40. Dozakh
Dozakh: a place of torment one believes they are in when separated from their loved ones; hell.
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Dor é subjetiva.
Claro, existem dezenas, senão centenas de intensidades, situações e formas em que pode aparecer aos seres sensíveis — fisicamente, psicologicamente, emocionalmente, espiritualmente, metafisicamente(?)
Seja como for, existe apenas uma máxima que rege esse sentimento infinitamente complexo, estudado e debatido no decorrer dos milhares de anos de existência da raça humana, e este é: sua experiência é universal.
Não importa sua cor, sua língua, etnia ou classe social — todas as pessoas estão fadadas a sofrê-lo do dia em que nascem até o momento que retornam às cinzas.
Jungkook, no entanto, estava prestes a descobrir uma forma muito única e singular de se vivenciar esse sentimento. De fato, é impossível rastrear e mapear de forma objetiva cada aspecto dessa experiência que estava por vir, a única coisa que se poderia dizer era: pobre Jungkook...
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Ele tinha dado 3 passos.
O primeiro, em total instinto.
O segundo, em estado de confusão.
E o terceiro — o último antes que a realidade lhe pesasse sobre os ombros.
Jungkook havia saído do portal normalmente. Estava vestido em todas as suas roupas, limpo, com todos os membros no lugar, intocado, mas ele ainda tinha a sensação vívida fantasmagórica do sangue viscoso da Criatura ensopando suas mãos.
O cheiro pútrido ainda oscilava logo sob suas narinas, embora não houvesse um por quê. Os guinchos da voz estridente dela vibravam em seus ouvidos sem pausa, altos. Jungkook começara a ficar tonto após poucos segundos.
Ele teve que se segurar na mesa de canto mais próxima.
Um... Dois... Respire. Só respire. Pare de pensar. RESPIRE. Esqueça isso. RESPIRE, JUNGKOOK! Um. Dois. Um. Dois—
As lágrimas jorraram sem que ele percebesse. Mas por que ele estava chorando? Seria tristeza, choque, ou desespero? Oh, não. Jungkook tinha se dado conta de que tinha tirado a vida de um ser — a sangue frio — para sempre e, por Deus, ele jurava que não queria ter feito aquilo.
Não era real. Não tinha como ser, afinal, isso tudo eram coisas inventadas por sua cabeça. Mas... pareceu tão real. Ele sentiu quando a lâmina rasgou a carne flácida e cinzenta da criatura, ele sentiu quando a faca arranhou suas costelas, ele sentiu quando as gotículas de sangue espirraram em seu próprio rosto, e ele sentiu quando... quando a vida se esvaiu de seus olhos.
Ele percorreu as mãos pelo rosto, de novo e de novo, como se ele pudesse esfregar aquelas memórias para fora. As pálpebras de Jungkook fibrilavam numa frequência anormal, sua respiração nada mais era que lufadas de ar superficiais e vazias, tudo parecia estar girando.
Algo cresceu em seu peito, se alimentando daquilo, ou talvez fosse Jungkook que o estivesse consumindo como uma besta faminta.
Ele se fechou em torno do sentimento desconhecido. Era como um abismo, e Jungkook já estava tão fundo nele que mal conseguia diferenciar seus contornos no meio da escuridão.
Ele estava cego. Por um momento, ele se tornou transparente, o continente de toda a escuridão que o cercava. Ele era tudo — as pedras, o ar, a água, o vácuo e tudo que o preenchesse. E depois... ele não era nada.
Jungkook se viu sumindo lentamente, como se seus átomos acordassem e se desmantelassem uns dos outros, deformando o espaço corpóreo do garoto.
Ele viu camadas se separando, se desmanchando, um líquido dourado como ouro percorrendo o que deveriam ser suas veias e um outro preto como piche, tomando conta dos seus membros e da sua carne. Era quente na mesma proporção que o esfriava até os ossos. Palavras não eram suficientes para expressar seu choque.
Entrando em desespero, Jungkook tentou esmagar aquilo de dentro para fora, braços invisíveis e fracos lutando contra uma ameaça devastadora — ele não tinha forças para controlar o que estava acontecendo.
A mente de Jungkook se desordenou. Ele teve a visão vívida de seus arredores, como se, de repente, ele pudesse ver tudo com total clareza, fora de seu corpo. Ele viu quando, sem aviso, um amontoado de partes se arrancou para fora dele, sumindo como flocos de poeira no ar. A mansão pareceu tremer. Mas foi rápido demais, talvez ele só tivesse imaginado...
E como num piscar de olhos, ele voltou a si.
Jungkook deu uma expirada alta e profunda, como se tivesse ficado asfixiado por muito tempo. Ele sibilou murmúrios desconexos, agarrando seu próprio corpo, tentando ver se tudo estava no lugar. Aparentemente, sim. Ele estava mais calmo. Não, não calmo no sentido de aliviado após uma culpa passageira. Ele só não estava mais. Nada. Oco.
