Professor de Cabeça Quente
Quero levantar-me do assento do bar e segui-lo para onde ele for, admitir que ainda o vejo, que preciso de explicações, sejam quais forem e implorar-lhe para que não fuja novamente.
Estou preparada para o seguir, as pernas quase saltam para fora da cadeira, quando sinto o aperto da Inaya no meu pulso, sentando-me outra vez violentamente.
— Não te cheguei a contar sobre o que a polícia me disse, pois não? — Acho que nem reparou que me estava a levantar, no meio do seu transe sobre o rapaz no palco sentiu necessidade de me tocar para contar o que for.
— A polícia?
— Tentei fazer uma lista das coisas que faltavam na casa. Pelo que sei estava tudo no sítio. — As suas palavras transportam-me para aquela noite, os seus olhos, segui-lo até à casa da senhora Hall, vê-lo entrar, e quando chegamos à casa, ela estava morta. Pensava que podia ser um ladrão, agora nem sei o que ele é. O que parecia um humano é outra coisa qualquer. — Eles conferiram as câmaras das ruas, não viram ninguém entrar para além de nós.
Ela nem se digna a olhar para mim, acho que não me quer mostrar pena, ou que simplesmente foi provado que o que disse não aconteceu. O Karán estava lá, e eu tenho noção de que o vi, mas sei que os outros não o viram, agora sei.
Não sei o que lhe dizer, se devo pedir desculpa, talvez dizer que estava cansada e que podia ter visto mal, ou se devo ficar calada.
Escolho a última opção.
Por muito que não acreditem ele realmente estava lá, naquela noite agi por medo, vi alguém que não sabia que podia desaparecer, tive uma reação normal. Não tenho culpa que ele seja outra coisa completamente diferente.
Estou certa, à minha maneira.
Por isso, quando a sua visão vira para mim, a única coisa que faço é abanar com a cabeça. Dando o assunto como encerrado.
Ele não a magoou, porque ela morreu de causas naturais, não entrou, porque ninguém além de mim o viu.
Então o que foi lá fazer?
Levanto-me, decidida a segui-lo, e os outros imitam o meu movimento, só depois reparo que o Dayan parou de tocar.
Ao tempo que estou aqui parada a olhar para o vazio, a pensar no que tem acontecido nestes dias que não têm explicação, já o Karán se distanciou, nunca o apanharei.
Tenho a maior sorte do mundo quando a Inaya nos arrasta para fora, lá está o Dayan, e ao seu lado, o Karán.
Suponho que as pessoas à minha volta não o vejam, mesmo que use a t-shirt mais vistosa no meio desta multidão toda, verde fluorescente. Vestiu uma camisola de manga comprida por dentro, às riscas brancas e pretas com umas calças pretas. Cada vez que o vejo parece que as roupas foram escolhidas com tanto cuidado, e mesmo assim, faz questão de não aparecer à frente das pessoas.
— Vão indo. Encontramo-nos em casa. — Pede para nos distanciarmos, basicamente para a deixarmos em paz para que possa falar com o rapaz que no dia anterior chamava de monstro. — Não se preocupem, eu fico bem. — Acho que o Luai estava com a mesma expressão que eu, os mesmos pensamentos passaram-lhe pela cabeça, a preocupação de alguém que já a viu mal por causa dele.
Ficamos especados, ponderando se devíamos ir ou se esperamos contra a sua vontade.
Ela quase saltita para o Dayan, a gritar pelo nome para chamar a sua atenção.
Tenho quase um instinto de a chamar quando percebo que vai chocar contra o Karán, até a ver passar literalmente pelo seu corpo para chegar ao seu amor.
Esquivou-se de ter de socializar com ele, mas não escapou do seu grito, porque faz uma careta de dor quando a ouve.
Só saímos do lugar quando a Inaya nos incentiva a ir, começando a conversar com o Dayan.
Sinto-o atrás de mim.
O Luai conversa sobre as aulas, sobre os horários e os professores, mas acho que está mais preocupado com a Inaya, e por isso, tenta não parar de falar para não pensar nisso. E eu vou concordando, vou sorrindo, vou rindo, com o sentimento de que tenho alguém prestes a tocar-me na nuca, com constantes arrepios que me dizem que ele está atrás de nós.
Ouço os seus passos e, de vez em quando, pela minha visão periférica, vejo o verde da sua t-shirt. Não muito longe, nem muito perto, o suficiente para ouvir as nossas conversas.
Porque está atrás de nós? Não devia estar com o Dayan?
Era suposto não o poder ver mais, então porque está aqui?
Preciso de ficar sozinha com ele, preciso de respostas.
— Podes ir subindo Luai, vou ver se a Inaya chega. — Aproveito e paro perto dos degraus que dão para o prédio.
— Ela vai voltar com o rapaz. — Ele suspeita de mim, mas não o vê, pensa que é só preocupação.
— É capaz, mas quero ver se ela chega bem.
— Eu fico contigo. — Abano as mãos, negando a sua oferta, embora tenha boas intenções, quero conversar com ele, e o Luai não pode estar aqui.
