Capítulo Único
Há pouco ela se viu identificando-o no necrotério; o corredor infindo, o esforço para ultrapassar o limiar daquela porta de aço e adentrar o ambiente gélido com luz branca, camas altas metálicas e tantos outros corpos inertes, sem mortalha, que aguardam alguém que os reconheça. "O recinto frio era revestido, até 1,80m, de azulejos bege, o pavimento ladrilhado cinzento, e os utensílios esmaltados, como eram usuais nos filmes policiais e sobre o nazismo que ela havia assistido e gravado em sua memória?" Não, módulos inoxidáveis, tipo gavetas superpostas forram agora as paredes; o teto é baixo. Todo o mobiliário é inoxidável, o piso em tom gelo impermeável. No espaço frio asséptico, predomina a cor verde-de-aço.
Ela sentiu que ia desmaiar antes mesmo que o policial retirasse o pano verdoso (e não branco anil tipo hospitalar) de cima do corpo defunto. Havia um número, de múltiplos algarismos, mal disposto colado em seu peito e não aquela singela etiqueta ocre com a parca ficha antropométrica pendurada no dedão do pé direito.
De repente, ela se dá conta que se ausentou; sobressaltada, verifica com urgência quantos minutos se passaram. Não, não perdeu a chegada de nenhum trem! Desperta e imerge naquela realidade grotesca, imutável da espera; aquela de um sonho que não lhe pretence, de um filme que a surpreende, como aquele último do Pasolini que tanto a sufocou. Naquela sala de cinema tensa, compartilhando seu mal-estar coletivamente, não sabia se ficava ou deveria ir-se embora. Olhava ao redor buscando amparo; dos semblantes dos espectadores impávidos, raramente fugiam-lhe alguma expressão. Nervosa, o público discreto, o constrangimento era total. Ela não teve coragem de deixar o cinema. Na brutalidade nua e crua de Salò ou 120 dias de Sodoma, não identificava a sutileza de Dante, encontrava apenas o cunho devasso do Sade e a crueldade do Barba Azul. Neste dia, não sabia se devia amar ou odiar a Pasolini, não sabia se o admirava ou o rejeitava. Lógico que sua motivação estava evidente. O horror da guerra, do nazi-fascismo é inimaginável, mas precisava ser assim, deste modo perverso e bizarro, para torturar o seu público? Era o seu diretor, seu ídolo no auge do desencanto e da provocação. Ela não podia abandoná-lo.
Logo em seguida sentiu que estava prestes a chorar: se viu em um funeral. As lágrimas, que antecipam o futuro e prenunciam o destino, teimavam em fugir dos seus olhos e escorrer pelo seu rosto. Aflita, não sabe se chora, clama por socorro ou chama a polícia. Um vago sorriso atravessa seu olhar, suaviza suas feições, e então o tormento vai embora; porém, fica rondando por perto, circula pela estação, se detém em algum canto sombrio, volta tão logo os próximos oito minutos se esgotem e afugenta a breve alegria.
Ela crê nas premonições nefastas. Em sua mente amontoam-se imagens de tragédias: um assalto, um roubo, um sequestro, um acidente, um desmaio, um ataque, um atropelamento [estas cenas são como as de um filme que ela não as consegue evitar. As imagens vão surgindo como esboços furtivos, transformam-se em vultos que ganham contorno e densidade; tomam corpo e, logo, embutem-se em sua mente e a fazem viver intensamente o momento, em seus detalhes, extrapolando os limites da realidade. Estas cenas não são vivências da memória, nem vestígios de lembranças, são fruto do instinto e maus presságios]. Ela não crê no evidente, de natureza lógica, como um encontro casual, uma visita espontânea, um telefonema inesperado, uma distração na livraria ou um engarrafamento, o simples atraso da Linha 1 ou meramente o esquecimento da hora marcada. Pelo menos hoje, ela poderia buscar algo em sua memória que a consolasse, que aplacasse esse tormento, que trouxesse um pouco de coerência aos momentos de insana espera.
O pouco senso que lhe resta lhe diz para ter paciência, afinal, ela pode esperar o próximo metrô, e num piscar-de-olhos, aliás, num abrir-e-fechar-de-portas tudo poderia mudar. Paralisada, sofre a dor impalpável, ilógica da espera. As pernas lhe pesam, os pés cansados doem. Ela não se move, não!, ela acredita que seu pensamento o proteje. O olhar fixo, os minutos contados com angústia, a tensão na nuca, a boca seca, o pouco oxigênio inalado... sente que está prestes a desmoronar. Abatida, apoia-se em uma coluna.
Quanto tempo deveria ainda esperá-lo? Até quando continuar? "Devo pedir ajuda? Uivar? Me autoflagelar? Deixar-me levar pela loucura? Fugir?" Fugir, covarde não conseguiria. Neste ápice de desespero ouve o seu nome, vira-se e o percebe se aproximar, sorrindo, braços abertos. A nuvem densa que a envolvia dissipa-se e um calor nostálgico a aconchega. O sofrimento alça vôo, paira porém, por um momento sobre sua cabeça, depois erra pela estação, se detém e então aferra-se a uma viga em console e prepara-se para a espera. Ela suspira profundamente aliviada, agradecida, salva deste pesadelo. Todo o resto é esquecimento. Ele aproxima-se e a abraça: perdoe-me pelo atraso, Penélope!
_- °The End °-_
https://youtu.be/qg4SgNYeCgU
[«She Remembers» by Max Richter]
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