Um Funeral de Simbolismos
Como é que não o tinha visto antes?
Estava tão absorta por aquele som maravilhoso que não notei no laranja que brilha a metros de distância.
Acho que é o único que não bate palmas, mantém o cotovelo na mesa de vidro, e a mão a apoiar a cabeça.
Tem uma expressão de orgulho no rosto, como se conhecesse o músico.
Agora consigo reparar nas tatuagens que lhe cobrem a parte esquerda do pescoço até ao queixo, ontem não tinha reparado nisso. Consigo perceber que também as tem nos braços quando a manga lhe sobe.
Quase começo a dar pulos de ansiedade.
O que devo fazer?
Devo falar com ele?
Interrogá-lo?
Talvez chamar a polícia.
Mas a verdade é que não houve qualquer crime, a não ser o facto de ele entrar em propriedade privada, coisa que não consigo provar, seria a sua palavra contra a minha.
O que é que posso fazer?
Tenho de me mexer, ou fugir, ou agir.
Mas é como no pesadelo, não me consigo mover, nem pensar.
O meu mundo para quando os seus olhos caem em mim, tão de repente, e tão assustadoramente que acho que o meu coração parou de vez.
Acabou, acho que vou ter um ataque.
É como se ele soubesse que estava ali, os seus olhos não saltaram de pessoa em pessoa e depois descobriram-me, não, ele olhou diretamente para mim, do palco onde estava o rapaz, para mim.
Inicialmente parece genuinamente confuso, como se estivesse a confirmar se realmente estou a olhar para ele, e depois, lá se forma o sorriso ladeiro, exatamente igual ao que me deu quando veio contra mim ontem.
Dou por mim a dar passos pequenos para trás, é essa a resposta do meu corpo, decide ligar-se, fugir.
Porque agora sei que aqueles olhos não foram imaginação minha, não foi um reflexo, não são umas lentes, são os seus olhos, porque a cor não muda, e lentes não brilham assim tão intensamente.
Ele não pode ser humano.
Tenho a minha confirmação quando, ainda de olhos postos em mim, de sorriso aberto como se a qualquer momento me fosse saltar para cima, uma pessoa se senta no seu lugar.
Literalmente onde ele estava sentado, alguém toma o seu lugar.
E o seu corpo desaparece num fumo negro.
Entro em pânico. Começo a hiperventilar, com o olhar colado naquela cadeira onde ele estava antes sentado.
Eu inventei-o na minha cabeça, ele realmente não existe, por isso é que ele abriu as portas da casa da senhora Hall sem problema, por isso é que nada aconteceu na sua casa, por isso é que alguém se sentou onde ele antes estava sentado.
Porque o único sítio onde ele existe, é na minha cabeça.
Noto que ainda estou a recuar o meu passo quando as minhas costas batem contra alguém, quero virar-me, mas umas mãos agarram-me nos braços e mantêm-me na mesma posição.
Olho para as mãos que me seguram, e reparo nos anéis que usa na mão esquerda, cinco anéis prateados que lhe cobrem os dedos por inteiro.
Sinto que a pessoa está a aproximar-se, dobram-se por cima de mim, e chegam-me perto do ouvido, e eu sei, eu tenho a certeza que é ele.
— Se estavas tão interessada em mim, podias ter vindo falar comigo. — Está tão perto do meu ouvido que quase me faz gritar, mas mesmo que quisesse acho que não conseguia, o corpo travou de novo, a garganta segura-me os berros que quero dar, e os pulmões não me deixam inspirar. Estou completamente arrepiada. A sua voz é tão grave que quase que me faz vibrar a pele e, mesmo que não o veja, sei que está a sorrir. — Vejo-te em breve, diabinha. — Sussurra, antes de me largar. Não notava que ele estava basicamente a segurar-me para que não caísse, porque quando o seu aperto cessa, os meus joelhos batem no chão.
Viro-me imediatamente para o encarar, perfeitamente consciente que não estou preparada para ver aqueles olhos laranja, só ficarei mais assustadora, embora já esteja sem força no corpo trémulo.
Não o encontro, desapareceu, provavelmente da mesma maneira como desapareceu daquela cadeira.
Eu senti-o, ele tocou na minha pele, senti o seu aperto, não pode ter sido uma ilusão, é impossível, a não ser que já esteja tão louca que já chego ao ponto de conseguir sentir algo que inventei na minha cabeça.
Ele notou que o observava, sabia muito bem que estava ali na multidão, por isso olhou diretamente para mim. Sentiu o meu olhar sobre si. Não sei se pensa que estou realmente interessada nele, se estava apenas a troçar de mim, mas fui intensa o suficiente para chamar a sua atenção, e fazer com que ele viesse falar comigo.
