35.Moribund
Moribund: point of death; the end of something; breathing your last; without force or vitality
——————————————————-
A porta de madeira se fechou com um estrondo.
Jungkook prendeu a respiração sem nem perceber. Ele se virou a tempo de ouvir Hoseok sussurrando seu nome, apressado, enquanto que o monge à frente já havia botado uma boa distância entre eles e não parecia nem se importar. Jungkook não ficou tão impressionado, afinal, Hoseok devia conhecer aquele lugar enorme como a palma de sua mão, o único que poderia se perder ali e não achar o caminho de volta era ele.
Cada passo seu reverberava pelo chão de mármore e pelas paredes com uma vibração esquisita que o deixava desconcertado. As paredes eram do mesmo tom claro do piso, bege, e arabescos haviam sido pintados em toda sua extensão à mão.
O teto era alto e abobadado no centro — um único raio de luz passava por um claraboia em algum lugar dali e sozinho iluminava praticamente o cômodo inteiro. Tinha cheiro de flores, ervas e incenso. Era quente, mas nem de longe tão abafado quanto o lado de fora.
Jungkook estava tenso, suas palmas suavam e, embora ele se esforçasse para manter seus passos firmes e certeiros, um compasso irritante começara a ecoar em seus ouvidos antes mesmo que ele se desse conta, fazendo-o engolir em seco pelo nervosismo que o acompanhou.
Tic. Tac. Tic. Tac.
Jungkook tomou um susto quando, ao virar o corredor, uma melodia quase fúnebre invadiu seus ouvidos com força total, fazendo-o congelar no lugar.
— Ei, está tudo bem, é só o ensaio do coro dos rapazes. É lindo, não é? — Hoseok parou com ele em frente à porta aberta de onde vinha o som.
De fato, o canto era impecável, dezenas de meninos em batas brancas e alinhadas sincronizavam suas vozes imaturas em um mesmo tom lírico gracioso. Pelo que Jungkook viu, a sala era um tipo de capela, tinha facilmente o triplo do tamanho usual e brilhava tanto que seus olhos quase ardiam, mas foi tudo que ele conseguiu computar antes de Hoseok tornar a puxá-lo pelo braço.
Apertando o passo, ele passou a caminhar lado a lado com o ruivo, consciente demais de seus joelhos vacilantes, de um fio único e contínuo de suor que começou na base de sua cabeça e desceu até sua lombar causando um calafrio, do jeito que Hoseok transbordava confiança e poder a seu lado.
— Hoseok-ah, esse homem, o que aconteceu com ele, por que ele não fala? — Jungkook falou baixinho, com medo do monge ouvir. Ele não tinha certeza do que estava acontecendo, mas se os outros monges fossem parecidos com ele, o garoto tinha certeza de que sua estadia ali não seria nada agradável.
— Huh? Ah, isso... — Hoseok deu uma risadinha surpresa, como se já esperasse a estranheza de Jungkook. — Não aconteceu nada com ele, Kookie, ele fez um voto de silêncio. Ele é meio rabugento por natureza, mas é uma boa pessoa no fundo. O reverendo já tinha feito seu voto muito antes de eu chegar aqui, sabe, os garotos mais velhos costumavam dizer que ele está nessa montanha desde que a pedra se ergueu do chão, que a Santa de Montserrat em pessoa o abençoou com imortalidade para que ele pudesse proteger os tesouros escondidos na montanha e que, para impedir que ele revelasse seus segredos, o preço foi ter sua língua cortada. Mas eu acho que não passam de histórias de terror de crianças entediadas, na verdade, sempre desconfiei que ele só fingia não falar pra não ter que responder nossas perguntas. — Hoseok fez um biquinho.
Se fosse verdade, Jungkook só rezava para que não fosse alvo da mesma "gentileza" da santa da montanha. De um jeito ou de outro, ele estava contando que a sorte e as graças da montanha estivessem ao seu favor pois, de outra forma, Jungkook não tinha certeza se sairia dali inteiro.
Um longo silêncio se seguiu após isso, e Jungkook só voltou a falar quando viu uma estátua de quase 2 metros de uma criatura antropomórfica pairando assustadoramente na parede.
— Você sabe o que eles vão fazer comigo? — ele engoliu em seco.
— Eu até tenho algumas ideias, mas de nada adianta eu ficar aqui te preocupando antes da hora. Mantenha a calma e tudo dará certo. Eu imagino que sua primeira impressão possa não estar sendo das melhores, mas eles são boas pessoas. Eu, de fato, fui embora da Espanha depois de completar minha educação, mas eu tive sim uma infância maravilhosa nesse lugar, minhas melhores lembranças são daqui. — Hoseok suspirou. — Além disso, eu não te traria aqui se não confiasse que eles podem te ajudar. Tenha um pouco de fé.
