Capítulo 13 - O Aparecimento

Era um início de uma tarde chuvosa.

E, por conta da chuva, o movimento do Paris estava bem fraco. Aparentemente, os homens preferem sexo em dias de tempo firme. Justamente por isso, a maior parte de minhas meninas também não saiu para a rua. Temos uma piada por aqui de que dias de chuva são quase como dias de folga. Dias de folga não remunerados, é claro.

Como disse, são poucas as garotas que saem para a rua no mal tempo. Morgana foi uma delas. Quando a idade começa a chegar, suas marcas a se apresentarem em nosso corpo, e, ao mesmo tempo, mais e mais meninas novas e bonitas competindo conosco por espaço, o dinheiro dos programas acaba diminuindo. Acho que foi por isso. Morgana via na chuva uma oportunidade de trabalhar com menos concorrência.

Ao invés de dinheiro e programa, porém, ela encontrou outra coisa.

− Madame Flora! Madame Flora! − entrou ela aos gritos.

− Pela Virgem Maria! Que susto! O que foi agora, criança?− questionei.

− Preciso de sua ajuda. Há uma menina quase desmaiada no chão lá do lado de fora!

− É uma de nossas?

Como sabem, não é raro que, em nossa profissão, sejamos tratadas pior de que um cachorro com sarna. Fiquei preocupada. Minhas meninas são para mim como filhas. Para meu alívio, porém, ela negou.

− Não! Pelo menos, não do Paris. Mas ela parece estar bastante debilitada.

− Vamos lá!

Eu, Morgana e algumas outras meninas fomos ao local onde a garota estava deitada, bem próximo à fachada do Paris. Definitivamente, não era uma de minhas meninas. Por outro lado, não poderia deixar aquela desconhecida ali. Primeiro, claro, por sua própria segurança física e por sua saúde. Em segundo, porque o que todas nós, trabalhadoras do bairro, menos queríamos era atrair a atenção da polícia. A segurança daqui somos nós quem fazemos.

A ideia inicial era secar a garota e descobrir para qual casa ela trabalhava. Assim, levaríamos a desconhecida de volta para seu local de trabalho, e o problema já não seria mais nosso. Tiramos sua roupa, demo-lhes banho para esquentá-la. No banho, a primeira hipótese de minha cabeça − um possível estupro − fora descartada. A menina estava intacta, sem qualquer tipo de sangramento. Não que eu seja médica, mas com tantos anos de profissão e após tantos casos de violência sexual, isso é algo facilmente identificável por todas nós. Os únicos hematomas da garota eram no braço. Um leve roxeado do lado oposto aos dois cotovelos.

− Qual o seu nome, criança? − questionei-a por diversas vezes. Mas ela não me respondia.− Como se chama, garota? − insisti.

De tanto insistir, ela balbuciou.

− Bea... triz...

Deixamo-na descansando em uma das camas. Não conseguiríamos extrair muita coisa dela naquele estado. Pensei que talvez fosse uma dosagem alta de algum remédio ou uso excessivo de alguma dessas drogas novas que andam surgindo. Mas, de todo jeito, o Paris não era hotel e nem casa de recuperação. Pouco menos de uma hora depois de deixá-la na cama, acordei-a para o questionário final. O objetivo era descobrir para qual prostíbulo ela trabalhava e me livrar de uma vez por todas desse problema.

− Minha querida, chegou a hora de acordar e termos uma conversa − eu disse. − Seu nome é Beatriz?

− Isso... mas, onde estou? − questionou-me, confusa.

− No Paris. Em qual você trabalha?

− Paris? Como assim?

A confusão da desconhecida me fez esboçar um sorriso. "Será mesmo que essa doida pensa estar na Europa", ironizei internamente.

− Querida, você está no meu bordel. Em qual prostíbulo você trabalha? Temos de mandá-la de volta à casa onde trabalha.

− Mas... eu não trabalho em minha casa.

− É prostituta de rua, então?

− Não! Eu não sou isso! Eu não... trabalho... com isso!

Eu já estava ficando impaciente.

− Pela Virgem Maria! Então trabalha com o que?

− Eu não trabalho...− disse a jovem, ainda apresentando grande confusão.− Leve-me para casa, por favor!

− Para qual casa presta seus serviços, criança?

− Eu moro com meus pais. Leve-me de volta para casa, por favor!

"Só me faltava essa", pensei. "Uma filhinha de mamãe perdida no Itatinga."

− Minha querida, não temos tempo para ser babá de gente grande. Daremos-lhe um dinheiro para o ônibus, e então você encontra o caminho de casa.

− Eu... não sei pegar ônibus sozinha.

− Não sabe? Quantos anos você tem, minha filha? Dez?

− Nove.

Essa risada eu não pude segurar. Mesmo com toda a minha hospitalidade, aquela garota estava fazendo chacota de mim.

