O Rapaz de Olhos Cor-de-laranja

Conheço aquele olhar, consigo perceber quando a luz dos olhos se apaga, quando a alma já saiu do corpo para um lugar possivelmente melhor.

Se há coisa que existe na minha aldeia, são idosos. Funerais não são novidade na minha vida, especialmente num sítio onde toda a gente se conhece.

Isto, de alguma forma, é diferente.

Nas outras vezes a maior parte das mortes não eram surpresa, sabíamos das doenças, das pessoas acamadas, do estado de cada um. Quando alguém morria, já tínhamos feito as nossas despedidas e a surpresa não era tão grande.

Desta vez, ao ver o corpo morto da mulher que nos serviu lanche e histórias de uma vida bem vivida, senti que via um monstro.

Senti vontade de vomitar, de cair de joelhos no chão, de chorar.

Porque sabia que a culpa era minha.

Eu não fui rápida o suficiente, devia ter chamado a polícia, e no pior dos casos teria corrido atrás do rapaz e o impedido. Podia ter feito muito mais, mas não o fiz.

E agora, mesmo que me apeteça fazer tudo para reagir à situação, não me mexo, só consigo sentar-me no sofá onde estava durante a tarde, onde bebia o meu chá, e olhar pela janela, para o sítio onde fiquei parada, e o deixei entrar na casa dela, sem fazer nada.

Deixo que a ambulância chegue, que as pessoas a examinem e se preparem para a levar, e preparo-me para que a polícia entre, para que me façam perguntas sobre o rapaz e de como ele entrou e como a matou.

— Posso falar contigo? — Inaya aproxima-se de mim com cuidado, como se qualquer movimento súbito me pudesse fazer correr para longe. Assinto com a cabeça enquanto a vejo ajoelhar-se à minha frente. — Tens a certeza que o rapaz entrou nesta casa?

Que raio de pergunta é essa?

Sei perfeitamente que casa era, ainda consigo ver a imagem dele a entrar pelo portão, de postura confiante, como se fosse o dono.

— Claro que tenho a certeza, não correria por ti se não tivesse. — A sua cara diz-me que duvida de mim. Há algo que não me está a dizer. — Porquê?

— Os paramédicos dizem que o mais certo é ter sido uma morte natural. O coração simplesmente parou, da velhice.

A minha cabeça pende para o lado, como um cachorro, sem conseguir interpretar as suas palavras.

— Então o que é que ele estava aqui a fazer?

— Pode ter vindo para roubar, posso tentar identificar se algo falta. Mas não há entradas forçadas, e ele não lhe fez mal, provavelmente já estava morta quando chegou.

Não sei o que pensar. A minha cabeça foi para o pior cenário, ela estava viva esta tarde, e quando ele entrou e nós chegamos, estava morta. Não é difícil chegar ao meu raciocínio, não seria errado pensar que ele pode ser uma má pessoa.

Poderia ter sido um ladrão, mas acho estranho um ladrão usar aquelas roupas vistosas para um assalto.

Poderia ter planeado magoar a senhora Hall mas, encontrando-a morta, simplesmente saiu.

Estou tão incrédula que por segundos a ideia de o ter inventado, de ele realmente não existir, passa-me pela cabeça, chamando-me de louca.

Seria plausível, especialmente por estar convencida de que ele tinha olhos cor-de-laranja.

— Vamos ter mais cuidado, não andar sozinhas durante a noite, podia ter-te acontecido alguma coisa. — O tom que ela usa parece completamente diferente do que usou até agora, está em modo de proteção, percebeu que estou transtornada e que preciso de alguma segurança.

Ela não espera que responda, ajuda-me a levantar e agarra-me pela cintura, reparando nas minhas pernas bambas.

Deixamos que as pessoas tratem do corpo, e que contactem os familiares que ainda lhe restam, e caminhamos de novo para o prédio.

Inaya pergunta-me se quero dormir no quarto dela, mas eu nego, acho que me consigo manter inteira por esta noite. Então fica por deitar-me na cama, tirando-me as sapatilhas dos pés antes de se virar para sair.

