Capítulo 3 - A Ramsés

...cantar e alegria
Cantemos também
Cantem, cantem, como nós...

Aquilo era um circo. Um verdadeiro caos controlado. Nesse circo havia uma malabarista e um mágico. Muitas crianças pulando alegremente enquanto seguravam um pompom azul. Maroca, Candinha, Zico e Zecão também estavam presentes, fazendo os olhos dos pequenos brilharem.

...Estamos prontos vamos nós
Cantem comigo, brinque também
Fiquem rindo isso é bom
Suas risadas são tão legais...

A entrada do palhaço Bozo, ao lado de Vovó Mafalda e Papai Papudo, foi, como sempre, o ápice do início deste programa.

...fiquem rindo igual a mim
Eu sou o Bozo o palhaço de todos vocês...

Havia uma pessoa, porém, da qual Bozo e seu circo não conseguiam tirar um sorriso sequer. Laura assistia sempre ao programa do palhaço mais famoso do Brasil. Aquele era o show do qual Beatriz, sua filha desaparecida, mais gostava. Assistir àquele circo fazia-a sentir-se como se Beatriz fosse reaparecer a qualquer momento. Como se o palhaço Bozo tivesse o poder de atraí-la novamente para dentro de sua casa. Enquanto as crianças da tela sorriam, Laura chorava.

O telefone tocou.

Laura saiu de seu mórbido transe e, ainda que estivesse fraca por conta da má alimentação dos últimos meses, já que a fome sumira juntamente com sua alegria de viver, levantou o mais rápido que pôde e foi em direção ao aparelho. Sua esperança era a de que, do outro lado da linha, um policial lhe falasse que sua filha fora encontrada.

─ Alô?

─ Oi Laura. Aqui é a Mila.

Para a tristeza de Laura, aquela ligação não seria a resposta de seu sofrimento. Camla era sua irmã, trabalhava como enfermeira, e lhe telefonava quase todos os dias, sempre preocupada com seu estado.

─ Ah... oi Mila ─ respondeu.

─ Queria saber como você está, minha irmã.

─ Eu estou... ─ Laura parou por alguns momentos. Como ela completaria aquela frase? Destruída? Sem vontade de viver? Perdida? ─ Eu estou... indo.

─ Você sabe que pode contar sempre comigo, não sabe?

─ Sei sim. Mas e você, como está?

─ Cansada, mas bem. A última noite no hospital psiquiátrico foi bem intensa, mas engraçada. Parece que a professora de artesanato esqueceu sua caixa com giz de cêra e cola dentro da sala. Uma paciente acabou pegando tudo e pintando a parede inteira de...

Laura ouvia, mas não escutava. Sua mente estava em outro lugar. Um lugar que nem ela mesma sabia onde era. O lugar onde sua filha se encontrava. Laura tinha certeza de que Beatriz não havia morrido. Ela estava viva. Mas onde?

─ ... Laura? Você está aí? ─ questionou Mila, ao perceber a mudez de sua irmã.

─ Sim, estou. É bem engraçado mesmo. Mas eu preciso desligar, ok? Estou cansada. Vou me deitar um pouco.

─ Está bem. Se precisar de mim, pode me ligar. Sempre. Qualquer horário. Fique bem, minha irmã ─ finalizou Mila, num tom de voz perceptivelmente preocupado.

Laura desligou o telefone. Não era sono o que sentia, apenas aquela mesma velha tristeza que lhe acompanhava há seis meses. Caminhou a passos lentos em direção ao seu quarto, onde uma imagem de Nossa Senhora Aparecida reinava soberana em um quadro pregado na parede. Ainda que soubesse da descrença de seu marido em relação a Deus, santos e tudo que fosse relacionado à fé, ela pediu para que essa imagem ficasse no quarto. Laura não precisou nem insistir muito. Pediu apenas uma vez, mas com um olhar de carinho do qual só ela era capaz e do qual era impossível lhe dizer não. Roberto cedeu. Na época, Beatriz habitava sua barriga. Agora, os tempos eram outros. Laura não sabia mais onde Beatriz habitava.

