↬❀ CONTO IV

Cast do casal

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É impressionante como um simples decair de temperatura faz a massa humana acalmar-se. Não importa o espaço-tempo. É tudo quietude.

Na fila do pão, ninguém percebia isso, exceto pelo baixinho — não tão baixo, necessariamente, mas de estatura média entre os homens — de casacas negras e pesadas com um tom de seriedade por trás do jaleco branco repousando no antebraço direito.
Na padaria silenciosa, duas filas aguardavam a vez. Mas a sua parecia nem mesmo sair do lugar ao passo que a outra dispensava os clientes como mercadorias em pistas de pouso. Bem saberia dizer quanto tempo levaria até comprar o desjejum se não tivesse tão atarefado em observar aquela gente agasalhada. Todos quietos.

A maioria deles já era conhecida do moço, mesmo que de vista. Senhoras com netos a tira colo. Poucos homens por ali. Vez ou outra um jovem, com expressões de preguiça, afinal não passava das seis e meia da manhã. O observador dessa gente se divertia com as histórias de cada um mesmo que no silêncio fossem escritas. A vida solitária dele fazia do grupo social seu maior passatempo, por isso além de médico, cronista se fazia.

Foi entre percepções e observações que algo fora do padrão aconteceu. Alguém além do círculo rotineiro de pessoas adentrava o estabelecido, estarrecida. Parecia que um motorista bêbado tinha zarpado num carro a poucos centímetros do pé dela. O moço logo acudiu com o olhar a figura nova. Era uma mulher. Tão bela. Tão emoldurável. Quantos gracejos tinha até mesmo com o olhar!

Bastou acomodar-se no fim da fila ligeira que o médico se lembrou. Era aquela mesma menina que outrora deixara em seu país. Como veio parar justo ali? Tal pergunta lhe ocorreu. Já não era mais moça, já tinha seus trinta e tantos anos. Seus cabelos alcançavam a curvatura da cintura em cascatas delicadas e ruivas. Os belos olhos claros combinavam com a boca carnuda e rosada. O tempo lhe fez bem, ou porventura tenha sido a Europa? Nem um nem outro. Foi a vida.

O médico sabia das limitações financeiras que ela tinha e mesmo assim, conseguira chegar lá. Ocorreu-lhe saber a sua trajetória desde a última vez que tinham se falado. Teria, quiçá, mudado de número? Passar-lhe-ia o novo? O reconheceria?

A fila andou.

Logo a jovem foi atendida. O seu observador notou que ainda comia os mesmos polvilhos de sempre. As pessoas mudam? Ela saiu. Ele esqueceu que estava com fome e tinha de ir trabalhar e seguiu-a até a praça da cidade. Ela se perdeu no meio das árvores. Ele a procurou. E então, a moça estava no meio do caminho, com os raios de sol ainda tímidos lhe iluminando a face, olhando seu "perseguidor". Um sorriso lhe afeiçoava a aparência. O homem julgou ser a melhor cena já vista.

— Oi — a moça o cumprimentou — Estava me seguindo?

O médico, tão eloquente, não soube se explicar. Pronunciava monossílabos indecifráveis.

— Eu lembro de você.

Ele se surpreendeu.

— Trocávamos cartas e telefonemas na maioria das vezes, mas apesar disso, consigo te reconhecer por causa das fotografias que sempre enviava.

A moça prendeu uma mexa ruiva e cacheada atrás da orelha, adornada de brincos. Um sorriso tímido escapuliu dela. Os dois apertaram as mãos. O moço não soube explanar como passaram de cumprimentos para confissões feitas enquanto comiam os polvilhos sentados no gramado. Aludiam a dois adolescentes novamente. Ele nunca tinha sorriso tanto em um curto espaço de tempo.

— Eu preciso trabalhar — o médico afirmou depois de alguns minutos de conversa.

— Eu também. — um receio passou pelos olhos dela — Não posso chegar atrasada no trabalho, meio que ser enfermeira não me permiti isso.

— Enfermeira? Onde você trabalha? — Ele se aproximou mais dela e a encarou fixamente.

— No hospital Sant'Anna. Subindo a rua.

O coração dele disparou. O seu primeiro amor perdido estava trabalhando sob o mesmo teto que ele? Tinha o conhecimento do tamanho grande daquele hospital, mas não sabia que era tão enorme assim. Será que ele poderia dizer que trabalhava lá também? Seria estranho? Seu coração não sabia decidir.

— É... Então... — ainda estava confuso — eu também trabalho em um hospital. Sou médico.

— Eu já sabia. — Ela sacudiu as migalhas de polvilho da blusa — Nós cortamos contato porque você estava vindo fazer medicina em Portugal, não lembra?

A memória veio à tona e feriu levemente o coração de ambos.

— Verdade. — O médico cochichou.

— Bom, foi legal te reencontrar. O mundo não é tão pequeno assim. Nunca imaginei que sairia de Lisboa e trabalharia em uma cidade do interior. Mas a vida tem suas surpresas né.

— Tem sim.

— Tenha um ótimo dia de trabalho. — o sorriso dela era o mais doce do mundo.

— Igualmente.

Cada qual percorreu um caminho diferente. O médico evitou retroceder o olhar para onde o amor da sua vida seguia. Ele só esperava que mais um encontro lhe desse coragem para poder começá-lo.

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