Testemunhas

Não soou como uma ameaça, digo isto não depois de analisar as suas palavras, mas depois de fazê-lo com o seu rosto.

Não havia nenhuma alegria quando me disse que não tinha muito tempo, não existia vontade de me fazer mal, mesmo que aqueles sorrisos mais cedo tivessem dito o contrário.

Não, nesse momento ele estava em baixo, parecia mais humano, o seu suspiro transmitiu-me tristeza, como se estivesse a pensar em maneiras mais gentis de me dizer que não vou durar muito mais.

Percebi imediatamente que falava da minha vida, que me falta pouco tempo para simplesmente deixar de existir.

Queria pergunta-lhe ao que se referia, perguntar-lhe porque parecia tão triste e porque escolheu dizer-me que estou perto de morrer, e claro, como é que tem esses conhecimentos.

Infelizmente não tive tempo sequer de lhe fazer essas perguntas, não se dignou nem um último olhar antes de se transformar em fumo negro e desaparecer sem deixar rasto.

Só reparo que estava de braço esticado, a tentar agarrar-lhe a camisa, para não o deixar fugir, quando a Inaya aparece ao meu lado, a olhar para mim como se visse fantasmas.

Assisti ao funeral, fiquei ao lado de Inaya e confortei-a da igreja até casa. Todo esse tempo com as mãos trémulas, sem prestar atenção ao que for, só a conseguir pensar nas suas palavras, a tentar dar-lhes sentido de todas as maneiras possíveis.

A tentar convencer a cabeça de que ele estava a falar de outra coisa que não a minha morte.

Que, pelo que parece, está a aproximar-se.

Só quando chego a casa, depois de esperar que a Inaya adormeça, e de voltar para o meu quarto, é que chego à conclusão que tenho de o encontrar de novo.

Não conseguirei viver com esta ansiedade para sempre, preciso que ele me diga mais do que "não tens muito tempo".

Então, inconscientemente a roer as unhas até fazer sangue, começo a pensar onde posso encontrá-lo.

A primeira vez que o vi foi nas ruas da cidade, mesmo no centro, na segunda também, enquanto ouvia aquele músico tocar.

Será que ele passa lá muito tempo? Poderá trabalhar por lá?

Se é que trabalha. Se é que é humano.

A vontade de simplesmente me sentar no meio da rua a sondar por uns olhos laranja surge demasiadas vezes, dando-me a entender que estes pensamentos estão a fazer-me desesperar. Porque não foi um louco que me disse essas palavras, foi alguém que já provou ser outra coisa, que mostrou ter poderes que humanos normais não têm.

— És um monstro, Dayan! — O grito esganiçado acorda-me, assusta-me, faz-me ligar a lanterna do telemóvel porque a cabeça jura-me que ouviu o som dentro do meu quarto. Demoro demasiado tempo para perceber que é a voz da Inaya. — Não te perdoo. Sai! — Outro grito, seguido por uma voz masculina baixa, e a resposta dela é sempre mais alta, sem se importar se alguém ouve a discussão deles às... três da madrugada?!

Quando o murro bate no meu lado da parede, levanto-me da cama num pulo.

Sei que não me devo meter, estão a ter uma discussão, mas não sei se aquele som foi agressão ou apenas um descarregar de raiva.

Saio disparada pela porta, e a dela é aberta quase ao mesmo tempo que a minha.

A Inaya sai a correr para longe do seu quarto, com um blusão demasiado grande para o seu corpo, presumo que o casaco seja do rapaz que está lá dentro com ela.

Por uns segundos não sei o que fazer, se corro atrás dela ou deixo que ele o faça, se ela precisa de tempo ou não.

O rapaz não demora muito para sair pela porta, parando na entrada ao ver-me. A minha visão vai diretamente para os nós dos dedos que estão de um vermelho escuro, foi ele que deu o murro à parede.

Depois é que o reconheço.

O músico, o guitarrista que vi tocar ontem e que atraiu uma multidão tão grande com o seu talento.

Agora verdadeiramente de perto consigo analisá-lo melhor, o cabelo castanho despenteado quase que lhe cobre os olhos, usa apenas uns boxers e uma t-shirt branca demasiado apertada para o seu tamanho.

É bem constituído, com braços e pernas musculosas e uma altura considerável, consigo ver que tem o peito tatuado através do tecido branco.

Será que é este o rapaz com quem ela anda? Aquele que ouvi no dia em que conheci a Inaya. Se calhar julguei a sua relação com o Luai muito cedo.

Ele muda a sua expressão de confuso e enfurecido para uma máscara de rapaz assustador que me quer estripar, fá-lo com tanta facilidade que realmente cumpre o seu objetivo.

Por momentos posso jurar que vejo os seus olhos brilhar com a mudança de postura.

— Não tens nada a ver com isto, volta para dentro. — E eu quase que o mando à merda.

Em vez disso, de olhos postos nos seus, pego nas sapatilhas ao lado da porta, calço-as em segundos e sorrio falsamente.

— Se não te vais mexer, eu vou buscá-la. — Se ele ainda não correu atrás dela, não será agora, não vi nenhum sinal de arrependimento ou pressa no seu rosto. Mesmo sem saber de que se tratava a discussão, não vou deixar que ela ande sozinha por aí a esta hora, pode acontecer alguma coisa, e se ele não vai, vou eu.

Fiz bem em vestir uma sweatshirt e umas calças de fato de treino, calculei que a Inaya pudesse sentir-se triste a meio da noite, sair do quarto não seria uma tarefa assim tão difícil, por causa deste pensamento não pareço uma tola de pijama a correr pelas ruas às três da manhã, estou mais ou menos apresentável.

Agora resta saber para onde foi, não deve estar muito longe.

