Capítulo 16 - Os Transtornos
Ela vestia uma roupa leve e branca. Ostentava em seu peito um crachá com seu nome: Camila Speranza. A enfermeira visitava, um a um, os quartos dos pacientes, internados no hospital psiquiátrico pelos mais diversos motivos: uso de drogas, autismo, psicose, homossexualismo, ou quaisquer outros diagnósticos considerados como transtornos mentais pela Organização Mundial da Saúde. Aquele hospital era referência no estado de São Paulo nesse tipo de tratamento durante os anos 80.
No quarto de número 22, uma paciente nova seria visitada pela enfermeira. Antes de entrar, Camila leu rapidamente a ficha.
Motivo da internação: tentativa de suicídio.
Ela abriu a porta. Mesmo com o calor intenso, a paciente estava deitada na cama com o corpo totalmente coberto pelo lençol.
− Bom dia!− disse Camila.− Hora de tomar o remédio.
Apesar do chamado, a paciente permaneceu na cama, imóvel. A enfermeira decidiu, então, chamá-la pelo nome. "Qual é mesmo o nome dela?", questionou-se. Ao se questionar, olhou novamente para a ficha que segurava e, imediatamente, surpreendeu-se ao ler o que estava escrito no papel.
Nome: Laura Speranza Martins.
− Laura? Laura? − chamou, confusa. − É você?
Ainda deitada na cama, a paciente identificada no papel como sua irmã começou a chorar. Camila retirou a parte do lençol que tampava o rosto da mulher, revelando o rosto de Laura.
− Mas... como? Por que está aqui, Laura?− questionou, confusa.−Pelo amor de Deus, o que houve?
− Ela não é Beatriz, Camila!− O choro de Laura soava desesperador.− Ela não é Beatriz e você sabia disso! Você sabia!
− Eu.. eu peço que entenda! Fiz pelo seu bem, minha irmã! Não suportaria lhe perder! Essa foi a única forma que encontrei de lhe dar um pingo de esperança!
Laura sentou na cama do hospital e encarou sua irmã. A mãe de Beatriz ainda chorava. Dessa vez, porém, não desciam lágrimas normais de seu rosto, mas sangue. Laura chorava sangue.
− Como pôde fazer isso comigo?− questionou a paciente de lágrimas vermelhas.− Como pôde?
Ao retirar todo o lençol que, antes, cobria-lhe completamente o corpo, Laura revelou em sua mão direita uma faca de lâmina afiada.
− Eu não quero mais viver!− gritava a mãe de Beatriz, enquanto cortava seu pulso com o objeto afiado.− Eu não quero mais viver!
Camila tentava fazer com que Laura interrompesse os cortes sucessivos que causava em seu próprio braço. Em vão. A paciente possuía uma força descomunal, impossibilitando que qualquer ajuda fosse possível. A enfermeira precisava buscar socorro. Por isso, saiu correndo do quarto em desespero. Correu pelo corredor do hospital, gritando por ajuda. Por mais que gritasse, porém, ninguém parecia ouvi-la. O corredor se tornava cada vez mais longo, quase infinito. Corria tanto e tão desesperadamente que não viu a aproximação de um médico, esbarrando nele. Os dois foram ao chão.
− Cuidado, enfermeira! Aqui não é lugar de correr!− disse o homem, identificado em seu crachá como doutor Davi Pacheco.
− Doutor, me ajude!− disse Mila, ofegante.− Minha irmã... minha irmã está em crise. Ela vai se matar! Por favor, você tem que...
− Por favor, enfermeira Camila, recomponha-se − interrompeu ele, calmamente − Você ainda tem alguns quartos para visitar e chegou uma paciente nova no nosso hospital que vai precisar de seus cuidados também.
− Não, doutor, o senhor não está entendendo! Minha irmã precisa de nossa ajuda agora!
Ignorando o desespero da enfermeira, o médico lhe entregou uma ficha.
− Esta é a nova paciente. Está instalada no quarto 22 e precisa muito e sua ajuda− sorriu, enquanto se levantava do chão.
− Não, doutor. Isso é impossível! O quarto 22 é onde minha irmã está e...