Porque me chamou diabinha, não consigo perceber, eu não fiz nada mau para que ele tirasse essa conclusão, ele não me conhece, não tem razões para me dar apelidos.
E o que quer dizer com "até breve"? Pretende ver-me de novo?
Vou deixar de conseguir dormir, sabendo que ele consegue aparecer atrás de mim, de um lado para o outro, num estalar de dedos, a este ritmo pode aparecer-me aos pés da cama e eu nem o ouviria.
Não, não vai haver sono.
A este ponto a guitarra já toca outra música mais animada que chama a atenção de ainda mais gente, gente essa que faz questão de não reparar na minha figura, na miúda ajoelhada no chão com cara de quem acabou de ver um fantasma.
— Estava a ver que não te encontrava! — Inaya aparece no meu campo de visão, com uma caixinha na mão, que suponho que contenha os bolos. — Estás tão pálida.
— Caí. — A cabeça faz a escolha instintiva de lhe mentir. Poderia dizer que o vi, que vi o rapaz que entrou na casa da senhora Hall, também lhe poderia contar que ele tem olhos laranja, que me quer assustar, e que diz que me vai ver outra vez. Mas, por alguma razão, decido não o fazer.
Acho que não o faço porque neste momento sinto-me uma louca por nem saber se o que estou a ver é real ou não, e sinceramente não quero que ela se questione do mesmo.
Por isso levanto-me, faço por fingir que não estou a tremer como varas verdes, e sigo-a para casa, sem mais nenhum detalhe senão que o músico parecia muito experiente. Como os doces e entretenho a Inaya até à hora de dormir, porque a última coisa que quero é estar sozinha.
Passo a noite de luzes ligadas, a lutar contra os olhos sonolentos, ocasionalmente acordando esquecida de como se respira, com imagens da cor laranja, dos anéis brilhantes, e com uma sensação dormente onde os seus dedos apertavam.
No dia seguinte tenho que me vestir de preto, o funeral da senhora Hall é a minha primeira desculpa para poder faltar às aulas da manhã.
Também me dá uma chance de não parecer tão mal num mar de gente que usa os olhos inchados de tristeza.
Misturo-me como uma maravilha.
Sinto a vontade de Inaya apontar que estou com um aspeto horrível, assim como fez no dia anterior, mas por alguma razão o comentário esperado não sai.
Aparecemos na igreja, a Inaya, o Luai e eu, com uma coroa de flores que ela mandou fazer, linda, com flores brancas com as pétalas longas que diz serem apropriadas para o funeral. Pouso-a ao lado dos vários arranjos das pessoas aqui presentes, todas cuidadosamente colocadas à volta do caixão aberto.
Não a conhecia, aliás, o dia em que a conheci foi o dia em que ela nos deixou. Então deixo que a Inaya e o Luai se aproximem do corpo para se despedirem, tomo o trabalho de colocar as flores no seu devido lugar, e sento-me numa das filas mais afastadas, dando lugar aos familiares e pessoas mais próximas.
Acho que a Inaya toma este momento para se deixar abater, vejo-a chorar quando a sua visão desce para o corpo no caixão.
Está adequadamente vestida com um lindo vestido preto que a aperta em todas as curvas mas sem ser revelador, ao seu lado, o ombro no qual ela chora, o Luai, que veste uma camisa da mesma cor que o seu vestido e umas calças de ganga escuras. Fazem um casal tão bonito, mesmo que a Inaya ainda não tenha admitido que o são, pela maneira como ele a segura realmente parecem muito próximos.
O primeiro sinal é um arrepio que me percorre o corpo.
Tenho uma vozinha na cabeça que me berra para fugir uns segundos antes de o ver entrar na igreja.
Para na entrada, olha em frente, para o caixão que descansa mais em frente, e benze-se.
E depois, exatamente como da outra vez, como se fosse a sua deixa, os seus olhos caem nos meus.
Está tão elegantemente vestido que quase deixo cair o queixo.
De camisa negra para dentro das calças de riscas cinzentas e pretas, e uns sapatos envernizados. Os longos anéis brilhantes prateados continuam na sua mão esquerda, desta vez acompanhados com um relógio da mesma cor. As tatuagens estão ainda mais visíveis do que na última vez que o vi, vejo como elas preenchem o seu pescoço e lhe descem pelo peito, até aos pulsos.
Só em último lugar é que reparo na flor que segura.
É rosa-clara e tem várias pétalas pequenas que parecem redondas, não me lembro de ver igual em nenhum dos arranjos de flores que foram depositados à volta do caixão.
