Capítulo 11 - As Caras

O cheiro da comida já dominava o ambiente. Laura preparava uma saborosa refeição ao som de Luiz Caldas. E, naquele momento, a música Tieta e o tilintar das panelas eram as únicas coisas audíveis da casa dos Martins. O silêncio entre Roberto e sua filha reaparecida começaram a incomodar a dona de casa.

─ Vamos, meus amores! O jantar demorará mais alguns minutos. Por que não aproveitam esse tempo livre para fazerem algo juntos? ─ sugeriu ela, numa rápida aparição na sala de estar, onde se encontravam os outros dois integrantes da família.

Roberto e Beatriz se entreolharam, sem a mínima vontade realizarem qualquer atividade em conjunto. Nesse momento, porém, o homem teve uma ideia que considerou ser brilhante.

─ Já sei! Que tal jogarmos aquele jogo que você tanto gosta, minha filha?

─ Jogo? ─ questionou Beatriz.

Aparentemente, a estranha havia fisgado a isca de Roberto. Não sendo a verdadeira Beatriz, como ele tinha certeza que ela não era, a moça não saberia dizer de qual jogo ele estaria falando.

─ Sim! O seu jogo de tabuleiro favorito, querida. O que foi? Não me diga que se esqueceu qual é?

Beatriz sorriu.

─ Como eu poderia esquecer? Eu adoro jogar o Cara a Cara. Mas acho que foi você quem se esqueceu, papai... não se recorda daquele misterioso acidente que acabou quebrando um dos tabuleiros do jogo?

Roberto emudeceu. Como ela poderia saber dessa informação?

─ Acho que seu pai conseguirá consertar esse tabuleiro, não é mesmo, Roberto? ─ perguntou Laura.

─ Si... sim... é claro.

─ Enquanto isso, terminarei de preparar o jantar. Divirtam-se!

Impressionado e assustado com toda aquela situação, Roberto emendou as duas partes quebradas do tabuleiro partido com uma cola de alta aderência. Enquanto fazia, Beatriz permanecia com um sorriso de canto de boca que lhe incomodava. Foram poucos os momentos em sua vida em que ele se sentira tão atônito e sem saber qual atitude tomar como naquela oportunidade. Desmascarar a jovem moça que dizia ser sua filha podia ser um desafio maior do que imaginava.

O Cara a Cara, voltado para crianças a partir de 6 anos, possuía 32 personagens em cada tabuleiro. O objetivo era, através de perguntas e raciocínio lógico, descobrir o personagem do adversário. Ainda que a atividade fosse um tanto infantil, num jogo entre os dois, a palavra "adversário" ganhava um caráter mais complexo e perigoso.

Na pilha de personagens, Beatriz selecionou uma carta. A carta possuía uma personagem chamada Aline, uma simpática senhora de cabelos grisalhos e bochechas rosadas. Já Roberto retirou a carta de Diego, um policial loiro e com rosto redondo. Um deveria descobrir qual personagem o outro possuía para vencer a partida.

─ Eu começo ─ disse Beatriz.

Roberto assentiu com a cabeça. A jovem prosseguiu:

─ Seu personagem é homem?

─ Sim.

Com a resposta, Beatriz abaixou no seu tabuleiro todas as personagens femininas.

─ Sua vez, papai.

─ Sua carta é uma mulher?

─ É sim.

Assim como Beatriz, Roberto baixou todos os personagens masculinos de seu tabuleiro recém colado, restando apenas as mulheres.

─ O seu personagem tem cabelo preto?

─ Não ─ respondeu ele.

O som de alguns personagens do tabuleiro de Beatriz sendo baixados fez-se ouvir na sala. O contraste entre o jogo infantil e a tensão presente no ambiente tornava o incômodo daquele momento ainda mais gritante.

─ É sua vez, papai.

Roberto demorou mais alguns segundos antes de fazer sua próxima pergunta.

─ A sua personagem tem nove anos de idade?