A depressiva mulher se prostrou diante da imagem e rezou. Não que aquela fosse a primeira oração que fizera. Ao contrário. Laura rezava e pedia quase todos os dias pela volta de sua filha. Mas, daquela vez, era diferente. Sua reza parecia ainda mais intensa, ainda mais urgente, com mais fervor do que nunca antes pedira. Banhada em lágrimas e segurando o terço, ela berrava em pensamentos pela ajuda de Deus, por meio da intercessão da virgem Maria. Queria sua filha. Laura precisava de Beatriz. E, ao final de sua súplica, pela primeira vez ameaçou o Todo Poderoso:

─ Se não devolvê-la para mim, Senhor, eu me mato! Prefiro a morte a uma vida sem minha Beatriz.

Certa de que Deus ouvira seu clamor, Laura voltou ao telefone. Discou um número do qual já sabia de cor, tamanha a quantidade de vezes que discara a mesma sequência numérica nos últimos meses.

─ Delegacia de Polícia de Campinas, boa tarde ─ disse a voz do outro lado da linha.

─ Boa tarde. Eu gostaria de saber se há novidades em relação ao desaparecimento de Beatriz Speranza Martins.

─ Senhora, não há nada de novo no momento sobre o caso. A polícia continua com as investigações.

─ Mas como assim? Deveria ter algo novo! Você está me escondendo as coisas, não está? ─ falou Laura enquanto chorava.

─ Senhora, como lhe disse das outras vezes, qualquer novidade nós entraremos em contato.

O choro já se transformara num melancólico e desesperado grito.

─ Por que vocês estão fazendo isso comigo? Por que? Por que?

─ Por enquanto as informações são essas, senhora. Desculpe. Há algo mais em que eu possa ajudá-la?

Laura não se deu ao trabalho de respondê-lo, desligando o telefone antes mesmo do rapaz do outro lado da linha fazê-lo. Vários pensamentos tomaram conta da triste mulher. Será que sua oração não havia sido intensa o suficiente? Será que a polícia estava encobrindo informações? Será que sua filha ainda se encontrava viva? Será que Deus existia?

Em meio a tantos questionamentos, a mãe órfã de filha caminhou em direção ao banheiro. Procurou desesperadamente por algo que pudesse lhe ajudar naquele momento. De tanto procurar, encontrou. Avistou um remédio com vários comprimidos. Não se deu ao trabalho de ler seu nome. Apenas tirou o vidro da caixinha e despejou quase tudo em sua mão. Eram tantos comprimidos que sua pequena mão não fora capaz de segurar a todos, tendo uns cinco ou seis caído sobre o piso branco do banheiro da casa.

As dezenas que ainda permaneciam em sua mão foram em direção a sua boca. Instantaneamente, Laura engoliu a todos com a ajuda da água da torneira da pia do banheiro. Aquela seria sua vingança ao Deus que lhe abandonara. Ela sabia que seu passado havia sido repleto de pecado. Suportaria, sim, uma vingança divina, desde que essa vingança fosse contra ela, não contra sua filha. Laura era, naquele momento, como Ramsés, o rei do Egito, porém sem trono. Sentiu a ira divina por meio da mais dolorosa de todas as dez pragas: a morte de sua primogênita. Mas por que só agora? Agora que ela havia se convertido. Agora que ela havia se entregado a Deus. Aquilo não fazia sentido.

Porém, da mesma forma que se entregara ao Criador, tomaria sua vida Dele. Laura estava certa de desistir de sua existência. Caminhou de volta ao sofá e se sentou. Continuou assistindo às estripulias dos palhaços, mas sua mente foi, aos poucos, se desligando. Ouvia, mas não escutava. Pensava, mas não refletia. Ainda estava lá, mas não sentia mais seu corpo.

─ Boa tarde, amor.

Era a voz de Roberto chegando do seu trabalho. Mas Laura não lhe respondeu.

Bạn đang đọc truyện trên: AzTruyen.Top