— Amanhã é o teu primeiro dia, vais precisar de força. — Ela dá-me um sorriso reconfortante, passando o cabelo por um dos caracóis que tenta tapar-lhe a cara. — Queres que te acorde? — Nego com a cabeça ao tentar meter-me debaixo dos lençóis. — Espero que estejas preparada quando bater à porta. Boa noite!

Acredito que quer que vá com ela para a faculdade porque tem medo que fique mal e decida não ir às aulas, acho que quer verificar se está tudo bem, se ultrapassei esta situação toda.

Embora seja difícil livrar-me desta sensação de medo, de ansiedade e de vontade de vomitar o coração, obrigo-me a adormecer, a não pensar naquela casa escura, onde o seu corpo já estava frio.

Onde aquele rapaz entrou, e fez sabe-se lá o quê.

Fecho os olhos com força e, em vez disso, penso em toda a ansiedade que terei ao conhecer a faculdade e as pessoas novas.

Acordo para fugir à imagem de dois olhos laranja brilhantes que me perseguiam por ruas escuras e frias.

Cada vez que chegava aos portões da casa da senhora Hall as minhas pernas travavam, e por muito que quisesse, não conseguia mover-me, obrigada a ver o seu corpo de fato verde-escuro subir os degraus até à porta dela e entrar na sua casa.

Quando a Inaya me bate à porta estou mais que pronta para sair, cortesia dos pesadelos que não me deixaram dormir muito mais e cansaram-me o suficiente para simplesmente ficar acordada até o despertador dizer que tinha de me levantar.

— Estás com um aspeto terrível. — Dou-lhe um sorriso fechado e insatisfeito, vi-me ao espelho, sei que pareço um zombie, com umas olheiras enormes e uma postura que mete medo. — Vamos esperar um pouco. — Pede sem dar mais explicações, ao chegarmos à saída do prédio.

Pelos vistos não temos de esperar muito tempo, um rapaz aparece, descendo pelas escadas.

Como a Inaya, ele tem um sorriso enorme e radiante, daqueles que te puxa a confiança de imediato. Tem a pele morena, e uns olhos verdes-claros maravilhosos, como duas pedras preciosas.

Mal chega passa o braço pelos ombros da Inaya e eu concluo ali mesmo que deve ter sido o rapaz que estava no quarto dela antes, o casal que me fez correr para fora do quarto.

Decido perguntar-lhe mais tarde se estão juntos e não agora, para o caso de não haver algum mal-entendidos, mas parecem próximos.

— Omara, este é o Luai, ele também anda na nossa faculdade. — Faço-lhe um pequeno aceno e sorrio o melhor que consigo para que ele perceba que o rosto assustador que tenho não reflete a imagem que tenho todos os dias.

— Nunca cheguei a perguntar em que curso estavas. — Algo que por muito estranho que pareça, nunca foi tocado, mesmo que estejamos aqui por causa de estudos. Dizer que andamos na mesma faculdade é dizer pouco, visto que este espaço tem várias, todas elas de diferentes áreas. No mesmo recinto, com muitos edifícios para pessoas de gostos diferentes. A Inaya e eu podemos estar em lados completamente opostos de todo aquele espaço.

— Educação. — Ela esclarece, saltando o último degrau com entusiasmo, a partir daí começamos a caminhada não muito longa para a faculdade. Como suspeitava, pelo mapa que vi no site da universidade, estamos literalmente em lados opostos. — Ele está em Criminologia.

— Como eu. — Revelo com alguma surpresa, posso não conhecer o rapaz, mas é bom saber que poderei ter alguém que se perca comigo pelos corredores, não serei uma barata tonta sozinha.

Esse curso foi uma decisão não muito pensada, vindo de alguém que só queria fugir do sítio onde estava.

Não tinha gosto aprofundado por muito mais, pensei em psicologia no início, mas percebi que talvez não tivesse os mecanismos sociais para ter que lidar com assuntos pesados, ou talvez não quisesse entender outra cabeça quando não entendo a minha.

Em vez disso, fiz um pouco de pesquisa sobre este curso que parecia novo para muitos, e percebi que me interessava.