O sorriso permanente de Beatriz ganhou ares de seriedade. Olhando fixamente para os olhos de seu adversário, ela respondeu:

─ Não, ela não tem nove anos, papai. E o seu, tem bigode?

─ Ele não tem bigode. Sua personagem finge ser uma pessoa que ela não é?

Beatriz emudeceu por alguns segundos. Aquela pergunta havia sido uma declaração de guerra.

─ Essa pergunta não faz sentido... como é que eu vou saber?

─ A personagem é sua. Você deveria saber tudo sobre ela, não é mesmo, minha filha?

─ Bem, eu... eu acredito que não. Ela não finge ser alguém que não é ─ respondeu, desconcertada. ─ Minha vez, correto?

─ Isso mesmo, querida.

O olhar agora sério da moça tornou-se cada vez mais penetrante antes de realizar sua próxima pergunta:

─ Papai, seu personagem já ameaçou crianças e realizou sexo forçado com mulheres?

O sorriso da jovem voltou a reinar em seu rosto. Antes que o silêncio de Roberto tivesse que ser interrompido por uma resposta da qual ele não sabia qual seria, Laura interrompeu o tenso jogo infantil com um alegre aviso.

─ Meus amores, o jantar já está pronto. Vamos comer! Depois vocês terminam o jogo, ok?

─ Não precisaremos terminar depois, mamãe. Eu venci o papai.

Nesse momento, Beatriz abaixa mais alguns personagens, restando apenas um em pé. A jovem seguiu Laura até a cozinha. Ainda atônito com tudo, num misto de confusão e raiva, Roberto se levantou e viu o personagem restante presente no tabuleiro de Beatriz: um homem loiro, rechonchudo e com um chapéu de policial. Era Diego. Sim, Beatriz havia realmente vencido a partida. A guerra, porém, ainda teria mais alguns rounds.

─ Como é bom ter minha família completa novamente. Hoje é um dos dias mais felizes da minha vida!

O sorriso de Laura reinava em sua cara. O que mais ela poderia desejar além das duas pessoas que mais amava almoçando a comida que preparara com tanto carinho?

─ Eu também estou feliz, mamãe! ─ afirmou, com cara de satisfação.

As duas olharam para Roberto, esperando dele uma manifestação positiva que corroborasse com a alegria do momento. Ele usou todas as suas forças vitais para que sua boca se arqueasse em formato de lua crescente e o ódio presente em seu peito não se tornasse visível em sua cara. O homem segurou com a mão direita na mão de Laura e com a esquerda na mão de Beatriz.

─ Sim! É ótimo podermos almoçar todos juntos novamente! Minha filha, seja bem vinda de volta ao seu lar! Temos muitas coisas para conversar, não é mesmo?

─ Temos sim, papai.

─ Porque eu sei que como você ficou mais tempo com sua mãe desde a sua volta, já deve ter contato a ela boa parte do que aconteceu com você: onde ficou todo esse tempo; como conseguiu encontrar o caminho de volta para casa; quem cuidou tão bem de você ao longo dos últimos seis meses pra ter crescido tanto e ter se tornado uma moça assim, tão forte.

─ Na verdade não, amor ─ respondeu Laura. ─ Nós acabamos não conversando sobre isso. Mas eu também gostaria muito de saber essas coisas, minha filha! Quem quer que tenha cuidado de você, merece nossa eterna gratidão.

─ Isso, querida. Conte pra gente ─ solicitou Roberto.

─ Conto sim. ─ Os olhos do casal continuaram na direção da jovem, fuzilando-a com a expectativa do que seria contado. ─ Mas pode ser depois da refeição? Eu queria que agora nós apenas matassemos a saudade uns dos outros, pode ser?

─ Claro, minha filha! ─ concordou Laura. ─ Vamos focar no jantar! E depois você nos conta sobre tudo o que passou.

Aparentemente, as garfadas de Beatriz foramficando cada vez mais lentas e espaçadas, como se ela quisesse adiar o inevitável.Já Roberto aguardava ansiosamente o fim daquela longa refeição, na esperança dedesmascarar a jovem da qual ele considerava ser uma impostora.

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