39.Súton

Súton: twilight; the approach of the death or the end of something
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Ele encarou a abertura por um momento.

Jungkook ficara horas pedindo para que a maldita porta abrisse, para que agora ela magicamente surgisse sem mais nem menos. O mais ridículo era que, apesar disso, agora que estava à sua frente, ele não conseguia dar um passo sequer.

Ter opções era incrivelmente mais difícil do que não se ter nenhuma.

Mais uma vez, ele teve que fazer o esforço de bloquear absolutamente todos os pensamentos intrusivos — ele teria que deixar suas tendências auto-destrutivas para outra hora se quisesse fugir dali a tempo.

Atrás da abertura, havia uma escada em espiral feita de pedra, cuja qual ele subiu muito atento a cada um de seus próprios barulhos, sem ter certeza do que aguardava pelo outro lado.

Podia ouvir-se pequenos gotas caindo em algum lugar e fazendo eco, a umidade causava cócegas no nariz do garoto e ele teve a breve impressão de ter seu peito pressionado.
Mas era só uma escada, e ele estava terrivelmente desidratado.

No topo da escada, havia um alçapão destrancado para que ele abrisse, e assim Jungkook o fez. Ele botou apenas os olhos para a fora, dando de cara com uma sala aberta, clara e... branca?

Tudo era branco. Desde a cor do mármore no chão, ate o papel de parede, os móveis e os instrumentos médicos. Calma, instrumentos médicos?

Ah, aquilo não era um bom sinal. Mesmo.

Infelizmente, ele não tinha outra opção.

Jungkook ergueu a tampa com cautela, colocando um membro após o outro para fora e fechando o alçapão devagar. Ele decidiu não se levantar, não enquanto não tivesse certeza de onde a criatura estava.

Ele engatinhou pelo chão até uma das bancadas de mármore, pegando dali o que parecia ser um martelo.

A experiência de Jungkook com armas era praticamente inexistente, ele só sabia usar sua força bruta em combates corpo-a-corpo, mas ali ele estava em desvantagem, e dificilmente a criatura cederia a truques e golpes simples de boxe.

De onde ele estava, Jungkook conseguia ver janelas grossas, mas muito opacas, era impossível discernir algo além dos contornos dos objetos que haviam no exterior. Havia uma maca branca no fundo da sala, com suportes para amarrar pés e mãos, e Jungkook sabia que ele não queria estar ali de jeito nenhum.

Ele grudou as costas contra a parede, tentando ter uma visão mais ampla do lugar. Sem portas. De novo. As janelas já eram caso perdido, não quebrariam se não houvesse uma britadeira ou, no mínimo, um instrumento pesado de ferro.

E, como que do nada, ele ouviu um cantarolar familiar.

Pensando rápido, Jungkook correu para se esconder, ficando num espaço claustrofóbico entre uma parede e um pilar branco. O lugar era apertado e ele quase nao coube ali, tendo que puxar seus joelhos contra o peito e prender a respiração.

A criatura surgiu de sabe-se-lá-onde carregando uma cesta cheia de flores, cogumelos e outras coisas. Como de usual, ela carregava aquele mesmo brilho inocente e acalentador, embora agora Jungkook só sentisse arrepios, e sem muitas delongas pôs se a espalhar os objetos sobre uma bancada.

Ela estava fazendo algum tipo de receita, pelo modo como ela amassava e misturava os ingredientes, o que fazia sentido dada a quantidade de guloseimas que havia disposto na hora do chá. No entanto, parte das flores estava sendo separada em um canto, empilhadas num montinho.

Jungkook inclinou o corpo para tentar ver melhor.

A criatura deslizou pela cozinha, puxando ferramentas de armazéns invisíveis, surgindo com uma leiteira com água e colocando-a para ferver. A forma como ela lidava com os alimentos era muito sistemática e organizada, como se ela já tivesse feito aquele mesmo procedimento milhares de vezes.

No entanto, havia coisas ainda mais bizarras sobre a situação. Enquanto ela triturava e amassava as flores, não era seiva que se via escorrendo das plantas — era sangue.

As mãos da criatura estavam todas manchadas de vermelho. O cheiro pútrido preencheu a sala em questão de segundos, e Jungkook precisou cobrir a boca com a mão para impedir o suco gástrico de subir. Depois de já ter destruído todas as flores, a criatura puxou um novo artigo de sua cesta, mas aquilo era... um coelho. Vivo.