— Não espero muito, prometo. Boa noite. — Despacho-o, e faço o meu melhor para abrir um sorriso tranquilizador, talvez se acalme e volte para o seu quarto. Sou bem-sucedida, ele sobe e deixa-me sozinha.
Agora a parte difícil.
— Seguiste-me porque querias ver se chegava bem, ou só querias saber se te vejo? — Sei que o apanho desprevenido, deixo de ouvir a sua respiração, e os seus movimentos pararam, pensava mesmo que não o conseguia ver?
Olho diretamente para ele e encaro os seus olhos, está realmente surpreso, um pé atrás e outro em frente, como se quisesse afastar-se, como se eu fosse algum monstro de quem quer escapar.
— Ainda te vejo, Karán. — Quase rio com a sua expressão, nunca o vi tão descontrolado com a linguagem corporal. Até agora pareceu tão descontraído, tão relaxado e controlado. Aponto para os seus olhos, os que me fitam tão intensamente e parecem mais ofuscantes que a sua t-shirt. — Laranja.
— Merda. — Pragueja. Não sabia mesmo que ainda o conseguia ver, seguiu-me porque estava convencido que já não notava na sua presença, quando eu ouvi cada passo que deu atrás de mim.
— Não posso estar aqui. Não nos podemos encontrar mais. — Murmura, tão baixo que quase não o consigo ouvir. Porque parece cada vez mais assustado?
— Tu é que me seguiste até aqui. — Digo o óbvio, e parece que o enfureço um bocadinho. Tento apaziguar a situação. — Karán, eu só gostava de algumas explicações. Tem sido difícil...— Quero continuar, mas ele vira-me as costas, ignorando o meu pedido.
Como pode querer ir embora depois de me seguir? Não me vai dar uma única palavra depois de tudo o que me mostrou? Depois de todas as noites sem dormir?
Até o corpo sabe que não o deve deixar escapar sem pelo menos uma justificação, corro até ele e agarro-lhe a mão que não tem os anéis, apertando-a com força para que, se ele quiser transformar-se em fumo negro, me levar com ele.
A última coisa que quero é sentir o medo que senti quando ele me transportou, mas faço-o uma vez mais se isso quiser dizer que poderei dormir uma noite inteira.
O Karán olha para as nossas mãos ligadas, de lábios entreabertos, parvo com o meu avanço, e depois para mim.
Está mais que irritado.
Quando abro a boca para explicar as minhas intenções sou interrompida por ele, com a mão que ainda está colada à minha dobra o braço e força-o contra o meu peito, empurrando, fazendo-me recuar. Rapidamente as minhas costas batem contra algo duro e frio, pedra castanha e rugosa que me magoa a pele.
Agora tão perto parece incrivelmente alto, está quase por cima de mim, o seu antebraço sob o meu peito é a única coisa que nos separa, e mesmo assim, o seu rosto está tão perto do meu.
— O que é que tu queres? — Pergunta, as palavras saem de uns lábios que não tinha reparado serem tão rosados e cheios, ele quase que me arreganha os dentes, parece realmente chateado. — Pensas que, porque te salvei, nutres algum tipo de sentimento por mim? — Porque está a falar de sentimentos? É essa a ideia que lhe estou a passar? A minha ideia não foi beijá-lo, não foi abraçá-lo, não foi dizer que o amo de alguma forma, foi apenas para o impedir de desaparecer. — Achas que por não ser humano vais ter algum tipo de romance especial? — Quase cospe as palavras para a minha cara. Ele mantém-me quieta, mantém-me perto, tão perto que não consigo não olhar para o seu rosto. Dos seus olhos quase saltam faíscas, o que fiz para o enfurecer desta maneira? — Queres um monstro para curar? Para mudar? — Sussurra contra a minha pele, e finalmente sobe a sua outra mão para me tocar, o seu dedo toca-me no rosto, o metal do anel frio contra a minha cara faz-me arrepiar. A mão acaricia-me a bochecha, e desce até ao meu pescoço, percorre o meu braço com as pontas pontiagudas, e agarra-me a cintura com força, puxando-me mais. — É isso que tu queres?
— Eu só quero dormir, Karán. — O seu aperto na cintura aumenta. A sua respiração fica cada vez mais acelerada. — Fico a pensar naquele homem que morreu, na senhora Hall, no homem que me queria matar. — Quase não consigo falar, mas esforço-me, contra o medo, contra a força que ele faz contra o meu corpo. Os seus olhos estão fixos nos meus lábios, deixando-me falar, assimilando cada palavra. — Acordo assustada, sempre. Só te peço que me dês algum tipo de explicação que me deixe dormir. — A sua sobrancelha sobe, e o aperto na minha cintura já não está tão forte. — Ajuda-me. — Apercebo-me no segundo em que o pedido sai que já o tinha feito no passado, implorei pelo seu auxílio quando temia pela minha vida, pedi para que ele me levasse para longe, para que não me deixasse morrer.