Posso entrar nas forças policiais, como a minha mãe, ou outros trabalhos relacionados com o crime. Talvez assim possa ajudar algumas pessoas, como ela sempre o fez.

Tento não pensar muito nisso, porque acabo por concluir que estou a fazer isto por ela e porque não conseguia pensar em mais nada que encaixasse no meu perfil.

Vou ouvindo as conversas que os dois amigos, ou amantes, vão tendo, rindo quando eles riem, sorrindo quando eles olham para mim em busca de compreensão.

Noto nos olhares de Luai, em como ele vai confirmando se estou realmente ao lado deles, se estou a sorrir. Não me quer deixar de parte.

E continua a fazer este check-up quando nos separamos de Inaya e partimos em busca da primeira aula de muitas que só acabarão para a hora de almoço, e que continuarão com palestras cuja única utilidade é reunir-me com a Inaya, porque são apenas para iniciação.

Não presto muita atenção, porque servem apenas para nos dar as boas vindas, falar sobre os cursos, e sobre a universidade.

Então acabo por estar distraída a conversar com Inaya, que descubro agora que ela não está a tirar a licenciatura, como eu, e sim um mestrado.

A sua altura e disposição tão alegre, por alguma razão, dizia-me que ela era mais nova que eu, pelos vistos não. Ainda assim, sou a mais velha da minha turma, porque só consegui convencer a minha mãe a sair quando já tinha vinte anos, passando os dois anos seguintes a completar dezoito anos a trabalhar numa mercearia perto de casa. Pelo menos permitiu-me juntar dinheiro para pagar as propinas.

Quando saímos da universidade já é hora de jantar, maior parte dos alunos ficaram mais umas horas depois da palestra para confraternizar e, embora não tenha ficado muito tempo, fiquei um pouco mais pela Inaya, que parece fazer amigos com tanta facilidade que fico espantada, a pedido dela, sabendo que ainda estou abalada depois da noite de ontem.

Passamos pelas ruas movimentadas que já se transformaram em mundos mágicos de luzes e festa, cheio de pessoas que aproveitam o ambiente, mesmo a uma segunda-feira o humor é mais que divertido.

Tento absorver os sorrisos, os risos, as luzes que piscam, a música que toca e enchem o espaço com uma alegria festiva.

A Inaya para, a certo momento, porque cismou que tinha de provar uns bolos típicos da cidade, prometeu comprar pelo menos meia dúzia para que possa comer mais que um, porque sabe que vou adorar mesmo que não saiba as minhas preferências.

Espero por ela, aproveitando a atmosfera magnífica que preciso.

Do casal a comer uma taça enorme de gelado à minha esquerda, as crianças que brincam, correndo de um lado para o outro na rua, para o concerto que decorre no café à minha direita.

O sítio está completamente lotado, cada pessoa atenta ao guitarrista sentado no banquinho no pequeno palco rodeado de luzinhas douradas.

Aproximo-me aos poucos, como se as notas que os dedos tocam me puxassem. A música não é mexida, não é o que pensaria ouvir num sítio tão animado, as notas fazem-me querer chorar, apertam-me as entranhas, gritam em tristeza. Não a reconheço, mas consigo sentir a sua mágoa e o seu desespero na maneira como toca.

Ele está completamente dentro da sua cabeça, nota-se que não está neste palco, que neste momento a única coisa que existe para ele é aquela guitarra. Está tão abstraído que não se concentra nas pessoas que o observam, aqueles sentados à sua frente, e os que pararam a meio do passo para o ver, para o ouvir, para o filmar e fotografar.

Os cabelos castanhos caem-lhe pela testa enquanto tomba a cabeça em direção ao instrumento, os olhos repuxados da mesma cor colados nas cordas. Estes só descolam quando a música acaba, com um conjunto de notas que dizem que o final da história que a sua música contava deve ter sido devastador.

Bato palmas, em conjunto com toda a plateia que ele angariou enquanto tocava.

E o meu coração para.

Acho que me saiu do peito e caiu no chão.

Ali, sentado numa das cadeiras da frente, vestindo, desta vez, um fato cor-de-vinho do que me parece veludo, está ele.

O rapaz de olhos cor-de-laranja.

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