༺ ELES ESTÃO AQUI ༻
☈ Este conto foi escrito para um trabalho avaliativo da disciplina de Produção em Áudio, do curso de Jornalismo da Universidade Federal de Goiás, e posteriormente encenado em forma de áudio ficcionalizado.
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Apago o pito no cinzeiro do carro, a ponta se desmancha em cinzas que se misturam às outras. O cinzeiro está quase cheio. É o quinto cigarro da viagem — sem contar aqueles fumados pela mulher ao meu lado.
Jogo a bituca pela janela. Há água dos dois lados da estrada. Dirijo meu monza sedan para o litoral sul de São Paulo. A lataria bege brilha contra a radiação solar. Meu coração não se contém no peito ao pensar de novo no porquê viajo. Mas devo fazer isso. Devo procurá-la em primeiro lugar por ter sido um dos motivos de tê-la feito sumir.
— A gente não tá na viatura, Júlio. — A mulher ao meu lado me lembra. Sua voz é tranquila e sagaz. Seu aviso, um golpe que me liberta dos meus pensamentos. — As placas ainda se aplicam aqui, tá?
Olho no velocímetro. Estou ultrapassando os cento e sessenta. Diminuo para cento e vinte, ou acabaria matando nós dois numa curva. Morrer não me fará chegar até ela.
— Quantas horas? — pergunto. Minhas mãos se prendem ao volante como ganchos. O ar da rodovia refresca meu corpo, mas minha mente insiste em pensar no problema que criei, na situação que induzi, no laço que quebrei...
— Dez pras seis — A mulher diz num tom tedioso. Ela regula o volume do rádio. Os Titãs explodem tudo entre o impulso cortante do carro sobre o asfalto e o motor que resmunga como um dragão. — Vamos chegar lá perto de anoitecer.
— As lanternas têm bateria? — questiono.
Elena abre o porta-luvas, verifica os objetos.
— Têm. Carreguei antes de vir. Acha que não ando preparada, homem?
Desvio o olhar para ela. Blusa listrada por baixo do paletó preto. Calça escura boca de sino, do tipo que seria usada para uma visita importante. Os cabelos cor de petróleo encostam nos ombros. Sua pele castanho-avermelhada reluz com o sol através do vidro. Ela guarda as lanternas de novo.
— As histórias sobre aquele lugar que me preocupam — digo, levando o olhar para a pista novamente. — Admite: você não quer ficar lá no escuro.
Elena sorri labialmente e revê os papéis sobre o colo. Documentos criminais.
— Histórias às vezes só são histórias, Júlio — ela fala. — Mas os relatos de lá assustam de verdade.
Em suas mãos, estão as pesquisas a respeito da família Guimarães. A comunidade mais próxima da área rural onde estamos os detesta. Sua fazenda é alvo de lendas e suspeitas. "Ficaram ricos do nada", "esquisitos", "recatados". Muita gente que desapareceu na região foi vista por lá pela última vez. E é para lá que, segundo as pistas coletadas pela minha auxiliar no banco à direita, minha ex-esposa foi dar um passeio sem volta.
Por meses procuro uma evidência do paradeiro dela, e agora que tenho uma, mesmo que imprecisa, devo me agarrar a ela como alguém se agarra a um poste sob o jugo de um vendaval.
Elena nota o suor escorrer pela minha testa e para de mexer nas folhas. Ela suspira.
— Nós vamos achar ela, tá bom? — Seus olhos escuros me observam. — Pode demorar, mas a gente vai.
As palavras me corroem, porém a esperança por trás delas as suaviza. Elena é minha melhor amiga. Mesma formação, mesmo ofício, mesma delegacia. Quando tudo aconteceu, estava desamparado para investigar a fundo — o remorso corrompe minhas entranhas desde que Ela se foi. Elena cuidou do caso para mim enquanto eu agia como supervisor. Só estou aqui por causa dela. "Vocês eram um casal tão lindo... Uma pena tudo ter dado errado" ela me disse uma vez. Depois da briga, da traição, do gosto da aliança atingindo meus lábios, jogada por Flávia em um instante de puro ódio. E então o som da porta se batendo... Ela indo embora, sumindo do mapa.
Fui eu que estraguei tudo.
E agora ninguém sabia onde ela estava.
Que você esteja bem.
— Aumenta o rádio — digo, e Elena o faz.
Me distraio com a paisagem borrada do lado de fora. Verde se mistura ao marrom. Culpa se dissolve nas letras de U2. Sigo em frente, as rodas devorando a rodovia.
