprimir, quando nós bem sabemos a verdade. E agora... você chegou ao fim.

Jungkook deu um passo para trás, assustado.

— Tarde demais... — Ele disse.

Num piscar de olhos, Ele estava voando na direção de Jungkook.

Jungkook tentou correr, mas quando sentiu a criatura a centímetros de si, ele se jogou no chão sujo, e o Outro teve que frear pouco antes de atingir uma das tochas. Ele se virou no mesmo momento, encarando o garoto com divertimento.

— Bom.

Assustado, Jungkook pôs-se a correr de novo, mas ele não tinha porra de plano nenhum, nem fazia ideia de quanto tempo mais ele conseguiria driblar o Outro. Ele precisava de tempo, de espaço para pensar, de alguma saída. Mas naquele mar sombrio e infinito, não havia nada a ser visto além das duas almas.

Não demorou muito tempo para que o Outro se cansasse daquela brincadeirinha, e quando os olhos rubros se fixaram em Jungkook, ele cortou o ar em questão de segundos, ríspido como uma faca.

O Outro agarrou Jungkook pelo pescoço, prendendo-o no ar. Eles subiram a, pelo menos, 10 metros de altura, onde a pequena ilha de corpos já não passava de um montinho de sujeira no meio da escuridão sangrenta.

— Vamos, Jungkook, peça misericórdia, implore pela sua vida! Deixe-me saborear seu desespero, seu sofrimento! Você não sabe o quanto eu esperei por esse momento...

Jungkook se debatia, lutando contra o desamparo da falta de um chão sobre seus pés. Ele fechou os olhos, tentando desviar a atenção da altura, daqueles malditos olhos vermelhos.

— Eu não vou te dar n-nada, NADA!

Houve silêncio. Por um momento, Jungkook achou que Ele tivesse desistido, tendo estado encarando Jungkook sem dizer nada. Mas, então, a criatura tombou o pescoço para o lado, erguendo a sobrancelha e dando um sorriso.

— Que assim seja, então. — E largou Jungkook.

As mãos de Jungkook tentaram agarrá-lo, mas ele já não estava mais lá. Olhar para baixo se tornou inevitável, e seu estômago se embrulhou quando percebeu o que o impacto daquela altura faria consigo.

De um modo ou de outro, ele daria ao Outro o espetáculo que ele tanto queria.

Jungkook caía a uma velocidade assustadora, sua boca estava seca e ele mal conseguia abrir os olhos para olhar os arredores. Jungkook sentia como um passarinho caindo do ninho, totalmente desprotegido e despreparado, e enquanto o chão ainda demorava a se aproximar, ele só podia entrar em desespero e agonizar sobre o momento de sua morte.

Arrancando o cabelo dos olhos, Jungkook virou a cabeça a tempo de ver o momento em que o Outro voltou para seu trono, com os olhos grudados em Jungkook. Ele ainda tinha tantas perguntas, mas ele não poderia fazer nenhuma delas se estivesse morto.

Sem mais o que fazer, Jungkook fez a única coisa que sabia: rezou.

— Por favor, se alguém estiver ouvindo — qualquer um — se a minha vida valer nem que seja um pouquinho, por favor, me ajude a sair daqui, me ajude a derrotar esse monstro. Eu não posso deixá-lo tomar conta de mim, do meu corpo... Eu não quero morrer, não assim, não agora, não por ele. — Jungkook tentou afastar todos os pensamentos do quão ridículo ele devia parecer ali, ele precisava manter a fé, embora não acreditasse muito que fosse se safar dessa vez.

— Eu-, d-depois, eu... aceito morrer depois, quando tudo estiver terminado, e eu finalmente me libertar dessa coisa, eu aceito morrer. Isso é horrível de se pedir, mas... é o que eu sinto. Vai ficar tudo bem, eu só quero que eles fiquem bem. Minha família. Meus amigos. Se alguém estiver ouvindo, é só isso que eu preciso: que eles fiquem seguros, para que tudo isso não tenha sido em vão.

Ele já estava a poucos metros do chão. O inevitável iria acontecer.

Jungkook fechou os olhos com força, se abraçando, preparando-se para o impacto iminente.

5...

4...

3...

2...

1.

— Por favor...

Jungkook atingiu o mar de corpos com força total, uma questão de centímetros do chão duro. Imediatamente, houve uma colisão contra algo duro em sua cabeça, possivelmente uma rocha, rendendo-lhe um raspão que lhe esfolou a bochecha direita inteira. Ele havia submergido no sangue há vários metros da superfície, onde a substância era ainda mais densa e, obviamente, sem presença nenhuma de oxigênio.