Depois de me transmitir um sorriso enorme e brincalhão, provavelmente para me assustar, começa a sua caminhada até ao caixão.
Se fosse um simples rapaz que conhecesse na rua, ou em qualquer outro lugar, podia dizer que é dos mais atraentes que já vi. Mesmo a maneira como anda é cheia de confiança, sem um pingo de insegurança, de flor na mão, expressão séria e pisadas firmes.
Não parece conhecer ninguém, e as pessoas parecem não o conhecer, pois não cumprimenta as que se amontoam à frente do caixão para se abraçar e chorar, apenas dobra as pernas para pousar a flor e volta a endireitar-se.
Por uns segundos fita o caixão, a senhora Hall, e depois baixa a cabeça, como se estivesse a rezar por ela.
Aquela flor parece tão sozinha, sem amigas como as outras que a rodeiam, no entanto, é a mais bonita delas todas. O rosa quase que parece querer alastrar-se pelas outras flores, criando um ambiente mais bonito e festivo do que a mistura de brancos e amarelos.
— Saudade. — A voz que aparece tão perto do meu ouvido faz-me dar um pulo com o susto. O corpo do rapaz já não está em frente ao caixão e, mesmo que ele tenha acabado de desaparecer, transformando-se em fumo negro, as outras pessoas não lhe dão a mínima importância. Outra prova de que ele só existe na minha cabeça.
Dou-me uns segundos para respirar fundo antes de olhar para o lado, onde sei que ele está. Consigo ver-lhe as pernas longas pela minha visão periférica, sei que está aqui, que passou de lá para aqui num instante.
— O quê? — Pergunto num sussurro, o único tom que parece querer sair da minha boca tomada pelo medo.
Arrisco-me a olhar para os seus olhos?
Não quero que o meu corpo reaja de maneira exagerada quando realmente vir o seu rosto tão perto.
Arrisco.
E o laranja faz-me encolher.
Eu vi as pessoas a olhar para ele, não o cumprimentaram, mas reconheceram a sua presença.
Então porque não estão todos tão chocados quanto eu?
— A flor. — A voz é tão grave que não sei se é o medo a sentir ou não, mas juro que o banco vibra com ele. — Simboliza saudade. — Explica com um sorriso grande, um sorriso lindo, que lhe mostra os dentes brancos e as gengivas acima. Seria fofo se não estivesse com o corpo todo tenso, a pensar se devo simplesmente fugir.
— Vi-te a entrar na casa dela. — Começo com uma coragem que não sabia que tinha. Ele deixa de me encarar, passando a visão para as pessoas à sua frente, distraído, a pensar no que acabei de lhe dizer. — Fizeste-lhe mal?
A reação dele é um riso baixo que mais uma vez, estupidamente, sinto que faz o meu corpo inteiro vibrar.
— Ajudei-a quando ela precisou. Vim prestar os meus sentimentos. — Não respondeu à minha pergunta, isso deixa-me ainda mais nervosa.
Aproveito a sua distração para analisar as tatuagens que tem no pescoço, agora virado para mim, e percebo que são flores.
Flores lindas, diferentes da que ele trouxe, com pétalas pontiagudas rosa e um centro amarelo, à volta das flores estão o que parecem ser nenúfares. Algumas flores estão completamente abertas, como a que está mais perto do queixo, e outras fechadas.
— E essas? O que simbolizam? — A curiosidade leva a melhor. Ele olha para mim novamente para perceber o que quero dizer e eu aponto um dedo trémulo para o seu pescoço. Ele passa a mão que tem os anéis pela pele tatuada, com uma expressão que me diz que se esqueceu que as tinha.
— Tu consegues vê-los, não consegues? — Ignora a minha pergunta completamente, como se aquelas tatuagens fosse um tema a evitar. Levanto a sobrancelha, e concentro-me no laranja que parece brilhar ainda mais. É tão estranho que alguém possa ter uma cor dessas nos olhos, parece lava que me quer derreter, uma explosão que me quer atirar pelos ares. — Os meus olhos. Consegues vê-los. — Explica, e eu só consigo assentir com a cabeça, perguntando-me se isso é algo bom ou não.
Mas se eu consigo vê-los, e ele tem de perguntar, quer dizer que os outros não os conseguem ver?
— O que quer isso dizer? — Ele cruza as pernas e dá de ombros.
— Estás doente? — Pergunta, e eu afundo-me ainda mais no banco, outro abanar de cabeça, agora negando. Que eu saiba não.
Com um longo suspiro, baixa a cabeça e desvia o olhar do meu.
— Quer dizer que vamos encontrar-nos novamente. E que não tens muito tempo.
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