Para a esquerda estão as ruas menos movimentadas, mais escuras, com menos gente, para a direita o seu contrário.

Se ela está a chorar, o que parecia quando passou como um tornado por mim, e provavelmente está com um pijama debaixo do blusão, é provável que não queira ser vista pelas pessoas nos bares.

Viro à esquerda.

Não conheço tão bem esta área, mas faço por dar passos rápidos, com medo de ser roubada, ou pior.

Estas ruas parecem muito mais assustadoras, não existem lojas abertas, têm pouca iluminação, e as casas altas parecem querer engolir-me. À noite as coisas ficam realmente mais intimidantes.

O movimento na minha visão periférica faz-me parar, estou na rua de pedra larga, mas o beco à minha esquerda chama-me à atenção.

Porque é que ela estaria escondida num beco?

Solto um suspiro inconsciente, e tento perceber se é frustração por não ser ela, ou se é alegria por ser ele.

O olhos cor-de-laranja parecem ser a única fonte de luz naquele espaço estreito, está encostado a uma das paredes, com uma perna dobrada sobre ela, descontraído. Já não usa as calças e a camisa do funeral, desta vez veste um fato de treino com um pelo fofo azul-marinho, a combinação com os seus olhos deixa-me hipnotizada.

Com a cabeça encostada, a sua visão que estava virada para o céu estrelado, é redirecionada para o lado, não para o lado onde estou parada, para o outro, onde dois homens saem de uma tasca que parece ainda não ter fechado.

Quero andar em frente, para longe dele, para encontrar a Inaya, porque tenho medo que alguém lhe faça mal, mas por outro lado, ali está ele, o rapaz que me tem dado ansiedade o dia todo com as suas palavras.

Talvez não faça mal pedir para que me explique algumas coisas, ou talvez para que me dê o seu número, se ele deixar que o contacte posso fazer todas as perguntas que estão na minha cabeça.

Ele continua vidrado nos dois homens que param para conversar na rua escura, apenas iluminada com algumas luzes que vêm da tasca. Basta-me andar uns passos na sua direção para sentir o cheiro de vómito e bebidas alcoólicas. Sei que não é uma área onde queira andar, talvez devesse dar meia volta e começar a correr pelas ruas à procura da Inaya.

Decidida, recuo os passos que tinha dado, feliz que ele ainda não tenha notado que aqui estou.

E depois paro com o som alto de vidro a partir.

O homem mais distante de mim pega numa garrafa do que parece cerveja e parte-a contra a parede de pedra, ninguém dentro da tasca dedica tempo para ver se algo se passou, nem mesmo quando, agarrado ao cano da garrafa, a espeta no pescoço do homem à sua frente.

A escolha que tinha feito é imediatamente anulada pelas imagens pouco iluminadas do sangue que espirra para todo o lado.

O homem atacado demora um tempo para responder, chocado, à espera que a dor lhe chegue. Só depois de uns segundos é que leva a mão ao buraco que tem na pele, por onde escorre sangue, tanto sangue que sinto que sou eu a sufocar com ele.

Acho que não é apenas uma maneira do meu corpo reagir, porque sinto que estou mesmo a sufocar com o choque. O som que me sai da garganta é parecido com um grito desesperado e esganiçado que me tira o fôlego.

Os olhos do homem continuam arregalados, pergunto-me como estará a expressão da pessoa ainda de costas para mim, se está tão chocado quanto eu, se realmente gostou do que fez, se gostou de lhe cortar o pescoço, se gostou da maneira como o sangue lhe salpicou a cara, se gostou da sensação de poder ao matar alguém.

Odeio-me quando percebo que estou demasiado perto, o medo não me afastou, a curiosidade puxou-me, estou ao lado do rapaz de olhos cor-de-laranja, o último passo que dou faz com que ele note na minha presença antes do meu grito.

— O que estás a fazer aqui? — A atenção passa do homem que acabou de cair no chão e que faz barulhos terríveis enquanto sufoca com o próprio sangue, cuspindo-o como se fosse demasiado, para o rapaz que se dirige a mim.

Fico ainda mais chocada ao ver a sua expressão serena, a maneira em como tem os braços cruzados, parecendo aborrecido.

— Não vais ajudar? — Quase não consigo deitar as palavras para fora, precisando de algumas tentativas até o som sair da garganta. O atacante mete um joelho no chão, aproximando-se do corpo agora imóvel e passa-lhe a mão pela cara, fechando-lhe os olhos.

Só depois deste gesto é que se levanta novamente e, para minha surpresa, vira-se para trás, para onde estamos.

O homem, que parecia tão calmo quanto o rapaz ao meu lado, agora sim, arregala os olhos. Sabe que vimos tudo, com certeza dá para ler isso no meu rosto, sabe que somos uma ameaça porque podemos relatar tudo à polícia, somos cúmplices.

Estou a falar no plural, mas o rapaz ao meu lado não parece minimamente afetado.

A ideia de que ele seja realmente cúmplice disto, que tenha sido um plano trazer aquele homem para aqui e matá-lo, faz-me querer fugir. Não sei porque ele me assusta e ao mesmo tempo não tive o pensamento de que ele pudesse estar envolvido nisto, o seu aborrecimento, a sua calma, poderia querer significar que sabia que estes homens iam sair daquela tasca, que aquele assassino tinha esse plano, que queria tirar a vida a alguém.

De onde veio esta confiança infundada? É estranha sabendo que ele só soube assustar-me este tempo todo.

— O que estás a fazer nestas ruas a estas horas, miúda? — O homem dirige-se a mim como se não tivesse acabado de cometer um crime hediondo, o rosto barbudo coberto de sangue. — Não sabes que estes sítios não são próprios para crianças? Ainda por cima sozinha. 

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