Chego no fim da linha meia hora depois. O sol se pendura no horizonte agora. Desço do carro com tudo preparado para fazer uma visita à residência assombrada. Elena me lembra de fechar os vidros. Seguimos.
Nossas botas espancam o chão pela mata que nos cerca. Os ruídos dos animais se embaraçam com o sibilo do vento. Andamos até a entrada principal; a casa enorme se esconde entre as árvores velhas. O crepúsculo cai sobre as telhas, porém não alcança a varanda, onde as sombras dormem serenas. Ninguém passa pelas janelas...
Tentamos abrir o portão. Ele não se move.
Tentamos o interfone. Ele sequer toca.
— Ninguém em casa — percebe Elena, com um certo humor. — Foram comprar mais sal para os espíritos?
Só que não estou no clima para piadas...
— Não vou sair daqui sem entrar — digo. — Invasão privada pode ser crime, mas raptar alguém também é.
— Acusar alguém falsamente também é, Júlio. E se não foram eles? Não dá pra saber.
Eu simplesmente suspiro. O portão é alto demais para escalar. Contornamos pela trilha à esquerda. O fedor pantanoso mergulha no meu nariz. Vejo movimentos curiosos pelos juncos e ciprestes, um sibilo entre as folhas que me põe em alerta. Há algo mais além da água choca, lodosa, ou do solo salino... Um odor podre, contaminando a atmosfera na qual as moscas já zumbem.
— O que é isso? — pergunto, pois encostada em um canto à deriva, uma vã abandonada aparece sob nossos olhos.
— Não parece um carro que fazendeiros usariam
Elena está certa. Na faixa do veículo se encontra o nome de uma companhia não muito famosa. Abaixo dela, há a identificação de que seus donos eram caça-fantasmas.
— Os boatos chegam para todos — Elena diz. — Esses caras... Eles acreditam. Mesmo.
— E se vieram pra cá — respondo, de sobrancelhas unidas —, por que deixaram a vã assim?
— Ela pode tá quebrada.
— Não. Olha o mato tomando conta. Pelo tempo que isso tá aqui, já era pra terem consertado.
— Quer abrir pra ver?
Aceno com a cabeça que sim. A porta de correr se abre sob nossas mãos. O alarme não dispara — desarmado ou quebrado, penso. Dentro, encontramos apenas fitas de vídeo, revistas pornô e um rádio enferrujado o qual sequer liga. As fitas estão nomeadas, porém não se sabe em que abismo tinha ido parar o tocador. Sem muito para ser feito, voltamos à trilha.
Cadê eles? Eu me pergunto. Os donos da vã...
O caminho começa a se estreitar, as moscas cada vez mais impertinentes e barulhentas. Rãs coaxam sua cantoria irritante pela água verde. Aquela carniça de antes aumenta seu alcance. E na verdade eu sei, pelo modo como ela fede mais e mais forte, que a origem da podridão está cada vez mais perto.
O que me fazia temer, com um arrepio no estômago, o que ou quem pudesse ser a carcaça...
A resposta chega.
E ela é horrorosa.
— Puta merda... — xinga Elena, com a mão na boca.
Engulo em seco, mas a bile retorna à minha garganta. Um calafrio me morde a espinha, as pernas bambeiam. Meu sangue está paralisado, mas meu coração esgota cada fôlego do meu peito. Estou aliviado por não ser Flávia, por não ser o cadáver da mulher que traí estraçalhado e roído pelos vermes. Mas não me sinto menos apavorado com o que vejo.
Em vez da minha esposa morta, há em nossa frente uma amostra da mente doentia que provavelmente habita nessas bandas. É uma estrutura cujas laterais pontiagudas se pregam a dois troncos, uma roda feita de pernas de equino arrancadas e enfiadas em galhos secos. Os cascos se erguem para cima, formando a imagem da hélice de um moinho. O centro da roda está cheio de cabeças de bonecas penduradas. Sangue goteja entre as frestas.
A cena gela por dentro, mas não há como voltar. Nem é pela espiral de terror que toma meus pulmões; a mulher que eu amo — porque agora sei — sumiu aqui, e tenho medo do que podem ter feito a ela. Tenho medo de que seu desaparecimento tenha se tornado um assassinato.
Elena está petrificada. Ela ainda não sacou seu revólver, mas eu sei que, de agora em diante, vamos precisar dele...
— Dá pra passar por baixo, se você ignorar o cheiro — observa Elena, agachando-se. Há um buraco embaixo da roda, por onde a trilha continua. É a única opção, por mais terrível que a cena seja.