O monge parou em frente a uma grande porta dourada no final do corredor. Ele deu uma boa olhada nos dois antes de virar-se e abrir a porta, estendendo a mão para que eles entrassem.
O estalo começou a soar com mais força na cabeça de Jungkook.
Tic. Tac. Tic. Tac. Tic. Tac.
— Que prazer finalmente revê-lo, meu filho. — Uma voz rouca soou lá de dentro.
Jungkook ergueu os olhos até o monge que pairava dentro da sala. Ele tinha a mesma cabeça raspada, devia estar em seus cinquenta anos, e sua bata era de um vermelho vibrante, bordado à mão com detalhes de seda branca, devia ser a autoridade mais alta na hierarquia do monastério. Hoseok se curvou, e dessa vez Jungkook não hesitou em repetir o gesto.
— Digo o mesmo, mestre. Namaskar. — Hoseok abriu um sorriso contido, juntando as mãos abaixo de seu queixo.
Tinha algo na voz de Hoseok que Jungkook nunca tinha ouvido antes, estava carregada de respeito, mas era mais que isso, uma apreciação quase idolátrica — aquele homem devia significar muito para o curandeiro.
— "Mestre"? Ah, vejo que continua polito como sempre, Wuhai. — O homem deu um passo à frente, dando um sorriso repleto de dentes brancos. As orelhas de Hoseok oscilaram em reconhecimento ao seu nome judaico, ele não era chamado assim desde sua adolescência. — Creio que este seja o jovem Jungkook?
Jungkook assentiu, mordendo o lábio inferior, subitamente envergonhado com a familiaridade com que seu nome saía da boca do estranho.
— É um prazer conhecê-lo, senhor. — Jungkook abaixou a cabeça em respeito, mas também havia uma pressa em cortar o contato visual com os olhos esverdeados do monge, que pareciam escaneá-lo desde que ele havia entrado na sala.
— Não tenha vergonha, criança, deixe-me vê-lo melhor. — Jungkook se esforçou para manter o queixo erguido. O homem tomou uma das mãos de Jungkook entre as suas, suspirando contento quando Jungkook finalmente retribuiu seus olhares.
A mão dele era áspera e quente, e Jungkook se perguntou que tipo de atividades ele desempenhava no monastério para estarem daquele jeito, mas ele supôs que aquelas perguntas idiotas deviam ser apenas o fruto de sua ignorância.
— Vejo que fez um bom trabalho com ele, o garoto parece forte. — Ele sorriu brevemente, e Hoseok deu um único aceno de cabeça em reconhecimento ao elogio.
— Eu fiz meu melhor, mestre.
— Como esperado de você. E então, o que estão achando daqui? Montserrat é de seu agrado? — O homem virou as costas em direção a um altar enfeitado.
Haviam cestas de frutas, colares de flores e outros objetos simbólicos colocados gentilmente abaixo da estátua da figura de Buda, feita de ouro polido. Ao lado, o monge tirou da parede um suporte de vela prateado de uma cômoda de madeira.
— Sim, com certeza. Tudo tem sido perfeito. — Hoseok assentiu.
— A montanha é realmente encantadora. — Jungkook murmurou.
— Ela é, não é? Bem, agora se vocês quiserem me acompanhar — tenho certeza que vocês não têm tempo para perder com homens velhos e sem graça. — O monge riu.
Jungkook achou melhor desse jeito — ir direto ao ponto — ele não achava que conseguiria manter uma conversa por mais tempo, de qualquer modo.
Jungkook seguiu o estranho por outra porta suspeita, com Hoseok logo atrás. O ruivo pareceu sibilar alguma coisa para si mesmo, mas quando Jungkook virou para perguntar, ele apenas negou e falou para o garoto continuar a andar.
Atrás da porta era apenas a mais pura escuridão, e uma corrente de ar frio gelou todos seus ossos. Jungkook tentou suprimir o tique de alerta em seus ouvidos de novo, e só o som de chamas se acendendo conseguiu acalmar um pouco seus pensamentos.
De uma em uma, dezenas de velas ao redor do quarto foram se acendendo, soltando os mesmos aromas florais que ele havia sentido antes. Jungkook ficou boquiaberto, com certeza aquele lugar era usado apenas em ocasiões muito especiais — tinha cheiro de algo velho, mas chique, como as páginas amareladas de um livro de capa dura.
Pétalas de flores enfeitavam o chão em uma chuva multicolor, como se ele estivesse pisando em balas. Ao fundo, uma única janela quadrada abriu-se, revelando uma banheira dourada cheia no centro do lugar.