Por sorte, ou por misericórdia divina, a prece havia sido seu último pensamento. Ele não teve que lutar por muito tempo antes de se afogar no sangue, antes de ter o ar expulso de seus pulmões à força. Ele só ficou lá, inconsciente.

Naquele limbo interminável, onde não se via o começo ou o fim, a passagem do tempo era algo realmente estranho. Mas, em algum momento, Jungkook acordou.

Com a força de pernas que não poderiam ser as dele, ele subiu até a superfície, e quando o fez, o Outro estava lá para testemunhar o momento. O chão tremeu sob os pés da Criatura. O mar oscilou por alguns momentos, e o feixe de luz que os iluminava pareceu ficar mais fraco por um instante.

Jungkook agarrou a terra com as duas mãos, tossindo o sangue para fora e se puxando para cima. Ele era uma mancha vermelha e brilhante na escuridão, se destacando de todo o resto. No entanto, a besta não o daria espaço, e voou na direção de Jungkook antes que ele tivesse mais chance de se recuperar.

— Seu moleque maldito... MORRA! — O Outro bateu as asas com força, se impulsonando com as garras estendidas para o coração de Jungkook.

Jungkook conseguiu ficar de pé. Protegendo o rosto com os antebraços, ele afastou as pernas para se preparar para o choque contra a criatura. Ele não estava mais com medo. No entanto, o impacto não veio.

No chão, a vários metros de Jungkook, o Outro havia sido arremessado numa força de repulsão. Ele arregalou os olhos, confuso. Jungkook continuava de pé no mesmo lugar, impassível, olhos mortais encarando-o. Jungkook não se deu tempo para entender o que havia acontecido, estava muito focado.

O Outro se preparou para tentar golpear Jungkook novamente, mas não a tempo de ser contra-atacado por ele.

Jungkook correu e desferiu um gancho sobre seu estômago, fazendo-o curvar-se sobre o próprio corpo. A Criatura arfou, mas o soco não havia sido suficiente para derrubá-lo. Agarrando a mão de Jungkook,  Ele tentou usar do apoio para desfigurar um chute contra ele, mas Jungkook foi mais rápido e agarrou sua perna no ato. Felizmente para o Outro, Ele conseguiu chutar o rosto de Jungkook num movimento sujo e rápido para se desvencilhar, pondo distância entre eles.

Ele examinou Jungkook de cima a baixo. Parecia... desnorteado, um pouco hesitante.

— Como foi que você conseguiu...

— Eu disse que iria te matar. — A voz de Jungkook era rouca, mas firme.

Muito rápido para entenderem, houve um estrondo alto que fez o lugar inteiro balançar. Os dois travaram no lugar ao verem uma rachadura no chão abrindo um enorme penhasco bem diante de seus olhos. Jungkook quase se desequilibrou e caiu, precisando jogar o peso para os pés para se manter em pé. O Outro nem piscou, ainda com os olhos fixos em Jungkook.

A abertura parecia tão infinita quanto o mar, se estendendo de um vértice ao outro além do que a visão poderia alcançar. Um volume considerável do sangue enlameado do mar começara a escorrer em jatos para dentro da abertura, fazendo um ruído alto de cachoeira. Tochas da trilha começaram a cair junto com os pedaços dos corpos putrificados — adicionando o barulho de dezenas de explosões acontecendo bem embaixo dos dois homens. Pedaços grandes de pedra e terra começavam a desmoronar e juntar-se à abertura por todo o lugar, formando pequenas e instáveis ilhas.

A essa altura, o penhasco já os tinha feito se distanciar ainda mais um do outro, mas nem isso os impediria de lutar. Jungkook imaginou, por um momento, que aquilo pudesse ter sido armado pelo Outro, mas pelo choque evidente em seu rosto, ficou claro que ele foi pego de surpresa tanto quanto Jungkook.

O Outro botou todo o peso sobre a perna esquerda, Jungkook fazendo o mesmo, curvando-se para frente em posição de ataque.

— É corajoso da sua parte querer me encarar, mas nós dois sabemos como isso irá terminar. Nós ainda podemos terminar isso de forma rápida e quase indolor para você, Jungkook. — Uma estaca afiada e metálica surgiu nas mãos da besta, a qual ele empunhou na mesma hora.

— Vai se foder.

Dando um grito gutural, O Outro partiu para cima de Jungkook em velocidade máxima.

