O Demónio e a Diabinha

As suas palavras provocam-me uma faísca pelo corpo todo enquanto vejo todas as lâmpadas que iluminavam a rua deserta fundirem.

O seu objetivo era tirar-lhes a visão? A lua mal proporciona luz para conseguir precisar a localização das duas pessoas que me querem raptar. Como poderei escapar se não os vejo?

A visão não é o problema, concluo, quando ouço os gritos.

Começam como sufocos, o ar a escapar do corpo, a querer fugir o mais rápido possível para nunca mais voltar, depois transformam-se em gemidos, pequenos gemidos de dor que aumentam em volume, até se tornarem gritos de desespero.

Estou a gritar com eles, percebo quando tapo o ouvido. Com a outra mão estou à procura do Karán que entretanto se afastou quando se transformou neste bicho-papão de quem até eu quero fugir.

Quero encontrá-lo, não porque tenho medo que eles me levem, mas porque quero que pare, não aguento ouvir este desespero, este medo todo, sinto nas suas vozes que estão a ser torturados.

É o Karán que lhes está a fazer isto? Não pode ser, ele não torturaria alguém assim, não teria poderes para isso, certo? Ele não é um monstro, não poder ser, senão não me salvaria.

Como é que é possível estar tão escuro?

Não consigo ver absolutamente nada, como se estivesse trancada num quarto sem janelas, sem qualquer tipo de luz. Também é ele que está a causar esta escuridão?

— Karán! — Grito, vezes e vezes sem conta, à procura de qualquer silhueta que me diga que ele está perto, à espera que me responda no meio dos gritos horríveis. — Por favor, Karán, para! — A minha voz sai sofrida, volto ao mesmo estado em que estava naquele telhado, quando lhe disse para não fugir de mim, para não me deixar sozinha, voltei à criança que não quer ficar só.

Toco em alguma coisa.

Um toque suave de um tecido fofo, agarro-o e sinto o material envolver-se nos meus dedos, acariciando-os.

Penso ser o seu casaco, embora saiba perfeitamente que a malha não seria tão fofa, e aperto-o. Não sinto o seu corpo, estou a apalpar algo duro, forte, coberto por este pêlo mais fofo que um peluche.

Afasto-me por instinto porque o sinto mexer.

A minha cabeça grita-me para que corra, que é um animal, obviamente.

Mas alguns toques a mais fazem-me chegar a umas costas. Estas coisas enormes que se alastram mais do que o comprimento dos meus braços estão coladas às suas costas.

Agora sim sinto a malha do casaco.

E ele tem asas.

É isso que sinto.

Asas.

Será mesmo o Karán?

Continuo a tocá-lo, agindo contra todos os meus instintos e vozes que berram na minha cabeça para que me afaste, passando as mãos pelas asas, guio-me por elas para dar a volta ao corpo do Karán.

— Afasta-te. — Avisa-me quando sinto a sua mão, fechada em punho com muita, muita força. Talvez devesse seguir o seu conselho, começo a ficar com medo de que ele me faça exatamente o que está a fazer com as duas pessoas que imploram pela vida.

Tento não pensar na imagem de um Karán com um sorriso macabro, umas asas assustadoras abertas nas suas costas e uns olhos negros e, numa tentativa de fazer cessar as súplicas e os gritos de dor enlaço os meus braços pela sua cintura.

Enterro o meu rosto no seu peito, e sinto-o a subir e a descer demasiado rápido, assim como o seu coração que quase salta para fora. Sinto o seu cheiro, o seu calor demasiado intenso para um humano, mas não me deixo abalar, vou fazendo pedidos, altos e baixos, para que faça com isto acabe.

— Karán, chega! — Levanto as mãos e encontro o seu rosto, baixo-o para que ele me encare, mesmo que não o consiga ver. — Por favor. — Imploro uma e outra vez. Soluçando, gemendo com o choro, como uma criança.

Os sons são a coisa mais terrível que já ouvi.

Não quero ver sequer o que lhes está a fazer.

Só quero que chegue a um fim.

Felizmente as minhas preces são respondidas.

A primeira coisa que vejo é a cor laranja.

Os seus olhos são a primeira fonte de luz no meio da escuridão imensa e assustadora. O seu rosto começa a ganhar linhas, as cores parecem cada vez mais vivas, o rosa das suas bochechas e dos seus lábios cheios, o preto das tatuagens que tem no pescoço, o amarelo do seu casaco, o castanho da pedra atrás dele.

As asas que senti desapareceram.

Assim como os olhos negros.

E com eles foi o sorriso.

Está frio, com uma expressão séria que me congela o coração, ou quase me faz vomitá-lo, especialmente quando tenho aqueles olhos a fitar-me desta maneira, como se quisesse saltar-me para cima para arrancar cada pedacinho de pele que tenho no corpo.