— Pega seu revólver — digo ao vencer as náuseas. — Tem um maníaco por perto.
— Você acha que isso envolve os Guimarães? — Elena tira seu calibre 38 do coldre e verifica de novo se a munição é suficiente para deitar um possível serial killer.
— Não sei — pego a minha nove milímetros. Deixo-a destravada. — Pode ser muita coisa. Mas que tem um matador por aí, tem. E o canalha tem criatividade.
O som da arma destravada de Elena ecoa.
— Não vamos deixar ele escolher a forma como vai despedaçar a gente, então.
Passamos pela abertura, as moscas zunem e sobrevoam nossas cabeças. As golfadas da brisa fazem as árvores sibilar. É provável que minha camisa branca esteja manchada de sangue — vejo uma gota pingar no ombro de Elena e pintar uma mancha de vermelho na sua blusa. Mas meu pulso bate tão rápido a ponto de já não me importar com o horror. A incerteza crava seus dentes em mim. Apenas perguntas martelam na cabeça: onde Flávia foi se meter? O que queria com os Guimarães? Qual o nível de envolvimento dela com aquilo?
Não se passam nem dois minutos, e já estamos de frente para outra construção. Fazendas maiores costumam ter uma casa de hóspedes, um local para parentes distantes ficarem quando a família se reúne. Pelas pistas de Elena, a árvore dos Guimarães era imensa, o que explicava aquele casebre repleto de heras diante de nós.
— Também parece abandonado — comento. — Não. Tenho certeza que tá.
— Deve ser atrás disso que os caça-fantasmas estavam atrás. — Elena vai até a varanda, cautelosa. — É o cenário perfeito para as almas que vagam por aí.
Ignoro a fala e vasculho o balanço perto da porta. Reconheço a bolsa sobre ela; é de Flávia.
— Ela teve aqui — anuncio, a incredulidade e a fé vivas em minha voz. — Coloca as luvas, Elena, vamos coletar.
Com as mãos cobertas, investigamos o objeto de couro sintético. Dentro dele achamos a passagem de ônibus usada por Flávia para ir até a fazenda — evidência a qual também tinha nos levado até ali. Mas não há mais nada. Nada que ajude a entender os motivos da minha ex-esposa, onde quer que ela pudesse estar. Uma grana se esconde nos fundos. Não tinham roubado... Agora a única coisa a qual consigo pensar é nos meus dedos trêmulos e no destino incerto da mulher com quem um dia me casei.
Colocando a bolsa no plástico de evidências, entrego-a à Elena e tento abrir a porta do casebre. Está emperrada, os trincos velhos demais. Então a raiva por tudo o que aconteceu se apodera de minhas veias, e chuto a porta num rompante. Ela se escancara num som nada pretensioso.
Entramos com cautela. Armas a postos, olhos em alerta. Nada no primeiro corredor. A madeira range sob nossos pés. O vento faz as vidraças manchadas baterem e estalarem. Por causa do anoitecer, não há luz. O disjuntor está sem um fusível, a casa toda um breu. Acendemos nossas lanternas para nos livrarmos de um encontro nada legal com o que estiver nos observando pelas sombras.
Revistamos gavetas e armários, cantos e interiores de objetos. Tudo está muito quieto — a quietude típica antes de uma pista de gelo rachar. Na cozinha, Elena destampa uma panela e baratas a recebem num enxame. Há um corvo morto no microondas. Checo a geladeira, mas seria melhor assistir a um gore em vez de olhar para a gosma das prateleiras.
— Sem janta pra gente — comenta Elena, rindo.
Reúno forças para cobrir o restante da casa, porém pista alguma surge aos meus olhos. O lugar está em ruínas; largado para os insetos fazerem seu habitat. As teias de aranha confirmam, os grilos cantores e as traças também. Sigo até a sala, onde aparentemente tudo se mantém como o resto. Exceto por uma coisa.
Uma elevação na parede, margeada por linhas brancas que pareciam frágeis.
— Tem algo aqui atrás — noto, ao me aproximar.
— Toma, corta com o canivete.
Pego a lâmina da mão de Elena e a passo pelo desenho no papel de parede. Uma abertura se revela — uma porta que nos leva a um alçapão. Tem um cadeado na alça, que logo não é mais um problema quando o elimino com uma gazua. Depois da tampa, existe uma escada. Nossa alternativa é descer; mesmo que o pavor torça meus ossos e arrepie os pelos da minha nuca.