A Criatura pulou o penhasco num salto inacreditável, surgindo acima de Jungkook com as duas mãos empunhando a estaca. Ele caiu sobre Jungkook com tudo, errando o coração de Jungkook por pouco, graças a um deslizamento da terra sobre eles que ocorreu ao mesmo tempo, mas conseguindo fincar a estaca na palma da mão que Jungkook usara para se proteger.

Tudo havia sido rápido demais para Jungkook processar, ele teve que contar apenas com os instintos de seu próprio corpo para reagir à Criatura e, agora com a dor latejante em sua mão desorientando ainda mais seus sentidos, ele sabia que havia pisado na bola. O chão sobre os pés dos homens começara a tombar em direção ao penhasco, tornando quase impossível a tarefa de se manter de pé ali.

Os dois rolaram pela pedra até que a Criatura ficasse por cima e a cabeça de Jungkook ficasse pendente sobre a beirada da rocha. Sem perder tempo, o Outro tentou usar da vantagem do espaço para tentar forçar a estaca contra o peito de Jungkook. Ele, por sua vez, conseguiu reagir a tempo de segurar a estaca, travando-a a centímetros de si.

— Desista, Jungkook! Você está acabado! Você vai morrer aqui de qualquer jeito. Se não por mim, vai ser assolado!

Jungkook o olhou sem nenhum pingo de medo ou hesitação, pegando-o de surpresa.

— Quem está acabado é você. — ele disse. — Você não me mata porque não consegue. Não conseguiu antes, e eu te prometo que não vai conseguir agora.

— Isso é o que vamos ver— ele disse entre dentes.

Mantendo uma mão forte sobre a estaca, O Outro usou a outra mão livre para apertá-la sobre a cabeça de Jungkook. O toque ardeu no mesmo segundo em que ele o fez, e Jungkook sentiu como se agulhas espetassem seu cérebro. Ele gritou, sentindo como se a pele se derretesse sobre os dedos da Besta.

— Submeta, Jungkook. É a sua última chance. Me dê o controle, me dê tudo! — O Outro aumentou o aperto, e sons de estalos foram ouvidos nos pontos em que sua mão apertava o crânio de Jungkook.

Ele gritou com a dor excruciante, não era nada que ele já tinha sentido na vida. Jungkook não sabia como conseguia se manter consciente, ou como ainda conseguia tirar forças para manter a arma afastada de seu peito, mas ele sabia que estava chegando num ponto crítico com os fios grossos de sangue escorrendo de sua testa.

— Eu vou te esmagar, você vai morrer pelas minhas mãos!  — O Outro gargalhou. — Eu vou comer seu coração inteiro, vou devorar cada pedaço dessa sua carne imunda!

Os músculos de Jungkook começavam a dar sinais de que iriam vacilar, o golpe fatal se aproximava. O Outro usara do momento para forçar a estaca, abrindo um corte do umbigo de Jungkook até o esterno. Jungkook lutava, mas ele não conseguia segurar a arma por muito mais tempo. A energia que o havia carregado até ali estava se evaporando, e as consequências de seus ferimentos já apareciam mais claramente.

Ele esteve em desvantagem desde o começo mas, de algum jeito, Jungkook havia conseguido aguentar o Outro até ali, ele só precisava segurar mais um pouco...

Mas algo estava acontecendo. Ao redor deles, era como se o mundo estivesse se desfazendo de forma ainda mais intensa.  O abismo era cada vez mais largo e mais fundo. Lava borbulhante subia pela abertura, a grande montanha de corpos se desfizera completamente e o trono de carne da Besta havia caído e se transformado em restos sem valor. O ruído da cascata de sangue já era tanto que encobria praticamente até os sons das explosões. Uma névoa de gases havia evaporado das profundezas do abismo e tornava o ar ainda mais seco e difícil de respirar. Em poucos minutos, os dois seriam consumidos pelo abismo.

A pele branca e lisa do Outro começou a rachar e derreter, dando espaço à uma massa escura e grossa. Os olhos ficavam mais e mais arregalados com o sumiço de pele para tapá-los, dando um ar ainda mais grotesco para a imagem. Como o esperado, nenhuma farsa poderia ser perfeita, nenhuma mentira era tão boa que não poderia ser desmantelada pela verdade.

Jungkook olhou para sua própria situação. Ele não conseguia enxergar muito com as asas enormes do Outro trancando-o ao redor delas, suas pernas estavam totalmente imobilizadas sob o corpo pesado da criatura e suas mãos eram a única coisa impedindo a estaca de cravar em seu coração.

