↬❀ CONTO II
Cast do casal
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Era verão.
Clarice abanava o rosto tênue com as mãos, tentando aliviar o efeito do calor. Olhava o relógio de pulso a cada momento esperando a hora de partir. Reajustou os óculos no nariz alongado e fingiu ouvir tudo o que o professor dizia.
O tempo correu. A turma saiu. Como no seu hábito, esperou a sala esvaziar para só então perambular pela faculdade, porquanto odiava ouvir o arrastar dos pés daquela massa vagarosa. Suportaria até ser espremida por um caminhão, mas não aguentaria ouvir sequer um resvalar de sapatos e chão.
Nisso, jogou a mochila nas costas levemente curvas, enquanto ganhava o pátio. Fez-se presente, então, uma figura muito engraçada, porém bonita, de um jovem grandalhão. O rapaz surpreendeu Clarice que pensou estar sozinha. Andou como sombra atrás dela sem dizer o que queria.
— Pois bem, Hugo, diga logo o que você quer! — esbravejou Clarice já sem paciência.
— Vamos numa festa?
— Perdeu o juízo? Convidas a mim para uma bagunça de desocupados?
— Não, Clarice, deixe de besteira. Vai ser na minha casa amanhã à noite. Bora?
— Mas nem se me pagar!
— Te busco às nove.
E o garoto realmente a buscou, ou melhor, mal precisou dar dois passos para chegar à porta de Clarice. Ambos eram vizinhos desde a infância. E foi só a jovem o ver que se palpitou o coração, no entanto, enterrou sua animação com várias camadas de orgulho e tratou de acompanhá-lo à tal festa. Às vésperas do ocorrido, já imaginava se deparar com uma bebedeira de alto escalão com vários barris de cerveja e jovens postos de cabeça para baixo sobre eles. Tentou adivinhar a gama de aperitivos que o anfitrião da festa escolheria. Também pensou que haveria vários casais pela propriedade em seus momentos mais afeiçoados. Ou talvez ainda, encontraria uma piscina cheia de corpos desnudados e pretensiosos. Conquanto, o que viu não lhe tinha passado pela cabeça.
Nada mais era que um punhado de jovens (vestidos) com latinhas nas mãos no quintal bem apertado e coberto do vizinho. Um jogo de luz barato, no alto da parede adjacente à entrada ,tentava conferir um ar mais festivo ao local e uma mesa no canto apoiava uma dezena de garrafas de cachaças e outras bebidas. Aonde estariam as comidas?
Clarice soltou um suspiro que oscilou entre decepção e admiração.
— O que foi? Não gostou? — perguntou Hugo.
A garota levantou os ombros, desfazendo-se da pergunta.
— Oxi, bora lá! Se diverte um pouco!
Hugo balançou levemente o quadril para o lado, ao som de uma música inexistente. Clarice bufou e exteriorizou o pensamento de segundos atrás.
— Eu só imaginava uma festa diferente.
— Em que sentido? — quis saber o anfitrião.
— Sabe, como aquelas que os jovens norte-americanos costumam dar nas suas casas enormes quando os pais viajam. O que tô vendo aqui, porém, são quinze adolescentes enfurnados nos fundos da sua casa com cervejas que sua própria mãe ofereceu.
— Isso é porque você se prende aos livros que lê.
De repente, o garoto apontava o dedo para a face de Clarice como um pai ensinando a filha. E ela não se incomodou com o ato.
— Seu conceito sobre as coisas se limita a culturas estrangeiras que nem sempre condizem com nossa realidade... Seja mais brasileira, senhorita!
Clarice sorriu e percebeu que Hugo, mesmo sendo um asno desmiolado, dissera a verdade. Enquanto ele ainda perdurava a ordenança no ar, estudou cautelosamente a face dele começando pelos os olhos caramelados sombreados por uma grossa carreira de pelos. Desceu a visão e notou um pequeno sinal na ponta do nariz que outrora não percebera. Por fim, fitou os lábios carnudos no cimo do queixo e engoliu em seco. Só depois de um tempo percebeu que encolhia os ombros.
— Por não tá tocando nenhuma música? — interrogou a convidada.
— Eu já iria colocar.
Hugo, então, deixou-a por um instante e ligou caixinha de som brilhante. Houve gritos dos jovens e já tinha cara de festa. Clarice tentou se misturar, mas ainda tentava saber onde os aperitivos haviam parado. À vista disso, escapuliu até à cozinha em busca da mãe do anfitrião, porquanto somente ela se compadeceria do pobre estômago da garota.
E como um ímã, Hugo a seguiu.
— O que tá fazendo aqui?
— Eu só vim pegar um copo de água — mentiu a garota sem receios.
— Mas tem todo tipo de bebidas lá fora! Não quer provar nenhuma?
— Não.
— Oxi, Clarice, deixe de besteira. Bebe com a gente!
— Não posso beber.
— E por que não?
A interrogada esfregou a mão na barriga e comprimiu os lábios. Hugo, assustado, logo perguntou se estava grávida.
— Claro que não, seu tolo! — gargalhou ela — Quis dizer que estou de estômago vazio.
— Mas eu posso dar um jeito nisso! Te preparo um sanduíche e você bebe um drinque comigo.
Clarice estreitou os olhos desconfiada de tal proposta, mas observou o projeto de cozinheiro manipular os mais estranhos ingredientes de sanduíches já vistos na história dos sanduíches.
— Pronto! — Hugo empurrou um prato até Clarice, que esperava do outro lado do balcão — Um maravilhoso misto de batata palha e sorvete de morango!
Não demorou muito e a garota desatou em gargalhadas! Que grande besteira era aquela, pensou consigo mesma. De fato, se arrependera de ter vindo aquela festa.
— Experimente! — insistiu ele.
Clarice esticou, com medo, os braços até o lanche e arrancou uma lasca do pão, comendo um pedaço razoável logo em seguida. Hugo encarou a convida e sorriu com aquele hábito dela. A guria então se maravilhou com a mistura e comeu freneticamente o resto.
— Tu sabia que não tem problema beber de estômago vazio, né?
Clarice jogou um não para Hugo e completou:
— Mas dessa forma, ficamos bêbados mais cedo.
O comentário perdurou no ar. Os dois se entreolhavam como se quisessem roubar a alma um do outro. Qualquer tolo poderia notar a chama da paixão presente em cada olhar, mas nem mesmo Clarice, em toda sua inteligência, sabia que seus sentimentos eram correspondidos. Hugo ganhara o espaço vazio ao lado dela e agora já não podia mais lhe perder o olhar.
— Você bebeu? — perguntou ela, estarrecida.
— O suficiente para me deixar corajoso.
— Então bebeu muito! Porque não existe ser humano no mundo que supere sua covardia.
E foi a risada de Clarice que estragou todo o clima. Frustrado, Hugo dirigiu ainda algumas palavras a ela e não demorou a voltar para o quintal.
O resto da festa não passou de um grupo de adolescentes bêbedos, com dois deles aos cantos, sentindo falta de algo que não passava da garganta.
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