O pobre animal pendia calmamente sob as mãos vermelhas da criatura. Seu pequeno narizinho se mexia incessantemente, farejando os arredores e muito provavelmente percebendo que algo estava errado, mas ele não podia fazer nada sobre sua própria situação.

Sorrindo, a criatura tateou na bancada oposta em busca de alguma coisa, e quando suas mãos encontraram somente ar, ela virou seus olhos para a bancada.

Ela sabia o lugar exato em que botava seus pertences, seu sistema de organização era impecável, aperfeiçoado por anos a fio. A criatura encarou o espaço vazio na bancada, tilintando as unhas afiadas no mármore frio. Jungkook encarou as próprias mãos — o martelo...

A criatura deu um longo suspiro, deixando que o coelho aterrisasse no chão.

— Jungkookiee... É você quem está aí?

Jungkook sentiu calafrios. Engolindo em seco, ele se apertou mais um pouco em seu esconderijo. O coelho rodopiou em volta de si mesmo por alguns segundos, feliz de finalmente estar liberto. Mas sua alegria durou pouco quando a criatura lhe deu um olhar significativo, e a criatura começou a saltar pelo lugar.

— Vamos, querido, por que você está se escondendo de mim? Você não estava com... fome? — Ela riu.

O coelhinho fez seu percurso até uma poltrona branca, dando a volta calmamente e depois enfiando seu fucinho no espaço entre ela e o chão. Depois disso, ele deu uma volta por uma estante de livros, arrancando um por um com seus dentinhos. O que ele está fazendo?

A criatura também começou a se mover pela sala, com uma expressão muito firme e tranquila, mas o pequeno repuxar de seus lábios a entregava — ela planejava alguma coisa.

— Você tem péssimos modos, Jungkook! Não é assim que se trata uma anfitriã... Oh, estou tão ofendida... — A criatura soltou um riso de escárnio. — Vamos, criança... você não pode se esconder para sempre.

Jungkook agarrava o martelo com força, sentiu os nós dos dedos ficando brancos e o coração disparado como se fosse sair da boca. Ele tentava pensar em algum plano, sua cabeça estava trabalhando como doida, mas as opcões se restringiam a apenas uma coisa: ele teria que enfrentar a criatura.

No entanto, ele precisava conseguir alguma vantagem, pois ele já estava muito prejudicado ali— na casa dela, sem poderes, sem saídas e fisicamente debilitado.
Eu preciso pelo menos cansá-la um pouco, deixá-la irritada. Dessa forma, ela não vai pensar com tanta clareza, e eu terei minha chance. Segure mais um pouco Jungkook, não deixe que ela te veja ainda.

A situação virou uma espécie de esconde-esconde macabro. De um lado, o pequeno coelhinho vasculhando cada um dos móveis e dos espaços terrestres, deixando marcas das patinhas ensanguentadas por todo o chão. Do outro, a criatura ronronava mais uma de suas canções enquanto deslizava pelo salão.

Jungkook não podia ficar ali por muito mais tempo, a voz da criatura crescia cada vez mais em seus ouvidos, e seu esconderijo era um ponto sem saída — se ela o achasse, era fim de jogo. Mas... para onde ir?

— Eu estou começando a perder a paciência... Você não vai querer me deixar irritada, vai? Saia logo, antes que eu te encontre... — Ela cantarolou.

A agitação no coração de Jungkook era cada vez maior, ele já não aguentava mais ficar ali parado. Com cuidado, ele firmou um dos pés sobre o piso, colocando o martelo entre os dentes, enquanto começava a engatinhar para fora do esconderijo.

Os detritos e resto de poeira em sua roupa haviam deixado marcas muito distintas nas parede creme, mas sua preocupação estava mesmo nas pequenas marquinhas que estava deixando no chão com suas mãos e pés — era apenas uma questão de tempo até que a Criatura o rastreasse.

A criatura mantinha um olhar atento, vigilante, sobre todos os cantos da sala que sua visão alcançasse, e Jungkook teve apenas uma fração de segundos para se locomover até que a criatura virasse os olhos em sua direção.