— O que estás a fazer com ela? — Reconheço a voz da Inaya não muito longe de nós, viu que estávamos juntos, tão próximos como estamos agora, e está a pensar em coisas.
— Ela consegue ver-te? — Sussurro contra o seu rosto, que continua perto do meu, tão perto que os pêlos da minha nuca se eriçam. Porque tenho o coração a bater tão rápido? Será que se tentasse andar, teria forças para o fazer?
— Ainda estás a tocar-me. — Responde no mesmo tom, para que apenas nós possamos ouvir.
A minha mão ainda está enlaçada na dele, e ele ainda me agarra a cintura, o seu braço quase que dá a volta ao meu corpo. Se ele me está a tocar desta maneira, quer dizer que se torna visível? É a primeira vez que a Inaya o está a ver?
O Karán é o primeiro a mover-se, ainda de mão dada com a minha, cessa o aperto que tinha e fica ao meu lado. A Inaya passa os olhos pelas nossas mãos, depois vira a atenção para mim, mais confusa do que alguma vez a vi.
— Estás bem? — Por isso é que continuou de mãos dadas, ela suspeita que ele me queria fazer mal, que me estava a atacar, o que não era muito longe da verdade, estava a intimidar-me.
Abano a cabeça, confirmando que estou bem, sem largar a sua mão, ele com medo que a Inaya entenda mal, e eu com medo que ele fuja e não me dê as verdades que quero.
Ao seu lado está o Dayan, com um sorriso malicioso estampado na cara de idiota. Será que sorri porque sabe que o amigo estava irritado comigo, ou pensa mesmo que nos estávamos a envolver?
Num movimento repentino tenho o braço contra o seu peito, e a sua mão sobre o meu ombro. O que é que ele pensa que está a fazer?
— É o Karán, meu amigo. — O Dayan apresenta-o à Inaya, e eu vejo, em tempo real, um sorriso enorme formar-se no rosto do Karán, um sorriso amigável, tão bonito que os olhos laranja parecem nada ao seu lado. Que cor verá a Inaya em vez do laranja? Castanho, talvez? É o que se ajusta melhor, sem dúvida. Ainda com uma mão a puxar-me para si, usa a outra para cumprimentar a Inaya.
E de um momento para o outro, ela vai de suspeita, para radiante.
— Por isso é que tens andado tão reservada! Andas a namorar. — Quase vomito a bebida que consumi no bar com as palavras dela.
Quero dizer-lhe que nunca fui outra coisa senão reservada.
Quero gritar-lhe que ele acabou de me intimidar.
E quero berrar-lhe que não estou a namorar, por muito que ele me aperte contra si, por muito que tenha um perfume maravilhoso, uns olhos hipnotizantes e esteja a sorrir como um príncipe encantado.
Espero que o Karán negue as suposições, e mais uma vez, para minha surpresa, ouço-o rir. Um riso inocente, com vergonha, parece tão real que quase acredito.
Devo parecer louca a olhar para ele, devo parecer a pessoa mais confusa neste mundo inteiro.
Ela agarra-se ao braço do Dayan e com sorriso gigante acena para nós.
— Vamos deixar os pombinhos. — Puxa pelo Dayan e começam a subir a escada para o prédio. — Não façam muito barulho! Eu moro mesmo ao lado.
Se houvesse um buraco para me esconder já teria saltado para dentro dele.
Só o que ela está a sugerir deixa-me com o estômago às voltas.
O Karán só me larga quando eles saem da nossa vista, ouvindo o riso baixo do Dayan e os comentários felizes da Inaya até desaparecerem pelo prédio.
— Não queria que ela pensasse que te estava a magoar.
— Não desapareças. — O seu pedido de desculpas por me ter agarrado é o menos importante para mim. Quase falo por cima dele, pedindo, mais uma vez, para que ele não se vá embora sem falar comigo.
Ele suspira, tão alto que penso que me vai empurrar contra a parede outra vez.
— Se te disser que ambos estão em paz agora, isso ajuda?
— E tu és capaz de saber isso?
— Faz parte do meu trabalho, sim. — As suas palavras amaciam alguns pensamentos rugosos e pontiagudos que não me deixavam sequer pensar em coisas normais como estudar ou fazer amigos, com a cabeça sempre a levar-me para partes negativas que passei nestes dias.
Ele é alguém que se assegura que as pessoas encontrem paz quando morrem? Foi isso que ele fez com a Senhora Hall e com o homem daquele beco?
Não anula o medo que senti quando o homem me atacou, não apaga todo o terror, mas acalma-me um pouco.
— Ajuda? — Ele repete a pergunta quando vê que estou mergulhada na minha própria cabeça.
Quero fazer-lhe mais perguntas, quero falar mais, poder conversar com ele sem medo, mas a única coisa que consigo fazer é assentir com a cabeça.
E a resposta dá-lhe a permissão para finalmente sair da minha vista, embora seja a última coisa que quero, deixo que o fumo negro o preencha e chegue até mim, carregado pelo vento, até desaparecer.
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