− Vá e faça seu trabalho, enfermeira Camila− finalizou ele.
O psiquiatra, então, andou calmamente pelo corredor até se perder de vista. Camila continuava confusa com toda aquela situação e preocupada com sua irmã. Olhou para o lado e viu que, apesar de ter corrido por um longo tempo em busca de ajuda, ainda permanecia no mesmo lugar. Camila estava sentada no chão em frente ao quarto 22, o mesmo onde, anteriormente, encontrara Laura. Ela se levantou, ainda segurando a ficha entregue pelo psiquiatra. Ao lê-la, aterrorizou-se.
Quarto 22. Motivo da internação: homossexualismo. Nome: Camila Speranza.
Sua respiração ficou ofegante. Sua mão foi em direção da maçaneta. A porta foi aberta. Em cima da cama, uma mulher. Uma mulher que, apesar de não ser mais sua irmã, lhe era familiar. Camila viu a si mesma. Num piscar de olhos, ela havia deixado de ser uma enfermeira e estava agora deitada na cama do hospital, rodeada de enfermeiros e médicos.
− Hora de tomar o remédio− disse um dos enfermeiros.
Os olhos de Camila se arregalaram. Por mais que tentasse, porém, ela não conseguia emitir nenhum som. O telefone começou a tocar.
− Não tenha medo, nós vamos lhe curar− disse outro.
Camila pensava consigo que todos estavam errados. Ela não precisava ser curada. Ela não estava doente. O telefone insistia em tocar.
− Abra sua boca, Camila − falou o doutor Davi Pacheco, segurando um comprimido.
O telefone permanecia gritando.
Camila acordou, ofegante. Ela estava em sua cama, em seu quarto, em sua casa. Suando e tremendo. Ao mesmo tempo, aliviada por aquilo ter sido apenas um pesadelo, um terrível pesadelo. O barulho do telefone, porém, era real. O aparelho de sua casa estava tocando. Ela se levantou de sua cama, caminhou em direção da sala e atendeu.
− Alô?
− Camila, pelo amor de Deus, onde você estava? Estou ligando pela milésima vez!
− Ah, oi, Nanda. Eu estava... dormindo. Mas o que foi, aconteceu alguma coisa?
− Sim, aconteceu!− afirmou sua esposa, com voz de temor.− O Roberto esteve aqui e descobriu tudo! Tudo sobre Beatriz! E está indo aí pra casa!
− Ele o que?− surpreendeu-se.
− Eu falei, Camila! Eu falei que isso era errado! Falei que isso ia dar merda! Ele está indo aí, ameaçou até mesmo chamar a polícia!
A campainha da casa tocou.
− Não se preocupe, meu amor. Tudo isso foi ideia minha. Você não tem nada a ver com isso. Deixe que eu resolvo esse problema com meu cunhado, ok?
− Como não vou me preocupar? − questionou Fernanda. − Ele é um desequilibrado! Estou com medo por você.
O barulho de alguém batendo freneticamente na porta pôde ser ouvido por Camila.
− Eu sei, mas consigo me defender. E sei também que minha consciência tem a certeza de que fiz o correto. Preciso desligar agora. Nossa visita acaba de chegar.
− Pelo amor de Deus, tenha cuidado!− pediu Fernanda.−Eu lhe amo!
− Também lhe amo!
O telefone foi colocado no gancho. Roberto já podia ser ouvido gritando pelo nome de Camila, enquanto tocava a campainha e batia na porta da residência de forma sucessiva.
A irmã de Laura caminhou rumo ao visitante e abriu uma fresta de sua porta.
− Camila!− falou Roberto, transtornado.− Nós precisamos conversar agora mesmo! E conversaremos por bem ou por mal, está me ouvindo?
Ela destrancou a porta de sua residência e abriu.
− Não precisa ser por mal, Roberto.− Ela aparentava tranquilidade.− Entre. Você é meu convidado.
Os cunhados se fitaram. Muita coisa seria esclarecida naquele momento, para ambos os lados. A verdade, enfim, estava prestes a ser revelada.
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