Ele poderia ser mais analítico, pesquisar saídas da situação com mais calma, aplicar golpes mais certeiros, se ele não estivesse com o cérebro prestes a ser esmagado e prestes a ter o coração perfurado. Jungkook voltou os olhos para a criatura, para o seu outro "eu".

Os lugares em que a roupa de couro estava protegiam a imagem da deterioração em que o corpo dele se encontrava, mas os braços e o rosto não podiam ser encobertos. Ele não era feito de carne, como um ser normal, ou como um demônio — até mesmo a massa escura de sua verdadeira forma parecia estar presa sob uma película invisível, como se seu corpo tivesse se rearranjado para caber ali. Os olhos vermelhos eram a única coisa que não mudavam, se qualquer coisa, pareciam ter ficado ainda mais vermelhos, em sangue vivo, com um desejo gritante por trás deles.

Como numa epifania, Jungkook então pareceu entender que sua resistência era inútil. Ele não estava matando o Outro, ele não estava resolvendo a situação. Ele estava sendo teimoso e covarde, pensando apenas na sua própria sobrevivência, fazendo exatamente o que ele disse que não iria fazer. Só havia um jeito de matar a criatura e, para isso, Jungkook entendeu que o sacrifício era a única forma.

Uma vida por outra vida, Jungkook tinha que se libertar de vez do medo e de seus próprios sentimentos estúpidos para botar um fim àquela situação.

A criatura havia sobrevivido tanto tempo escondida ali não só por causa de seus poderes, mas também porque se aproveitava de todas as falhas e inseguranças de Jungkook. Cada passo que Ele deu foi contando com a estupidez e ingenuidade de Jungkook, e em todas as vezes, ele obteve sucesso. Jungkook nunca teve força de vontade suficiente para se impor e defender suas vontades, mas quando explodia, ele era guiado por uma raiva cega e sem direcionamento. Muito fácil de manipular, muito fácil de controlar, ele havia entregado todas as chaves de que o Outro precisava para tomar conta de si, e Ele só não havia o tomado por completo porque precisava matá-lo de dentro para fora, ou assim ele pensou.

Jungkook olhou para onde suas próprias mãos, instintivamente, ainda seguravam a estaca.

E então, ele deixou ir.

A estaca se cravou no peito de Jungkook com tudo, mas a morte não foi imediata. Nos poucos segundos que o restavam, ele afundou os polegares nos olhos da criatura, fazendo as órbitas virarem geléia sobre ele. A criatura gritou, puxando as mãos de Jungkook para fora, mas já não havia mais nada a se fazer. Jungkook o agarrou com os dois braços, fazendo com que a estaca atravessasse o Outro também,  e imediatamente os empurrou precipício abaixo.

Jungkook cuspiu sangue e, apesar de tudo, tinha um sorriso tranquilo no rosto. Ele estava em paz verdadeira com a própria decisão. 

Enquanto eles caíam, um fluído negro começara a escorrer das órbitas da criatura para o ponto em que seus troncos estavam unidos. O Outro se debatia cegamente, cortando e perfurando Jungkook com as garras, mas sem a visão, ele era inútil, as asas presas sobre os braços fortes do garoto.

Eles estavam a poucos metros de serem consumidos pela lava. Em seu último momento, Jungkook se permitiu fechar os olhos e preencher seus pensamentos com a imagem do sorriso de seus amigos. Sua família.

O fio grosso do líquido havia feito seu caminho do ombro de Jungkook até o espaço da ferida aberta de seu peito. No instante em que vermelho e preto se encontraram, houve uma explosão de luz.

E então, tudo ficou branco.


Morte.

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🧍🏻‍♀️....oi, rs. Muito obrigada por terem lido até aqui (e desculpa também k). Como já era de se esperar, esse capitulo foi grande pra caralho, e por isso eu tive o bom senso de separar ele. Com o final desse cap, finalmente se encerra o 2° ato, e enfim entramos no 3° e último ato da fic. Mas n se desesperem que ainda tem muita coisa por vir.

Como sempre, deem fav e compartilhem a fic se estiverem gostando (comentários/críticas são muito bem-vindos e apreciados). Eu realmente não sou acostumada a escrever cenas de ação, então foi um puta desafio pra mim, espero ter conseguido apetecer vocês com a escrita k😅

Possivelmente eu n vou conseguir postar o próximo cap até o ano novo, então desde já eu desejo um bom final de ano a todos os meus leitores <3 beijos e até a proxima.

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