MARJORI E LAPAM
Marjori tamborilava os dedos na mesa e batia os pés no chão em um ritmo frenético, tentando se acalmar. As roupas caídas ao lado da poltrona não ajudavam.
A mancha seca que impregnava o tecido tinha uma cor ferruginosa inconfundível. Era sangue. Ela sabia disso. Como estudante de enfermagem e ex-estagiária em um hospital durante o maior ataque terrorista de Piracicaba, não havia como errar. Marjori lembrava-se bem daqueles dias: roupas ensopadas de sangue, o cheiro metálico que grudava na pele.
Ela analisou as peças mais uma vez. Pela rigidez do tecido e pelo estado seco, devia ter se passado pelo menos dezesseis horas desde que aquilo aconteceu. Essa dedução era clara, mas o que acontecera naquela noite era um borrão completo.
Frustrada, abriu a geladeira e pegou o corote azul, a bebida que mais odiava. Seu reflexo no vidro da porta parecia julgá-la. Cada gole a fazia lembrar da mãe alcoólatra, do caminho que jurou nunca seguir, mas ali estava ela.
O líquido queimou sua garganta, e com ele veio uma lembrança fragmentada.
— "Ao tomar um gole, a bebida desce pelo esôfago e chega ao estômago, onde cerca de 20% das moléculas de etanol são absorvidas e entram no sangue..." — Marjori se viu de volta à sala de aula, explicando o processo químico do álcool para os colegas.
Era para ser um trabalho em grupo, mas, como sempre, ela havia feito tudo sozinha. A voz dela, didática e cansada, ecoava na memória.
— "...O restante passa para o intestino delgado, onde é absorvido e cai na corrente sanguínea. Uma vez no sangue, o álcool é transportado para tecidos como fígado, cérebro, rins e coração..."
Lembrou-se de risadas abafadas quando alguém fez uma piada sobre "esperma alcoólico", mas ela ignorou, focada na explicação.
— "... O fígado consegue processar apenas uma dose de álcool por hora. Acima disso, o etanol circula no sangue, intoxicando o corpo até ser completamente metabolizado."
A tontura a trouxe de volta ao presente. Sentada no sofá, ela deu mais um gole no corote, mas em vez de respostas, sentiu a dor de cabeça pulsar mais forte.
Sem saber o que fazer, ligou a televisão. O noticiário local, conduzido por uma jornalista que também era professora na faculdade, capturou sua atenção.
— "Lutadora de MMA é encontrada morta em uma república da nossa universidade. O corpo da campeã regional, Natalia Natam, foi localizado após uma denúncia anônima. Na gravação, uma voz feminina indica o local exato onde estava o cadáver."
Marjori deixou o corote cair no chão. Um zumbido agudo tomou conta de seus ouvidos, abafando os sons ao redor. Foi então que ouviu, fraco e nítido ao mesmo tempo, o sussurro de uma voz que acreditava estar perdida para sempre.
*******
— Já disse, Melissa, juro por todos os Orixás, eu não lembro de nada! — Lapam exclamou ao telefone. Ele puxou o ar com força, a respiração dificultada pela rinite. — Lissa, você tava comigo! Quem é esse tal de Jão?
— Pam, você tem certeza que eram hortênsias? — perguntou a amiga, cautelosa.
Lapam revirou os olhos, irritado.
— Eu escrevi um livro inteiro sobre flores que se transformam em adolescentes, e a vilã era uma hortênsia MILF! Estudei botânica por seis meses para aquilo, Melissa. Claro que eu sei o que é uma hortênsia! — Perdendo a calma enquanto mexia nos cabelos desgrenhados.
— Certo, mas não faz sentido ter sido o Chico. — A voz de Melissa soava mais controlada. — Desde aquela regressão, ele mudou completamente. Não fala mais com a gente.
Lapam suspirou.
— Eu sei o que aconteceu com o Chico, mas aquele recado era dele. Tenho certeza.
— E o que dizia o recado?
Ele hesitou.
— Não sei. Quando senti a conexão, ela sumiu.
— Pam, estava eu, você e o Jão naquela festa — insistiu Melissa.
— Quem é esse Jão que você tanto fala? — Lapam levantou-se apressado, procurando sua bombinha de asma. — Eu não conheço esse cara!
— Eu já esperava que você o esquecesse. Deve ser o novo remédio. — Melissa soava mais tranquila agora. — O Jão é novo na nossa... República. Ele é nadador, gosta de esportes...
— Ótimo! — Lapam jogou as mãos para o alto, exasperado. — Isso era o que faltava. Temos uma enfermeira, uma bailarina, um escritor, um músico, uma mestre de obras, e agora um atleta! Somos literalmente o elenco de Friends piracicabano e com muitos traumas mentais.
— Lapam... — Melissa tentou, mas ele continuou.
— Não, sério! É isso! Só que com a adição de um atleta adolescente, viramos High School Musical. Falta só uma ruiva pra completar o combo e sermos Riverdale! — Ele passou a mão na testa, respirando devagar para evitar um ataque de pânico. — Sério, o que mais falta?
— Não está ajudando — Melissa rebateu, irritada. — Vamos fazer assim: eu tento encontrar o Jão, e você fala com o Tai ou a Val sobre as hortênsias. Fechado?
Lapam deixou-se cair no sofá, derrotado e derrubando o celular.
— Tá bom, vamos do seu jeito. — Ele olhou ao redor, para o apartamento desorganizado. — Mas sabe quem mais eu vi lá antes de apagar?
Melissa hesitou.
— Quem?
— A Marj.
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