— Quero ver onde isso vai dar... — diz Elena. Ela não parece com medo, mas sim curiosa e um tanto espantada pelo caminho de nossa investigação.
No porão, circulamos pelas paredes de pedra e percorremos um trecho d'água. A umidez enche nossas botas, o choque de temperatura aumenta o frio, nos fazendo grunhir. O silêncio, a falta de gente... Essas coisas deviam me animar, mas só me fazem perder a confiança na arma cujos meus dedos apertam. Penso em como seria mais apavorante se estivesse só, sem Elena para me ajudar a afundar nesta casa bolorenta. Acontece que é essa a questão.
Nós estamos mesmo sozinhos?
O caminho nos leva até um feixe mínimo de luz alaranjada. É uma cela, reconheço pelas grades. Mofo e poeira atingem minha respiração. Sorte a minha não ter acendido um cigarro. O momento se torna ainda mais sombrio quando penso no porquê existiria uma prisão debaixo de uma casa. Elena me olha, perplexa. Os Guimarães sequestravam gente? Torturavam? Matavam?
— Tem uma pessoa lá dentro — nota a minha auxiliar. — Deitada na cama.
Olho para os contornos da figura acanhada. Meu corpo congela. Não é possível! Aquela blusa cinza! Aquela calça jeans! Aqueles sapatos pretos! Euforia e espanto me perfuram, todo o organismo sacode feito geleia.
— É ela! — eu falo, com um impacto que embarga a minha voz. — É ela!
Com as roupas que me deixou há 3 meses...
— Tem um cadeado também, merda! — chuto a porta. — Por que tem que ter um cadeado?
Veloz, pego outra gazua e destranco o maldito, tirando a corrente tintilante, abrindo a cela. Elena não consegue me acompanhar. Estou dentro do recinto, estou acordando Flávia, estou vendo os olhos dela. Meu Deus, os olhos dela! Eles se abrem e me enxergo no castanho deles.
— Flávia? — A alegria por encontrá-la viva e real me atrapalha nas palavras. Há muito a ser dito, muito a ser perguntado.
Flávia me olha imersa em confusão. Seu rosto está úmido, suado.
— Júlio? — como se fosse um erro eu estar ali. Uma peça estranha no quebra-cabeça de quem quer que controlasse toda a maluquice ao redor.
— O que você veio fazer aqui? — disparo, um tanto sem controle. — Por que você tá presa? — A vontade de chamá-la carinhosamente me atiça os nervos, porém não posso fazer isso. Não agora...
— Não... — O tom de Flávia é vacilante. — Eu nunca vim até aqui. Eu não me lembro de ter vindo pra cá.
— Mas...
Elena me corta.
— Júlio, o rádio. — Seu queixo aponta para o eletrônico ruidoso na sala anterior.
— Aumenta o volume, já tô indo.
Levanto Flávia da cama e a recolho num abraço. Minha ex-esposa parece desnorteada, boba como se tentasse se lembrar de quem é.
Chegando próximo ao rádio, uma voz feminina ressoa. Ela parece falar com a gente, mesmo que não tenha microfones por perto. Seu tom é alarmante por trás dos chiados.
"Escutem bem: achem a saída pelo sótão. Ele dá pra fora da propriedade. Não me perguntem quem sou eu. Faço isso porque sei o que tá prestes a acontecer, e não quero que sofram como eu sofro. Não tenho tempo para explicar. Me encontrem do lado de fora".
— Reconhece? — pergunta Elena, enquanto Flávia sussurra coisas inaudíveis. A mulher não está bem...
— Não — respondo. — Confiável? Também não. E por que ela quer que a gente saia pelo sótão? Tem a porta da frente.
Elena me observa com os olhos arregalados. Noto a aflição infectar suas irises escuras.
— A não ser que alguém tenha a trancado — diz ela.
A frase me dá combustível e tento agir. Mas não me movo — alguém está atrás de Elena, uma sombra cujo olhar arde em vermelho-sangue. Antes que eu possa avisá-la, a coisa desfere um golpe tão forte nela que a desmorona. Não quero o mesmo destino, então dou um passo atrás. É inútil: a sombra se move mais uma vez, alto me acerta na nuca num ataque ardente. Caio atordoado no chão. A vertigem me assola, vejo a silhueta parada a centímetros de mim. Flávia se agacha, seu rosto deformado pelo medo. Assisto mais olhos surgirem na penumbra, todos ao mesmo tempo, todos com o mesmo som. O coração martela, a respiração vacila, o estômago frige.
— Eles estão aqui — Flávia sussurra.
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Teorias? 😆
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