CHICO E VALENTINA

— Tu não deverias ser mais solícita conosco? — Chico jogou os cabelos pretos para o lado, afastando-os do rosto para encarar melhor a figura à sua frente. — Tu passaste pelas mesmas agruras que nós. Sofreste o mesmo que nós. De fato, somos família.

A mulher riu de maneira fria.

— Cala a boca. Desde a regressão você fala feito um idiota. — Sua voz pingava desprezo. — Família? Ha!

Ela deu um passo à frente, os cabelos cacheados e volumosos balançando como serpentes vivas. Seu olhar faiscava como se pronta para atacar, mas Chico achava que aquilo era apenas fachada. 

— Somos tão 'família' que vocês se livraram de mim, me baniram depois que eu os salvei.

— Salvaste? — Chico estreitou os olhos, tentando entrar em contato com algum de seus amigos, mas a presença  mulher era forte. — Como?

— O outro estava arruinando nossas vidas. — A mulher suspirou profundamente, como se carregasse o peso de uma década. — Fran, você sabe melhor do que ninguém que era uma questão de tempo. Ou ele se matava, ou começava a matar.

— Haveria de ter outro método. — Chico tentou contato com a Valentina, mas foi recusado com um movimento brusco. — Mas tu resolveste à tua maneira cruel.

— Eu chamo de eficaz. — Ela balançou a cabeça com impaciência. — E o que recebi? Traição. Fui jogada em um lugar de esquecimento. Você não tem ideia do que é aquele inferno.

Chico respirou fundo, a culpa transparecendo em sua voz.

— Eloah, pesa no meu coração toda vez que lembro o que fizemos contigo. Não era para ter sido assim. Juro por todos os Orixás que não era nossa intenção te banir. — Ele fez uma pausa, buscando as palavras certas. — Mas... o que fizeste nos assustou.

A mulher cruzou os braços como se tentasse se proteger de um golpe invisível.

— Nossa, agora me sinto muito melhor. — O sarcasmo escorreu de suas palavras. — Deixe-me devolver o favor.

Ela começou a rodeá-lo, como um predador diante de sua presa.

— Você foi muito útil se isolando depois da regressão, sabia? Deu a brecha que eu precisava.

— Não adianta tentar me fazer tremer. Meu coração é uma rocha.

Eloah sorriu de forma sombria.

— Rochas podem ser quebradas com a marreta certa.

Ela parou atrás dele.

— Lembra do que seu papai dizia quando entrava no seu quarto nas noites de culto?

A menção ao pai fez o rosto de Chico perder a cor.

— O diabo nunca aparece com chifres e cascos...

Antes que ele pudesse reagir, Eloah puxou uma lâmina de suas vestes.

— Bem, vou fazer o diabo revelar sua verdadeira face. Mas vai custar dois cordeiros.

A lâmina perfurou o lado do peito de Chico.

Ele sentiu a dor cortante atravessá-lo como um raio. Enquanto sua consciência falhava, tentou alcançar mentalmente seu amigo Lapam, mas não teve forças para completar o contato.

*******

Valentina sentiu a presença de alguém se aproximando. Pelo jeito que reclamava, só podia ser Lapam.

— Val? Val, você está aí? — Ele contornava uma mesa repleta de maquetes de casas. — Valentina?!

Ela surgiu atrás dele, tão prática quanto sempre.

— O que aconteceu agora? O que vocês aprontaram desta vez?

— Poderia começar com um 'oi'. — Ele suspirou, frustrado. — Mas, tudo bem, faremos do seu jeito. As coisas estão complicadas.

— Eu te interrompo quando achar necessário.

Lapam respirou fundo antes de continuar.

— Taiko encontrou uma roupa manchada de sangue em casa, e um bisturi caiu dela.

Valentina ergueu uma sobrancelha enquanto conferia a maquete.

— Marjori é aluna de enfermagem e faz estágio. Sangue e bisturis são normais.

— Essa é a questão: Marj e Taiko não se falam. — Lapam estava começando a perder a paciência com o jeito seco da amiga. Resolveu lançar uma bomba para captar sua atenção. — Ah, e outra coisa: Natam está morta.

Valentina congelou, como se tivesse levado um soco.

— Nat morreu? Minha Nat? Como?

— Foi morta por uma perfuração no coração.

Ela sentiu o ar faltar e trincou os dentes, reprimindo as emoções do jeito que só ela conseguia.

— Quem poderia... ou melhor, quem conseguiria vencer Natam?

— Essa é a pergunta. Mas eu preciso de respostas. — Lapam coçava os braços, ansioso. — Não fui eu, nem Lissa, nem você, nem o Chico. Só restam...

— Taiko e Marjori. — Valentina completou.

— E tem um tal de Jão. Ele é um atleta adolescente.

— Já o conheci. — Ela desviou o olhar para as construções, lutando contra as lágrimas e se forçando a focar no problema. — Um menino inteligente e dedicado.

— Como você conheceu ele?

— Ele me chamou porque a torneira do quarto dele estava com problema. Foi engraçado ver um garoto tão jovem ouvir MPB e cultivar suculentas e hortênsias.

Lapam empalideceu, a respiração ficando irregular. Algo estilhaçou em sua mente como um tijolo contra uma vitral de catedral.

— Hortênsias? Ele gosta de hortênsias e MPB?

Valentina percebeu o pânico crescendo nele.

— Lapam, o que está acontecendo?

Ele escorregou pela parede, tremendo. Colocou a cabeça entre as pernas tomado pelo pânico.

— Acordei com hortênsias ao redor da minha cama. E só conheci uma pessoa que gostava de MPB e hortênsias...

Valentina sentiu o chão sumir. 

A realidade a golpeava como um furacão.

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