O Companheiro do Ceifador

Gatinho para o ponto exato onde ele desapareceu, embora a distância seja mínima, só chego lá depois de uns minutos torturantes com a cabeça a dar voltas e os músculos a não quererem cooperar.

A cada movimento imploro para que ele volte, para que isto não seja uma maneira de prolongar o meu terror, para que não me obrigue a ter que arranjar uma forma de sair daqui.

A cabeça começa imediatamente a fazer planos hipotéticos de como escapar, berrar até a minha garganta não poder mais, saltar para alguma varanda mesmo que assim arriscasse partir alguns ossos, talvez exista uma solução mais rápida e fácil, mas para isso precisava de mandar embora estas tonturas que não me deixam sequer focar a visão.

Sinto a parte de trás da cabeça molhada, de vez em quando, uma gota de sangue escorre-me pela nuca e arrepia-me, mas faço por não pensar muito nisso, com medo de entrar em pânico e desmaiar neste telhado imundo, sozinha, sem ninguém para me ajudar.

Faço os possíveis para me localizar, olhando à minha volta e apenas uma vez para baixo, porque as vertigens quase me fazem vomitar.

Ali está a tasca, onde estava o homem, a um quarteirão de distância, consigo ver o início do beco de onde corri, onde o rapaz estava encostado.

O rapaz, Karán.

É estranho dar um nome ao rapaz de olhos cor-de-laranja. Acho que a minha mente não queria dar-lhe um nome, não queria identificá-lo, talvez quisesse torná-lo mítico, uma criatura mágica que só eu podia ver. Se ele tem um nome não existe só para mim, nem na minha cabeça.

De alguma forma o nome fica-lhe bem.

Quase chego à conclusão de que estou a ficar louca quando, de tanto pensar nele, o vejo.

Ele sai daquele beco, com uma caminhada calma, como se nada tivesse acontecido, como se eu não estivesse a tremer, ou com sangue a cair-me do buraco que tenho na cabeça.

Estava desesperada há uns minutos, como é que ele pode parecer tão relaxado?

O que aconteceu com o homem que me atacou?

Já não está na rua, onde se meteu por cima de mim para me agredir, duvido que tenha voltado para a tasca, ou para o beco, se não o Karán não estaria assim, sem nenhuma preocupação neste mundo.

Penso na possibilidade de se estar a tornar invisível de novo quando noto na pessoa com quem caminha, este está a ser acompanhado com uma mão protetora sobre o seu ombro, como se o Karán o estivesse a livrar de perigo.

Mas o perigo já o apanhou, já o atacou, já lhe rasgou a garganta e deixou-o a sufocar naquela rua numa poça do próprio sangue.

Está ali o homem que morreu, que eu vi morrer, de pé, a sorrir para o Karán.

É como se nada tivesse acontecido.

Como se não tivesse existido discussão, ataque, morte.

O que é que ele fez? Eu não posso estar a imaginar tudo isto, não posso ter inventado a existência de um rapaz com olhos cor-de-laranja que me persegue com um sorriso malicioso, nem com um homicídio, nem com um ataque.

Eu tenho a cabeça a sangrar, isto aconteceu, tudo isto aconteceu. A dor que sinto assegura-me disso.

Então o que está a fazer aquele homem de pé, a andar com um sorriso, quando há uns minutos mal conseguia respirar, de garganta cortada?

Ele morreu.

E o Karán trouxe-o de volta.

Já cheguei à conclusão de que ele não é normal, não é humano, é outra coisa que ainda não compreendo, mas se ele tem este poder, por que deixaria que o homem fosse morto em primeiro lugar?

Ele estava lá, antes de acontecer e enquanto acontecia, então porque não se mexeu? Porque não ajudou se sabia que ia ter este trabalho de o ressuscitar?

Eles desaparecem da minha vista, acompanhados e cheios de sorrisos.

— Não esperava encontrar-te tão cedo. — A voz súbita faz-me saltar, especialmente quando a reconheço e não pertence à pessoa que me pediu para esperar por ele. — Pelo que me dizem, precisas da minha ajuda.

Felizmente já se encontra vestido apropriadamente, não o encontro de boxers e t-shirt. Vestiu umas calças pretas e um casaco de pêlo da mesma cor que quase lhe cai até aos pés.

Tento pôr-me de pé, mas só consigo ficar de joelhos, não me aventuro muito mais quando a cabeça implora que pare.

Ali está ele, não punha os olhos nele há apenas umas horas, se chegou mesmo a passar uma hora sequer, acho que perdi a noção do tempo desde que vi aquele homem cair no chão, de pele cortada, de olhos vazios, sem vida. A partir daí segundos passaram a horas.

— A Inaya? — É a primeira coisa que me vem à mente, não é perguntar como é que ele chegou aqui, como soube que aqui estava, ou o que quer de mim, não, em vez disso pergunto pela pessoa que procurava antes disto tudo ter acontecido.

O rapaz fica a olhar para mim de sobrancelha levantada, acho que também pensou o mesmo que eu, porque não estou a fazer as perguntas óbvias.

Há bocado a Inaya gritava para o ter fora do seu quarto, ao rapaz que tocava tão lindamente guitarra e que chamou tanta gente só para o ouvir, e agora está aqui, neste telhado escuro, a olhar para mim como se quisesse rasgar-me ao meio.