Por que raios isso estaria aqui?
A mão calosa do reverendo no ombro de Jungkook guiou-o gentilmente até um tapete macio, fazendo para que ele se sentasse ali.
— Jungkook, você sabe por que está aqui? — Os olhos do monge eram firmes, quase frios, mas havia algum calor em sua voz, ele queria que Jungkook confiasse nele.
— P-Pra descobrir o que tem... dentro de mim. — Jungkook falou quase como uma pergunta, de repente incerto de sua resposta. O homem assentiu, curvando os lábios num sorriso.
— É isso, Jungkook. E sabe quem vai fazer isso? — Jungkook negou. — Você vai.
— Espera, o quê? — Ele franziu as sobrancelhas.
— Todas as respostas de que você precisa estão aí dentro, criança, sempre estiveram, e agora cabe a você libertá-las. — O reverendo disse calmamente, como se as reações de Jungkook já tivessem sido previstas e incluídas em seu discurso.
Jungkook buscou o olhar de Hoseok, balançando a cabeça,mas o ruivo apenas engoliu em seco e pediu que ele continuasse a ouví-lo.
— M-Mas eu não sei fazer isso, eu não sei... magia.
— E não precisa. Eu vou te guiar até lá. A parte mais difícil é entrar, e depois que você achar suas respostas, eu te guiarei de volta para o plano. Simples.
Jungkook agradeceu por estar ajoelhado, porque naquele momento suas pernas pareciam gelatina. Ele não sabia o que dizer.
— E-Esse lugar é minha cabeça? Eu não acho que entendo o que você diz, isso é complicado demais...
— Veja bem, o seu corpo, assim como os outros, é uma grande rede de canais e campos interligados— mas ora algumas passagens abrem-se, ora elas se fecham. Nós vamos abrir o canal que conecta sua carne à sua alma, sua essência: é lá que os problemas que atormentam seu corpo e mente estarão. Eu sei que você veio aqui esperando um raio-x ou uma leitura de aura, mas o problema é muito mais profundo do que eu, Hoseok, ou qualquer outra pessoa possa resolver sozinha. Esse lugar, Jungkook, só você tem acesso.
— Calma, você está me dizendo que esse tempo todo eu mesmo poderia ter resolvido? Por que ninguém me falou? Por que você me trouxe até aqui? Pra nada. — Jungkook sentiu a raiva encher suas bochechas. Qual era a daquele cara? Era algum tipo de armadilha?
O monge ajeitou a postura no tapete, mas ainda sim mantendo total calma e compostura.
— Não é tão fácil assim, criança. Como eu disse, os canais não ficam sempre abertos ao seu bem querer e, mesmo se estivessem, você não teria a competência e nem o auxílio adequado para acessá-los. As coisas que você passou em sua vida, todos os eventos fatídicos que levaram ao despertar do que está dentro de você, o peso que você tem carregado, tudo isso contribuiu para a perturbação dos seus sistemas — e não era para menos. Mas graças a isso, a passagem está vulnerável, e essa é sua melhor chance de entrar.
Jungkook olhou para as próprias mãos, tremendo. Que porra é essa...
— O que exatamente vai acontecer lá dentro?
— Você percorrerá a essência de todo o seu ser. Não posso garantir que verá apenas coisas das quais vai gostar, mas todas são muito reais e fazem parte de você. Quando estiver lá dentro, o caminho naturalmente se abrirá em reconhecimento a ti, e você vai saber quando achar o que procura.
— E qual a pior coisa que pode acontecer? — Jungkook se arrependeu no momento que as palavras saíram de sua boca, ele pecebeu que tinha medo da resposta. E ele estava certo, pois após dar um longo e culposo olhar, apertando os olhos, o reverendo respondeu.
— Morte. Você pode ser consumido ou acabar ficando preso dentro do seu próprio subconsciente para sempre.
Os olhos de Jungkook travaram no lugar.
Oh...
— Você acha que pode fazer isso, Jungkookie? — Hoseok olhou para ele. Não havia julgamento em seus olhos: se Jungkook virasse e dissesse que queria ir embora, ele sabia que Hoseok concordaria no mesmo momento. Será que ele sabia disso desde o começo? Não, seu semblante tinha mudado muito depois de entrarem na sala, ele também foi pego de surpresa.
O reverendo tinha as mãos abertas em frente ao peito, esperando.
— A decisão é toda sua, filho. Esse é o pior cenário possível, não significa que realmente algo de ruim vá acontecer. Escolha com sinceridade em seu coração e tudo dará certo.