− Sim, e eu sou Michelle Pfeiffer − ironizei. − Quantos anos você tem?

− Nove, eu já disse!

Eu não tinha tempo para brincadeiras.

− Fale logo a verdade, sua puta! Não venha causar problemas na minha casa. De onde você veio?

A puta de "nove anos" começou a chorar.

− Por favor, senhora. Leve-me para meus pais! É tudo o que peço! Eu moro no Jardim Aurélia. Se me levarem até lá, eu sei como chegar. Mas não me faça pegar ônibus, por favor. Leve-me para meus pais! Eles se chamam Laura e Roberto. Eu só quero minha casa.

− Laura e Roberto? − Não era possível tamanha coincidência. Logo o nome do casal que havia virado lenda por aqui.

− Sim, meus pais. Laura Speranza Martins e Roberto Martins.

Laura e Roberto, o casal que há quase dez anos é lembrado por aqui como se fosse um conto de fadas. O sobrenome Speranza só confirmou minhas estranhas suspeitas. Esse era o nome de solteira da garota que trabalhou aqui comigo. Não havia como esquecer esse nome, ainda mais depois do que havia acontecido.

Fiquei curiosa, sim, admito. Mas sou uma empresária e não uma detetive. Essa história me parecia muito nebulosa. Uma mulher que afirmava ser a filha de Laura de nove anos, mas que aparentava vinte, surgir perdida no antigo prostíbulo onde a sua mãe trabalhava anos atrás? Definitivamente, não! Uma macaca velha como eu não acredita mais em conto de fadas. Precisava me livrar dessa louca o mais rápido possível.

− Saia já daqui! Seja lá o que esteja tramando, não farei parte disso.

− Não estou tramando nada, senhora. Quero apenas meus pais e minha casa. Se não podem me levar, chame a alguém. Chame a polícia! Mas, por favor, me ajude.

Polícia? Essa era a última coisa que eu queria.

− Por que, então, ao invés de chamar a polícia, não liga para a casa de seus papais? – ironizei novamente.

−Eu não lembro o número. Por favor, senhora, me ajude! –implorou.

Meu sangue ferveu. Confesso que segurei no pescoço dessa garota e ameacei-a:

− Está bem, garota! Levamos você até o bairro onde Laura vive. Mas escute bem: a partir do momento em que sair do carro, a porcaria de sua vida não será mais problema meu! Estamos entendidas? Eu não estou brincando!

− Eu prometo, senhora.

Mas, ao que parece, sua promessa vale menos que uma nota de mil cruzeiros.

θ θ θ θ θ θ θ θ θ θ θ

E foi assim. Morgana levou essa Beatriz de carro para o endereço onde ela disse que morava. Pelo visto, era realmente o endereço da casa de vocês − disse Madame Flora.

− Então você quer que eu acredite que ela simplesmente apareceu na sua porta? − questionou Roberto.− Isso é um absurdo!

− Vocês estão aqui, no Paris, na minha casa, atrás de respostas sobre uma mulher adulta que diz ser sua filha de nove anos, e vem me falar de absurdos, criança!?

− Ela é minha filha! − vociferou Laura, enquanto Beatriz permanecia serena em sua poltrona.

Madame Flora, aparentando impaciência, levantou-se da poltrona.

− Sabe de uma coisa? Não me interessa o que acham ou deixam de achar! Eu fiz essa vadia prometer que não me envolveria nessa história, e olha no que deu! Vocês estão por aqui colocando meu nome e meu estabelecimento na porcaria dessa trama de novela! − esbravejou a dona de Paris.− Nenhum de vocês mais é bem vindo por aqui! Estão me ouvindo? Nenhum de vocês!

Nesse momento, três homens apareceram, convidando de uma forma um tanto bruta o trio dos Martins a se retirar do bordel.

− Saiam e não envolvam meu estabelecimento nem meu nome nessa piada! Essa menina é maluca e vocês também são! E se aparecerem de novo, ou envolverem meu nome nisso, não esqueçam que sei onde vocês moram! – ameaçou. − Saiam daqui! Agora!

Roberto pôde perceber que pelo menos um dos três homens que lhes expulsavam possuía uma arma em sua cintura. Realmente eram eles mesmos, e não a polícia, que faziam a segurança do local. Obviamente, ele não ousou falar nada. Apenas entrou no carro com sua esposa e a jovem que dizia ser Beatriz e se dirigiu a caminho de sua casa. Mas em uma coisa ele concordava com a cafetina: essa menina era uma maluca, e eles também haviam perdido muito de sua sanidade.

Durante todo o caminho, pouco foi falado entre os três. A história da cafetina fora a mesma contada a eles por Beatriz. As histórias de Beatriz e de Madame Flora, por mais absurdas que fossem, se encaixaram. Além do mais, a irritação de Madame Flora ao vê-los e a gana por expulsá-los do seu bordel foram bem verdadeiros. O pai de Beatriz ficava cada vez mais confuso.