Ele havia conseguido rastejar até o que parecia ser a entrada do cômodo, no extremo oposto de onde havia emergido pelo alçapão. Ainda calculando suas opções, ele ficou contra as costas de um sofá— também branco.

Não demorou muito até o coelho farejasse seu esconderijo antigo. Na realidade, ele emitiu uma espécie de guincho alarmante quando o fez, e Jungkook mal respirou quando a criatura atravessou a sala em questão de segundos.

— Ora, ora... O que temos aqui?

A criatura se abaixou e passou dois dedos pela mancha no papel de parede, observando pequenos flocos de sujeira ali e espremendo-os entre o indicador e o dedão.

Ela deu um sorriso ladino, deixando que a ponta afiada de seus caninos tilintasse sob a luz artificial do cômodo — Ela tinha total vantagem em seu pequeno jogo, mas ver o esforço do garoto para fugir lhe era estranhamente atrativo e só deixava as coisas mais divertidas; ela saborearia cada um daqueles segundos.

— Criança tola, você não poderá me evitar para sempre. Você é uma espécime única, divina, deliciosa... Ah, Jungkook, você ficará absolutamente explendido em minha coleção de estátuas. — A criatura gemeu. — Eu gosto de brincar, mas essa espera toda está me tirando a paciência, acabemos logo com isso, sim?

A sua risada ecoou até os ouvidos do garoto. Jungkook só sabia tremer. Gotas grossas de suor podiam ser claramente vistas pingando de seu rosto, seu corpo estava nojento, para dizer o mínimo, e ele não parava de deixar as malditas marcas de sujeira em todo lugar que tocava.

Ele já precisava mudar de lugar de novo. Ouvindo as pegadas do coelho se aproximando, ele iria aproveitar a próxima brecha para se esgueirar até a cozinha de novo, quando seu pé esbarrou em um vaso de flores, derrubando-o.

O coração de Jungkook parou. A criatura virou a cabeça na mesma hora, soltando uma riso aberto.

— Te peguei.

Não houve tempo para raciocínio quando, em segundos, Jungkook estava sendo erguido pelo pescoço. As unhas afiadas da criatura já lhe arrancavam sangue da carne, ela tinha um bafo azedo e fétido como nada que ele já pudesse ser visto. Seus olhos brilhavam, mas estavam totalmente negros, saliva escorria nos cantos de seus lados enquanto ela passava a língua pelos dentes afiados.

O martelo havia caído no chão no processo, ele não tinha mais armas. Jungkook fincou as unhas contra a pela fina da mão da criatura, mas ela mal se mexeu. Rindo, ela esmagou Jungkook contra a parede, derrubando alguns quadros no processo.

— Você realmente achou que tinha alguma chance? O seu tempo acabou. Você é meu agora. — Suas mãos apertaram o pescoço de Jungkook com mais afinco, cortando seu fluxo de oxigênio.

— V-vai...Se...F-fuder...

Ele se debateu, chutou, tentou até mesmo morder, mas seu corpo parecia ceder um pouco mais a cada segundo. A criatura se divertia no processo, observando o humano em seus últimos momentos de vida entrando em pânico como um inseto numa armadilha —  a caça sempre foi a melhor parte do processo.

Perdendo sua consciência, Jungkook tentou buscar um pouco de apoio na parede que o cercava. Suas mãos viajaram enquanto ele tentava encontrar alguma coisa — qualquer coisa— que pudesse servir de arma naquele momento, até que sua mão trombou em algo duro. Um prego!

Jungkook tentou puxar, mas ele ainda estava muito aderido à parede. Seus olhos começaram a virar para trás, sua boca ficando arroxeada e apenas um suspiro saindo de seu interior. A criatura ria e apertava, e talvez, se ela não estivesse tão distraída se deleitando nas expressões de Jungkook, ela teria visto quando ele finalmente conseguiu desprender o prego da parede e o fincou em seu olho esquerdo.

A criatura gritou, largando Jungkook na mesma hora. Ele não perdeu tempo, correndo o mais longe possível.

— SEU ESTÚPIDO! OLHE O QUE VOCÊ FEZ!!! — A criatura rugiu, tapando o olho angrento com uma das mãos enquanto se punha a correr atrás de sua presa.