Tic. Tac. Tic. Tac. Tic. Tac. Tic. Tac. Tic. Tac
Jungkook voltou a pensar de novo em todas as loucuras que estavam aterrorizando-o nos últimos dias. Todo seu medo e covardia se revirando como uma bola gorda e pesada em seu estômago por dias, enchendo e ficando cada vez mais insuportável, testando seus limites até que ele não aguentasse mais e caísse.
Bile subiu até a boca de Jungkook, deixando um gosto ácido em sua língua. Ele lembrou dos rostos desfigurados que viu na televisão, as mães chorando do lado dos corpos inertes de seus filhos, o sangue espirrado nos muros da periferia de Seul, o jeito que as mãos da jornalista tremiam tanto que o microfone quase não se sustentava.
Jungkook fechou as mãos em punhos, ele não podia deixar que todo o esforço que fizeram para levá-lo ali fosse jogado no lixo. Ele não podia deixar mais pessoas morrerem por sua causa e não fazer nada por isso, ele iria lutar.
— Eu vou entrar.
**
Jungkook foi levado até a banheira cheia no meio do cômodo. Ele estava despido, seu corpo havia sido exaustivamente pintado e preenchido com formas esquisitas — omonge havia tirado de algum lugar um recipiente dourado com um pó acinzentado dentro e um pincel macio de pelo animal para passar em seu corpo.
Hoseok não quis lhe dizer o que era aquele pó.
O primeiro toque de seu pé na água morna causou um calafrio quase profético. Haviam pétalas brancas flutuando na água, o fundo da banheira era escuro, e em meio à meia luz das velas, Jungkook não conseguiu bloquear o pensamento de que aquilo tudo parecia seu velório.
O reverendo se agachou ao lado da banheira, levando uma de suas mãos até o topo da cabeça de Jungkook. Havia uma leve pressão ali, o suficiente para incomodá-lo, mas ele sabia que a pior parte não havia chegado.
— Você vai ficar bem.
Hoseok murmurou em um soluço, soando muito mais preocupado do que deveria naquele momento, e então o homem empurrou sua cabeça para dentro da água com tudo.
Ele não achou que seria tão difícil. Jungkook se debatia sem parar, por mais que ele mandasse seu corpo relaxar e ficar parado, seus membros se recusavam a obedecer.
Ele sentia a agonia crescente de ter água preenchendo seus pulmões, o grito desesperado de seu corpo mandando que ele respirasse e voltasse a enviar o maldito oxigênio para dentro de suas células. Seu nariz ardia, havia pétalas de rosa enroscadas por todo seu cabelo ensopado e ele já havia engolido e cuspido tanta água que sua garganta já começava a se fechar em um ato desesperado de autopreservação.
TIC. TAC. TIC. TAC.
A água voava para todos os lugares, suas mãos enrugadas estavam apertadas contra a borda da banheira enquanto ele tentava emergir. Seu corpo estava gelado, tremendo, sua consciência ficava mais e mais prejudicada à medida em que o excesso de gás carbônico embaçava seus sentidos, e a mão do reverendo ficava cada vez mais pesada.
Hoseok se moveu para ajudar, empurrando seu tronco com as duas mãos, praticamente chorando para que o garoto parasse. Mas ele não podia, era mais forte do que sua vontade, seus instintos mais primitivos enlaçaram e dominaram quaisquer outros pensamentos que ele pudesse ter, ele não pararia.
Em dado momento, Jungkook jurou que o homem que segurava sua cabeça não era mais o monge, e sim uma coisa monstruosa cheia de espinhos nas mãos espetando sua cabeça e mostrando uma língua preta e bifurcada, zombando dele em sua agonia. Ele gritava, usando todo o resto de força que tinha para agarrar o braço do reverendo e arranhá-lo, chegando a tirar sangue, mas o homem não se movia um centímetro, e seu aperto só ficava maior a cada segundo.
Jungkook não entedia por que ninguém o ajudava, talvez ele se lembrasse vagamente da explicação do reverendo do que iria acontecer, de como ele teria que ser afogado na água sagrada até que seu coração parasse, mas naquele momento ele só podia emitir um grito do fundo de seu peito para lhe soltarem e deixá-lo sair dali.
TIC. TAC. TIC. TAC. TIC. TAC. TIC. TAC. TIC.
Jungkook não conseguia mais sentir seus pernas. Ele arfou. Jungkook não conseguia sentir seus braços. Eles caíram inertes sobre a água. Jungkook não conseguia mais enxergar. Seus olhos viraram para trás.
A mão insistente em seu couro cabeludo revogou seu aperto quando o último tique em seus ouvidos soou, e seu corpo inconsciente foi enviado para o fundo da banheira escura.
Bạn đang đọc truyện trên: AzTruyen.Top