Quando consigo ver o ambiente todo, graças às luzes que se acendem novamente, ainda agarrada ao seu rosto, viro o pescoço, procurando pelas duas figuras que me queriam apresentar ao seu "Altíssimo".

Esperava ver uma cena muito parecida com a que vi naquele beco, sangue a inundar o chão, entranhas espalhadas por todo o lado, duas caras de olhos vazios e boca aberta, presos num grito eterno de sofrimento.

Encontro... nada.

Poderá o Karán tê-los mandado para longe, assim como faz consigo mesmo e já fez comigo? Onde estão eles?

Quando viro a minha atenção de novo para ele, de mãos coladas nas suas bochechas, vejo-o rir.

— Estás com medo de mim. — Conclui ao olhar para a minha figura, os gritos que dei para que parasse também devem ter ajudado a chegar a essa conclusão.

— O que lhes fizeste? — Ele sorri para mim, um sorriso aberto e orgulhoso, não deixa mostrar que isto lhe atingiu, quer manter-se frio e brincalhão, mas o seu coração diz-me o contrário, que sentiu.

— Ensinei-lhes uma lição, esperemos que não apareçam tão cedo. — O sorriso continua, desta vez sem mostrar os dentes, mas com o mesmo olhar de convencido. O seu braço passa-me pela cintura, até às costas, e puxa-me para si. — Ficas bonita assim corada, a soluçar, assustada. — Outro expirar parecido com um riso que troça de mim. Porque está a fazer isto? Porque se quer mostrar inatingível? Acabou de me salvar, mais uma vez, acabou de mostrar que consegue fazer coisas terríveis, porque me aproxima e tenta deixar-me com vergonha quando ainda tenho lágrimas a rolar-me dos olhos? — Desculpa. — Pede, agora sério. Os seus dedos, nas minhas costas fazem movimentos calmos. Desde quando se tornou tão confortável com o ter o meu corpo por perto?

— Pelo que fizeste? — Pergunto confusa, não esperando o pedido de desculpas. Suponho que seja porque me fez passar por isto, por ouvir gritos reais de dor, por saber que de alguma forma me traumatizou, deixando-me na escuridão sem apoio, a ouvir esses sons terríveis.

— Porque disse que não nos voltaríamos a ver. E mesmo que tivesse tentado ficar longe, encontraram-te à mesma. — Está a pedir desculpa por me ter metido em perigo, a pedir desculpa por ter ficado longe. — Agora é que fiz merda. — Ri-se de novo.

Está alterado, noto. A falar demasiado, a tocar-me demasiado, a sorrir demasiado. Se calhar, o que fez, pode ter-lhe tirado energia, ou pode causar alguma reação que o deixa neste estado mais... frágil.

Tento afastá-lo, removendo o seu braço do meu corpo, e quando o faço, ele recua um passo e, sem forças para se manter de pé, acaba por cair de rabo no chão.

— Estás bem? — Que pergunta estúpida, é obvio que não está. Sentado no chão com um sorriso parvo na cara, a rir-se como um perdido, com as pernas bambas que não o deixam levantar-se.

— Ótimo. — Responde ao pôr-se de joelhos, depois espalma as mãos no chão e tenta esticar as pernas. Com o rabo no ar, perde-se de novo nas gargalhadas.

— Parecias mais assustador há uns minutos. — Comento, passando as mangas da camisola no rosto, para secar as lágrimas. Faço de tudo para me acalmar, para não pensar no que acabou de acontecer, e ganho coragem para o ajudar. É demasiado estranho estar aqui, com ele, sabendo o que acabou de fazer, do que é capaz. Ainda é mais estranho pensar que o fez para me defender. Devo-lhe auxílio, especialmente quando ele não parece estar no melhor estado mental.

Agarro-lhe no braço, afastando-o do chão, e ajudo-o a esticar a coluna para voltar a ficar de pé.

— Ainda sou. — Responde ofendido, abanando a cabeça como uma criança amuada. Como é que ficou assim? Parece ter bebido demasiado, mas não mostrou sinais de estar bêbado quando chegou à minha beira, o que fez, poderá ter causado isso?

— Sim, demóniozinho. — Tento brincar com a situação, e espero que ele continue com o sorriso parvo que tem feito. Em vez disso levo com um olhar confuso. — Os teus olhos ficaram negros. — Explico.

— Diabinha. — Murmura com uma voz cheia de ácido, como se eu o tivesse insultado. Não é a primeira vez que me chama isso, lembro-me da primeira vez que o vi naquele bar, ele apareceu atrás de mim, disse que nos veríamos novamente e chamou-me de diabinha.

Decido levá-lo para o meu quarto minúsculo, se ele conseguisse ir embora, já o teria feito, mal se consegue manter de pé e está a agir como um drogado, não quero deixá-lo sozinho no meio da rua. Aquelas pessoas poderão aparecer de novo e ele pode não conseguir defender-se desta vez.