Já dentro de suas casas, Laura comentou com Roberto.

− Viu só? Beatriz realmente falou a verdade sobre como ela apareceu por aqui.

− A história de como ela apareceu no bordel, você quer dizer, né?

− Amor, o que nossa filha pode fazer se ela não se lembra de nada do que aconteceu antes disso?

Roberto já havia se decidido de que não valia a pena discutir com Laura. Sua esposa estava cega para a impossibilidade daquela história ser verdadeira. Ele preferiu o silêncio. Percebendo o incômodo de seu marido, Laura tocou carinhosamente as mãos no rosto de seu marido.

− Querido, quando pedi à Deus para que Beatriz voltasse, eu disse a Ele que minha menina poderia voltar de qualquer jeito, machucada ou paraplégica, com problemas mentais ou sem memória, não importava! Eu a aceitaria de volta com todo o meu coração − disse.− Roberto, se fosse preciso eu iria até o inferno para resgatá-la! Você está me entendendo?

− Entendo, Laura.

− Eu estava pronta para morrer − confessou Laura, com os olhos mareados.− O retorno de Beatriz me salvou. Pare de usar a razão, e vamos viver como uma família normal, por favor!

Normal. Isso era algo que nenhum deles conseguiu ser desde o aparecimento da estranha moradora da casa dos Martins. Desde o desaparecimento de Beatriz.

− Dê uma chance à ela! − prosseguiu Laura. − Dê uma chance à nossa família!

Roberto permaneceu calado, sem saber ao certo o que dizer. Definitivamente, Laura estava cega. Mergulhado em seus pensamentos, ele mal conseguiu enxergar Beatriz se aproximando deles.

− Mamãe, acho que estou precisando de um banho. Pode me ajudar?

Laura sorriu.

− Preciso preparar o jantar, meu amor.− Ela afagou os cabelos castanhos da suposta filha.− Mas seu pai pode, não é mesmo, Roberto?

Os olhos dele se arregalaram.

− Eu... não...− gaguejou Roberto, até conseguir encontrar uma desculpa plausível.− Eu tenho certeza de que nossa filha já consegue se virar sozinha no banho.

− Mas, papai... eu preciso de ajuda. Por favor!− pediu a jovem.

− Vão, vão indo! – insistiu. − Peguem a roupa e a toalha e ajam como pai e filha! Por favor, por mim!

Laura foi para a cozinha iniciar os preparativos da próxima refeição. Beatriz caminhou em direção a seu quarto e pegou uma toalha e roupas limpas. Entrou no banheiro, acompanhada de Roberto. A porta se fechou.

− Qual é o seu plano, hein garota? − disse, segurando-a pelos braços.− Por que esta fazendo esse jogo conosco?

− Sou eu quem lhe pergunto, papai: por que não está jogando conosco também? O que lhe impede?

− O que me impede? Você é uma impostora! – respondeu. − Estamos vivendo uma mentira!

Beatriz sorriu. Enquanto isso, tirava sua camisa e calça.

− Verdades, mentiras... o que importa?

− Como assim, o que importa? Essa é a minha vida, minha e de Laura!

− Vida? − questionou Beatriz, enquanto tirava o sutiã.− Que vida tinha a Laura antes de eu voltar? Eu dei a vida de volta para ela! Eu dei uma motivo para ela respirar! Não é isso o que importa?− Beatriz tirou a calcinha e entrou no chuveiro.

− E viver essa grande mentira? Jamais! Eu lhe pago! Quanto você quiser, eu lhe pago! Desde que você suma de nossas vidas!

− Você me entendeu mal, não foi, papai? Está muito acostumado a pagar mulheres para satisfazer suas próprias vontades − provocou Beatriz, sorrindo. − Eu já estou sendo paga. Paga com o amor dessa linda família. E isso vale mais que dinheiro!

Roberto colocou o braço dentro do chuveiro e segurou firmemente no pulso de Beatriz.

− Eu vou proteger minha esposa a qualquer custo!

Beatriz aproximou seu rosto do dele.

− Se quer protegê-la de verdade, use camisinha ao sair com suas amantes. Acredite, papai, você é um perigo maior para ela do que eu.

Beatriz, nua, encarava Roberto embaixo do chuveiro. A água também respingava nele. molhando levemente sua roupa. Interrompendo esse clima de tensão, os dois ouviram a campainha tocar. Ele soltou os pulsos da jovem e saiu do banheiro, deixando-a sozinha em seu banho. Seu coração batia acelerado. Ao sair, percebeu que Laura já havia recebido a visita.

− Que surpresa maravilhosa! − disse Laura aoabrir a porta.− Parece que agora nossa família está completa!

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