Houve aquela mesma sensação esquisita familiar em seus bolsos traseiros. Ele soluçou, cada respiração doía. Jungkook se recompôs. Não totalmente, mas era mais fácil fingir que sim. Algo em Jungkook o dizia para continuar, para ser forte, para enfrentar... e era difícil. Cada passo daquela jornada estava despedaçando-o. Ele tinha conseguido chegar muito longe, mas ao invés de se sentir confiante e orgulhoso, Jungkook só se sentia cada vez mais quebrado.
Com as mãos instáveis, ele conseguiu retirar o papel de dentro do bolso. E, bem...
A imagem finalmente tinha se formado.
No meio da imagem, três cabeças se desprendiam de um mesmo busto. Mas não eram cabeças no sentido convencional da coisa — estavam deformadas demais para serem chamadas assim. Elas tinham em comum a mesma boca vertical e cheia de dentes, olhos angulosos e vazios, mas tinham suas particularidades muito bem distintas.
A primeira tinha um longo e fino pescoço, as orelhas eram pontiagudas e apontadas para cima, e o queixo fino se projetava para frente. A segunda tinha um pescoço menor e mais largo, seus traços eram mais fortes, musculosos. A mandíbula era proeminente, sua boca era mais cheia de dentes, suas orelhas eram redondas e comportadas, contidas, mas ainda sim, ameaçadoras.
Porém, a terceira... essa sim era a pior.
O pescoço da terceira parecia torcido, com centenas de espinhos cravados. Da bonca monstruosa se projetava uma língua longa e fina, com gotas de sangue na ponta. Seus olhos eram vermelhos, e pareciam encarar diretamente Jungkook, como se o provocando, ao mesmo tempo que pareciam não focar em nenhum lugar em específico. Suas orelhas eram grandes e rebeldes, espaçosas, mas também com pontas afiadas.
Havia algo de muito perturbador ali, e Jungkook sentiu seu coração escapando as batidas como se ele estivesse em perigo de novo.
Na parte de baixo, algo estava escrito:
Triptych
A resposta fica no centro.
Jungkook teve que ler duas vezes para se certificar de que tinha entendido certo.
— Centro? — ele murmurou numa voz rouca. — Centro de onde? O que...
Ele encarou a imagem, prestando atenção nos detalhes da tinta sobre os espaços côncavos onde o papel se ondulava. Era só um desenho, sem palavras ou coisas escondidas.
Jungkook virou o papel de ponta-cabeça, e depois olhou do avesso. Nada. Seja o que fosse, a resposta do enigma com certeza não estava ali.
Jungkook atravessou os corredores vazios com a mesma atenção e paciência de quando havia entrado. De certa forma, ele estava mais confortável, mais familiarizado, embora soubesse que essa sensação era uma farsa calculada. Ele achou uma janela, e algo havia mudado. O céu já estava escuro lá fora. Tons de vermelho e roxo se contrastavam numa mistura quase celestial. Um vento forte fazia todas as árvores angularem seus galhos e folhas para uma mesma direção, e já não se ouvia barulho nenhum. Nem mesmo dos insetos.
Aparentemente, ele estava no segundo andar. A escada lateral o levou de volta ao primeiro andar. As luzes estavam apagadas; as portas, fechadas. Jungkook sentiu calafrios.
Ele não sabia para onde estava andando. Dessa vez não haviam barulhos, luzes, ou indicadores de qualquer tipo, apenas uma frase sem sentido num papel amarelado. Ele passou pela porta da mansão, ainda trancada, pela sala de jantar, pela cozinha, até retornar ao saguão principal.
Jungkook não tinha conseguido perceber da primeira vez, mas as escadas duplas, em cada canto da parede, se uniam no topo do mezanino do segundo andar, e as projeções de suas bases, somadas à pouca luz, batendo exatamente nos pontos em que deveriam, naquele exato lugar e momento do dia, formavam uma espécie de seta para dentro do saguão.
— Deve ser isso...
Seguindo na direção marcada pela seta, Jungkook foi no caminho de um corredor principal, largo, de onde ele tinha certeza que as portas duplas haviam estado fechadas no momento em que ele chegara à mansão. Conforme ele ia mais e mais fundo no corredor, a incidência de luz ficava cada vez menor, até que Jungkook não conseguisse enxergar nem mais um palmo à frente.
Ele olhou para trás, e se assustou quando se deu conta do quanto tinha andado. Era humanamente impossível um corredor daquele tamanho caber dentro de uma casa, o cenário era tão artificial e bizarro que Jungkook quis rir de nervoso.
Um pé na frente do outro, ele teve que se guiar pelas paredes, perdendo velocidade e ficando mais e mais assustado. A escuridão era fria, e seus pensamentos, em meio a isso, eram tão altos quanto ecos fantasmas.
E então, ele caiu.
Se Jungkook achava que antes não havia como ficar mais escuro, agora ele sabia que estava profundamente enganado. A fenda que se abriu sobre seus pés não parecia com um uma abertura comum no chão, mas como um buraco negro. Lá dentro era diferente — ele não via contornos, tampouco sentia seu próprio peso, a gravidade ou literalmente qualquer outra coisa. Como um limbo deveria ser.