Ela era extremamente rápida, mesmo ferida, e suas habilidades iam muito além da capacidade humana de Jungkook. Mas ele era mais esperto, mais observador, e ele sabia tirar proveito disso. Ele não tinha raciocinado totalmente o que fazer quando vinhas se enrolaram em seus pés e o tentaram puxar pra baixo.

Jungkook se agarrou numa bancada, e esse tempo foi suficiente para que a criatura o alcançasse. Seu olhar foi desviado para o que estava ao lado do balcão — o fogão— onde a água que a Criatura havia colocado borbulhava em todo fervor.

Ele não pensou duas vezes. Com apenas uma mão, ele esticou os dedos até a chaleira, e no momento em que sentiu o cheiro decomposto da criatura perto de si, ele virou a água fervente sobre ela.

Feridas, as vinhas correram de volta para sua dona.

— AAAAAAAAARRRGH!

A criatura cobriu o rosto com as mãos, mas era visível que sua pele já estava derretendo. Suas respirações eram descompassadas e irregulares, ela estava em dor extrema. Através da carne viva, ela olhou para Jungkook.

— Eu. Vou. Te. Matar.

Ela se impulsionou com tudo na direção de Jungkook —  garras à mostra. Ele desviou para o lado, fazendo com que a criatura colidisse contra uma prateleira de livros. No processo, Jungkook mal teve tempo de processar a informação quando as vinhas maciças começavam a se arrastar como cobras em sua direção.

A criatura deu um berro gutural, selvagem, e partiu para cima dele de novo.

Jungkook rolou por baixo do balcão, empurrando uma cadeira com os pés na direção da Criatura. Felizmente, ela caiu bem em cima de algumas vinhas que se desprendiam de suas costas, fazendo com que ela perdesse o equilíbrio por alguns segundos.

— SEU DESGRAÇADO, EU VOU RASGAR SUA PELE EM PEDACINHOS!!

Jungkook aproveitou o pequeno tempo de vantagem para puxar uma faca da cozinha. Uma arma branca e sem nenhum atrativo, mas teria que servir. Quando ele se virou, a criatura já havia se recuperado e estava a centímetros dele.

Ele não piscou. Suas mãos se moveram por vontade própria. A lâmina enterrou-se no meio do peito da Criatura com um único golpe limpo e preciso.

A criatura deu um resmungo confuso, abaixando os olhos até o lugar em que Jungkook empunhava a faca. Sangue, mas de uma cor muito escura e gosmenta, pingou nas mãos do garoto. Ele não se deixou intimidar: botando todo seu peso nos pés, ele empurrou a criatura com força até a parede, fazendo com que a lâmina atravessasse seu abdômen.

A criatura cuspiu sangue, se encurvando em si mesma, e Jungkook deu o golpe final, girando a faca e a puxando de volta para si.

A criatura virara uma poça de sangue empapado. Sua pele queimada agora ficara num tom cinzento distinto, perdendo a vida rapidamente, e sua boca se tornara um espaço oco sem dentes. Dando seu ultimo suspiro, seu corpo sem vida caiu no chão.

O coração de Jungkook parecia prestes a sair pela boca — suas mãos tremiam. Ele engoliu em seco, observando a cena.

Em um canto distante, o coelho apareceu saltitante, parando por um momento para encarar Jungkook. A pelagem do animal estava manchada, num tom de marrom acobreado e com pontas secas de sangue coagulado, era horrível.
Jungkook sentiu pena dele por um momento. Um animal tão bonito assim não deveria ter sofrido daquele jeito, e além de tudo, ficado preso e manipulado nas mãos de uma coisa tão repugnante.

Em meio às paredes, uma porta surgiu.

Mas Jungkook não quis entrar, ele e o coelho continuaram trocando olhares. Com dificuldade, ele se agachou, botando a mão à frente —  embora não houvesse nada para oferecer — apenas um convite simples. No entanto, o coelho não quis se aproximar, encarando-o com curiosidade.

Por um motivo estranho, Jungkook se sentia particularmente atraído a aquele coelho. Não, talvez não atraído, conectado, como se...

Jungkook abaixou a cabeça numa reverência ao coelho, a qual ele seguiu, abaixando suas patas dianteiras no chão.
E simples assim, Jungkook se virou e passou pela porta.

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