— Porque me chamaste isso? No bar. — Acrescento, lembrando-o que já tinha ouvido o apelido antes.

— Porque consigo ler-te. — Responde só quando vamos a meio da escadaria para o meu prédio. Pego no seu braço e atiro-o sobre o meu ombro, passando o meu pela sua cintura numa tentativa de o manter em pé, mas cada passo é um pesadelo. Ele mal se aguenta, e embora magro, é demasiado alto e pesado para eu o carregar como gostaria. Então faço progressos muito lentamente. O facto de ele estar fixado na minha cara em vez de olhar para onde anda não ajuda. — Os teus olhos. — Continua, apontando para a minha cara, de olhos semicerrados.

— E eles dizem-te que sou um diabo? — Paro apenas por uns segundos para poder analisar a sua expressão, está mesmo a dizer que sou má pessoa quando acabou de torturar aquelas pessoas até implorarem por salvação? Se eu sou má, o que é ele?

Ele abana a cabeça, negando.

— Dizem-me que, se escolheres, poderás fazer muito mal. — A sua voz quase que fica sóbria apenas para me dizer isto.

Como é que ele pode saber isso apenas por olhar para mim? Como consegue ler-me desta maneira?

Eu nunca faria mal a ninguém, nunca bati em alguém, nunca andei em lutas, sempre tive medo de confrontações, nem sou capaz de dizer que o meu pedido nos restaurantes está mal, quanto mais fazer mal a alguém?

Entro pelo quarto adentro com o seu corpo por cima do meu quase a tossir com o esforço, ele gosta de falar, mas para ajudar com o peso já é outra coisa.

Com pouco espaço para passarmos os dois pelo corredor que dá ao meu cubículo começo a empurrá-lo para a frente, na esperança que ele se segure o suficiente para cair na cama.

Sou bem-sucedida, deslizando com as mãos nas paredes, acaba por deitar-se no colchão com uma exclamação de alegria.

Infelizmente a cara de sóbrio e sério escapa-lhe para o sorriso enorme e brincalhão voltar.

— São pretos e brilhantes. — Aponta os dois indicadores na direção dos meus olhos e cai na gargalhada.

Onde está o rapaz de há pouco? Onde está o Karán que assusta, foge das perguntas e fica calado e controlado?

— Se os meus olhos dizem isso, o que dizem os teus? — Sinto que estou a tomar conta de um bebé, descalço-o e puxo pelas cobertas para que o possa cobrir. Ele já está confortavelmente deitado, de todo preocupado com o estar no meu quarto, sem nem perguntar se pode dormir aqui, esticado no colchão que mal tem espaço para o comprimento das suas pernas, de braços atrás da cabeça, pronto para adormecer.

— Que estou prestes a explodir. — De olhos fechados, abre um sorriso orgulhoso, uma pessoa que se não soubesse da situação, diria que está feliz, satisfeito.

O tempo que fico a olhar para ele como se fosse louco é o tempo que lhe demora a começar a ressonar.

Há uma razão para serem cor-de-laranja? Para parecerem estar a fumegar, quase a queimar?

Cada resposta que me dá levanta outras vinte perguntas.

Não há como obter explicações com ele.

Não esperava ter um rapaz a dormir no meu quarto hoje, era a última coisa que pensava que podia acontecer, especialmente quando esse rapaz é o Karán. Sinto-me ainda mais conflituosa com os meus pensamentos ao vê-lo desta maneira, descontrolado, cheio de sorrisos tolos como um adolescente apaixonado.

Se me esquecesse do que já vi, do que ele já me mostrou, aquele sorriso seria a coisa mais adorável deste mundo. Mataria quem fosse para ver aquele sorriso mais vezes, para ouvir aquela risada grave deliciosa mais uma vez.

Deixo-me ter estes pensamentos estúpidos porque sei que ninguém me ouve.

Permito-me ser louca agora que ninguém notaria no que a minha mente me está a dizer.

Calada, estendo os poucos cobertores que tenho e faço uma cama improvisada no chão, ao lado da minha, e aproveito que ele me vira as costas para trocar para uma roupa mais confortável à velocidade da luz.

Passo as horas restantes até à hora de dormir a tentar ser silenciosa para não perturbar o rapaz demasiado grande para a minha cama encolhido debaixo dos cobertores. Janto, entretenho-me no telemóvel, estudo, mas o sono e aborrecimento acabam por ganhar.

Por alguma razão adormeço num instante e não demoro as horas do costume. A dor de coração por ouvir aqueles berros, por estar a chorar, por vê-lo alterado, evapora para me deixar descansar.

E eu pergunto-me se é porque ele está aqui. Se é porque me faz sentir mais segura.

Infelizmente o descanso não parece durar muito quando ouço sons de dor tão perto de mim. 

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