Jungkook não sabia se estava caindo ou se só estava pendente no mesmo lugar por horas a fio. Não havia diferença entre o lugar que estava há 10 minutos e o que estava agora. Tudo era o mesmo. Ele pensou ter gritado enquanto caía, mas suas palavras eram tão pequenas e insignificantes que se perderam de seus ouvidos dentro do buraco negro. Ele fechou os olhos e manteve a boca fechada, numa tentativa ingênua de se conseguir algum controle sobre o que estava acontecendo.
Jungkook foi atirado num mar enlameado. Na realidade, foi uma decisão arbitrária chamar aquela gosma escura de lama. Ele havia aterrissado nela com tudo, e por pura sorte não quebrou nada.
— Argh! Que nojo. Que merda é essa...? — Jungkook encarou as mãos enlameadas.
Ele se sentou, usando as costas das mãos para tirar aquilo dos seus olhos. Jungkook olhou para cima. Ele parecia estar à ceu aberto, mas era tudo tão negro quanto o buraco do qual havia saído, ele poderia estar a centenas de metros abaixo da superfície.
Jungkook espremeu os olhos para o horizonte. Nada. Silêncio total. Jungkook conseguia ouvir seu próprio coração agitado. De repente, ele percebeu o quão pequeno e vulnerável ele era ali. Um intruso, um invasor, algo que não fazia parte e nem deveria estar pisando ali. Não havia sinal em lugar nenhum de presença humana, ou animal, ou de qualquer coisa viva, aquela lama era uniforme em todas suas dimensões e tomava conta do lugar na mesma proporção do Oceano Pacífico.
Eventualmente, ele se levantou. Cada opção parecia ser a mesma, não importava onde ele olhasse, mas, no final, ele optou por seguir pela direção norte. Por que ele estava fazendo aquilo, ou para quê, eram perguntas muito válidas e que foram respondidas em sua cabeça sem transtorno nenhum.
Porque é melhor fazer alguma coisa do que simplesmente não fazer nada. Porque eu vim para obter respostas. Porque, vivo ou morto, eu só terei paz quando terminar esse tormento. Porque os hyungs estão contando comigo. Porque talvez essa seja a última decisão que eu consiga tomar na vida.
O propósito de todo aquele joguinho sádico ainda não lhe era claro. No começo, Jungkook achava que estava apenas vendo a pura e simples manifestação de sua mente perturbada. Mas com o decorrer de tudo, ficou cada vez mais claro que suas experiências estavam sendo manipuladas e guiadas por... alguma coisa. Jungkook não sabia muito sobre o funcionamento de vodus, maldições, ou até mesmo do próprio mundo do demônios (que parecia tão complexo e burocrático quanto o próprio mundo humano), mas ele sabia que a resposta não seria simples ou fácil de digerir.
Passo após passo, a cobertura enlameada subiu dos tornozelos de Jungkook até seus quadris. Ele avistou uma luz fraca ao fundo, e a seguiu. A lama se tornou terra firme, e ele gemeu quando pôde sentir a firmeza do chão de novo. A luz se revelou ser um poste de luz, não exatamente, mais como um pedaço fino de madeira cravado no chão, com uma tocha na ponta. E, na verdade, haviam dezena delas, distanciadas a meio metro umas das outras, formando uma trilha.
Jungkook se sentiu ainda mais intimidado. Aquilo não era aleatório. A luz ali havia sido botada de propósito, para que olhos humanos pudessem enxergar. Para que Jungkook pudesse enxergar...
Cada passo se tornava mais demorado e hesitante que o anterior; cada respiração, mais pesada. As palmas das mãos de Jungkook suavam, seus olhos eram apenas dois pontinhos brilhantes no meio de toda a lama e sujeira. E quando a trilha de tochas terminou, ele viu.
Jungkook travou no lugar.
Seus ossos tremeram tanto que ele os pode ouvir em seus ouvidos.
O nó que se alojou em seu estômago era de pura repulsa. E medo.
Um morro alto de lama se estendia ao horizonte. Mas, com a iluminação certa (vinda de um ponto sem sentido lógico), e não das tochas enganosas, Jungkook percebeu que a lama que o rodeava não era realmente preta. Era vermelha.
Mas não era apenas sangue. Era grosso demais para ser apenas isso. Os grumos densos e elásticos aderidos ao seu corpo não mentiam. E seus olhos sibilaram quando encontraram uma mão humana se estendendo para a fora da pilha.
Jungkook não havia nadado em lama. Ele havia nadado no meio de restos cadavéricos.
Houve uma risada estridente, e seu olhar se fixou sem qualquer demora.
No topo da pilha de cadáveres, ficava um trono feito a partir de carne e pele humana. Unhas, ossos, dentes e fios de cabelo, sem qualquer distinção. Mas nem esses detalhes grotescos puderam desviar a atenção de Jungkook do que estava ali, de quem estava ali.
Jungkook encarou o próprio reflexo.
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