Capítulo 14 - O Estranhamento
− Estávamos passando aqui por perto e decidimos visitar vocês... mas será bem rápido, ok? − disse Mila.
Laura deu um abraço apertado na irmã e também em sua cunhada, Fernanda.
− Vocês são sempre bem vindas em nossa casa, em qualquer dia e em qualquer horário − afirmou a mãe de Beatriz, sorrindo.
Segundos após entrarem na casa dos Martins, o casal pôde avistar Roberto, com as roupas um tanto molhadas, indo cumprimentá-las.
− O que aconteceu, Roberto? A casa ainda está com goteiras? − brincou Mila.
O marido de Laura e as duas visitantes se saudaram com um beijo no rosto.
− Não − disse ele, rindo.− As goteiras pararam milagrosamente.
− Pois então, por que está todo molhado assim?
−Na verdade, eu estava... ajudando minha filha a tomar banho− respondeu Roberto, um tanto sem jeito com a situação.
Um silêncio tomou conta da sala de estar da casa dos Martins por alguns segundos, como se a ausência de som gritasse o constrangimento de todos os presentes diante de tal afirmação.
− Sabe como Beatriz ainda é bastante dependente de nós, não é?− comentou Laura.
Mila sorriu, quebrando o gelo. Fernanda, ao contrário, permaneceu séria, sem conseguir disfarçar seu incômodo.
− E você, Fernanda, como vai? − perguntou a mãe de Beatriz. − Fazia muito tempo que não lhe víamos!
− Sim, é verdade. A Mila sempre me cobra para lhes fazer uma visita, mas sabe como é a correria, não é mesmo? O escritório ocupa quase todo meu tempo.
− Ah, você continua naquele mesmo escritório de contabilidade no centro? − perguntou Roberto.
− Sim. Agora sou coordenadora de lá. Então imaginem o quanto estou trabalhando!
Os pais de Beatriz assentiram, sorrindo.
− Faz tempo que você não vê nossa filha, não é verdade?− questionou Laura.
− Sim. Desde que...− Fernanda não conseguiu completar seu pensamento em voz alta.− Bem, vocês sabem.
− Então chegou a hora de matar a saudade− afirmou Laura.− Beatriz, meu amor, saia do banho − chamou.− Suas tias estão aqui para lhe ver.
− Já estou indo!− gritou a moça.
Roberto percebeu que, ao contrário de Laura ou mesmo de Mila, Fernanda parecia inquieta. Coçava sua cabeça, sorria de forma falsa, não olhava nos olhos de ninguém. Agia como se não desejasse estar ali. Agia como se, assim como ele, não concordasse com o que ocorria naquela casa.
− Olá titia!− Ao surgir na sala, Beatriz abraçou Mila com cabelos ainda molhados.
− Oi Bia! Como você está linda! − disse.− Diga oi também pra sua tia Fernanda!
Fernanda parou de respirar por alguns momentos, tamanha a tensão que sentia. Estendeu sua mão em direção da moça. Beatriz, entretanto, foi de encontro a ela com um abraço.
− Oi titia! Quanto tempo!
A esposa de Mila apenas sorriu. Roberto ficou curioso com ela. Enfim alguém que não conseguia fingir normalidade diante de uma situação tão bizarra.
− Por que não jantam conosco? − convidou ele. − Estou certo de que a comida será mais que suficiente para um belo jantar em família, não é mesmo Laura?
− Claro que sim! – confirmou. − Jantem conosco!
Mila e Fernanda se entreolharam.
− Na verdade, foi só uma visita rápida. Mesmo! − afirmou Fernanda.− Estamos de saída, inclusive.
− De jeito nenhum!− protestou Laura.− Não podem fazer essa desfeita conosco. Vamos! A comida é simples, mas o importante é termos a família reunida e completa mais uma vez!
Em nova troca de olhares silenciosos entre o casal de mulheres, elas concordaram com o convite, já que, de todo modo, não havia mais como negá-lo diante de tamanha insistência.
Os cinco se sentaram à mesa. Para comer, arroz, feijão, carne de panela com batata e uma salada de alface e tomate. Alimentos simples que nas mãos habilidosas de uma feliz Laura transformavam-se num delicioso banquete.
− Isso está uma delícia, Laura − comentou Fernanda.
− Sim! Estava com saudade de comer sua comida, minha irmã!
A cozinheira agradeceu os elogios. Roberto, por sua vez, decidiu tensionar o ambiente, especialmente para a esposa de sua cunhada, e verificar até que ponto ela poderia aguentar.
− Laura sempre foi ótima em preparar deliciosas refeições. Senti muita falta disso tudo ao longo dos últimos meses, sabe, Fernanda?− afirmou ele.
− Sim, posso imaginar...− respondeu ela.
− Mas, felizmente, desde que nossa filhinha voltou− prosseguiu Roberto−, a alegria retornou em nossa casa. Você consegue sentir a alegria em nosso lar, não consegue Fernanda?
− Sim, é claro...
− O que deu em Roberto que hoje ele está tão tagarela?− questionou Mila.
Roberto respondeu:
− Estou feliz. Só isso.− Ele se levantou da cadeira e caminhou lentamente em direção de Beatriz.− Não era apenas Laura que se sentia triste com o sumiço de nossa filha. Eu também. − O homem se posicionou de pé atrás da cadeira onde sua suposta filha estava sentada, colocando as mãos em seu ombro.− Senti falta de jogar jogos de tabuleiro com ela, não é mesmo, Bia?
− Hã... uhum...− disse Beatriz, com o corpo rígido.
Fernanda sorriu. Um sorriso nervoso. Roberto prosseguiu.
− Senti falta de contar histórias pra ela dormir. Você gosta das histórias do papai, minha filha?
− Er... gosto... gosto sim, papai.
Roberto olhou para Fernanda.
− Senti falta de dar banho na minha filhinha e...
− Com licença− interrompeu Fernanda, visivelmente nervosa.− Eu... eu preciso ir ao banheiro.
A esposa de Camila se levantou de sua cadeira e caminhou ao local anunciado por ela. Fechou a porta do banheiro e permaneceu por lá durante um tempo. Suas mãos tremiam. O coração batia de forma acelerada. Não era à toa que demorara tanto tempo para visitar novamente aquela casa, e que só o fizera após muita insistência de Mila. Como poderia ela fingir normalidade diante daquela trama digna da mais estapafúrdia novela? Como poderia Laura acreditar naquilo? Como poderia Roberto acreditar naquilo? "Será mesmo que Roberto acredita?", pensou consigo.
Fernanda se olhou no espelho da pia do banheiro. Seus olhos estavam vermelhos, assim como suas orelhas. Era dessa forma que seu corpo respondia a momentos de tensão extrema. Ela lavou seu rosto e olhos com a água da torneira. Respirou fundo algumas vezes. "Chegou a hora de sair daqui", decidiu. Sair não apenas daquele banheiro, mas também da residência dos Martins.
A porta do banheiro se abriu. Fernanda apareceu na cozinha. Roberto já se encontrava sentado novamente em sua cadeira.
− Está tudo bem, Fernanda?− questionou Laura.
− Sim, claro...
Camila olhou para sua esposa e entendeu claramente o recado. A cumplicidade do casal permitia-lhes conversar apenas pelos olhos.
− Temos que ir embora mesmo, Laura− disse Mila.
− Como assim "ir embora"? Vocês mal terminaram de comer... − protestou a mãe de Beatriz.
Roberto apenas observava.
− Na verdade, a culpa é minha, Laura − afirmou Fernanda.− Prometi à minha mãe que iria visitá-la e já está ficando tarde. Mas agradecemos muito pelo jantar. Apesar de nossa pressa, estava delicioso.
Laura deu um sorriso amarelo, um tanto constrangida por suas visitas terem deixado um pouco de sua comida no prato.
− Desculpe, minha irmã, mas o dever nos chama− mentiu Mila.
O casal de mulheres se despediu de Laura. Enquanto Mila dizia adeus a Roberto com um beijo no rosto, Fernanda apenas estendeu a mão secamente para Beatriz. Por fim, a irmã de Laura se despediu de Beatriz com um caloroso abraço. Já durante a despedida de Fernanda e Roberto, o pai de Beatriz disse no ouvido de sua concunhada num volume quase inaudível:
− Eu também não acredito nessa Beatriz.
Fernanda desfez o abraço em Roberto sem nada dizer uma só palavra. Eles se olharam por breves segundos. Ela abaixou a cabeça. Seu silêncio, porém, soou como um consentimento para Roberto.
O casal de mulheres, então, caminhou até a saída da residência dos Martins. Após mais uma despedida, elas entraram em seu carro. Fernanda, ao volante, acelerou o carro e partiu.
− Nanda, eu sei que não foi fácil pra você vir aqui e...
− Eu quero que você me escute muito bem agora, Mila− disse Fernanda, interrompendo a esposa.− Eu nunca mais, nunca mais colocarei os pés nessa casa de novo. Eu nunca mais quero olhar pra essa família, pra sua família... você está me ouvindo, Mila?
− Estou sim, Nanda...
− Eu não serei cúmplice disso... − disse ela, com olhos e orelha extremamente vermelhos.− Eu não serei cúmplice disso...
− Tudo bem, meu amor. Tudo bem.
Já na residência da família Martins, o clima era de estranhamento, pelo menos para Laura.
− Achei a Fernanda tão esquisita hoje− comentou a mãe de Beatriz.− Gostaria muito de saber o que incomodou tanto ela.
Roberto, olhando para a suposta filha, disse:
− Eu também gostaria, meu amor. A Fernanda realmente pareceu bastante inquieta em nossa casa. O que teria causado isso?
O pai de Beatriz se sentiu intrigado, pois pensava consigo que talvez tivesse, enfim, encontrado uma aliada. Pelo menos Fernanda percebia o absurdo que era a chegada da nova Beatriz. Talvez Roberto não precisasse lutar sozinho essa guerra.
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