— Não precisei de ir atrás dela. — Dá-me um sorriso fechado, cheio de arrogância. — Ela voltou não muito tempo depois pelo próprio pé, como faz sempre.

Nojento.

Idiota.

— Ela podia ter-se magoado. — Falo entredentes, sentindo a raiva assentar. Quase que sinto o corpo ganhar forças suficientes para levantar, apenas para poder chutar-lhe o estômago.

— Acho que a única pessoa que se magoou foste tu. — Lá estão as palavras destinadas a atacar-me, com um riso irritante logo em seguida.

Neste telhado escuro, a única coisa que o ilumina é a luz da lua, no meio daquelas roupas pretas, daquele casaco peludo que cobre o seu corpo enorme quase que consigo ver um urso, prestes a saltar-me para cima.

— Chegaste mais rápido que eu. — O fumo preto aparece ao meu lado, e num instante sinto uma mão a puxar-me o braço para cima. O Karán está ao meu lado agora, de joelhos, assim como eu, a tentar forçar-me a levantar.

— Se soubesse para o que era, não me tinha apressado. — Outra farpa direta a mim. O que é que este gajo quer? Por que tem de ser assim tão mal-educado?

— Só preciso que a ajudes. — O Karán leva a mão à minha cabeça, tentando sentir exatamente onde estou ferida.

Ao encontrar sinto uma pontada de dor que quase me deixa inconsciente, perco as forças nas pernas e caio de novo no chão. Só não me deito porque ele me ampara a queda.

— O que foste fazer, Karán? — Há algo que o rapaz, tenho a certeza de que ouvi a Inaya dizer o seu nome, mas não me recordo, vê no olhar de Karán. Ele conhece-o bem o suficiente para perceber diferenças na sua voz, ou talvez na sua expressão, sabe que ele fez algo de mal, está preocupado, nervoso. — Diz-me que não fizeste o que penso que fizeste. Ela conseguia ver-te. — O aperto que tenho no braço persiste, fica mais forte, como se estivesse a controlar-se para não responder. Acho que o silêncio diz o bastante, porque o rapaz perde a paciência, soltando um grunhido alto, passa as mãos pelos cabelos e olha para o Karán como se implorasse por ajuda. — Vais arrepender-te disto, Karán, vão castigar-te.

— Eu sei. — A voz do Karán, ao meu lado, parece séria, grave e assustadora.

Olho para o rapaz ajoelhado que me agarra, só agora notando no quanto estamos tão próximos. A quase-queda fez com que me apoiasse nele, estou estendida no chão, sentada apenas porque tenho as costas contra o seu peito, a cabeça apoiada no seu ombro. A sua mão nos meus braços mantém-me firmemente contra o seu corpo.

Embora neste momento, vendo que o rapaz está quase a entrar em erupção, não estranharia se estivesse a agarrar-me com tanta força só para me ter com escudo, para se proteger da explosão que parece ser o rapaz semelhante a um urso preto gigante.

— Ajuda-a, Dayan. Com o resto lido eu. — Pede ao que me parece ser seu amigo, eu vi-os naquele dia, enquanto ele tocava, o Karán observava-o, sentado no meio daquelas pessoas todas, a apreciar o seu talento com uma expressão orgulhosa.

Parecem ser próximos, e o Karán parece ter feito uma coisa terrível, porque o seu amigo está a reagir por ele, nota-se que está assustado, e a sua raiva é a forma de descarregar a preocupação que sente.

O corpo do rapaz mantém-se quieto durante uns segundos, enquanto parece decidir se me deve ajudar ou não. A batalha que tem internamente chega a um fim quando se aproxima, ajoelhando-se ao meu lado.

— Vai doer. — Eles falam ao mesmo tempo, quando o tal Dayan levanta a mão, em direção à minha cabeça.

— O que vais fazer? — Pergunto, de olhos arregalados, a tentar plantar os pés no chão numa tentativa falhada de me arrastar para longe dele.

O aperto do Karán à minha volta piora, por isso é que ele não me deixava mexer.

Olho para cima, para o rapaz que me agarra, pedindo explicações, mas só tenho um olhar severo como resposta, como se fosse algo que tenho de passar, como se fosse obrigatório.

Dayan não me deixar fazer mais perguntas, com uma mão levanta-me a cabeça enquanto a outra pousa na ferida.

Tenho a cabeça a queimar em poucos segundos, sinto a pele arder onde tenho a sua mão, com temperaturas de fogos devastadores a espalhar-se pelo meu corpo.

Começo a ouvir estalidos, cada vez mais altos, como se algo quisesse sair do buraco que tenho na cabeça.

Abro os olhos o tempo suficiente para ver os seus olhos castanhos brilharem, exatamente como os de Karán, aquele brilho que poderia iluminar o caminho a qualquer um, que poderia ser um farol na escuridão. Está concentrado, a arreganhar os dentes, mostrando que, o que quer que esteja a fazer, custa-lhe.

Começo a gritar, berros que acordariam qualquer um num raio de quilómetros.

Sinto dor, dor verdadeira, torturante, agonizante.

A força de repente volta, as pernas tentam arrastar-me para longe de Dayan, as plantas dos pés colam no chão e tentam saltar para longe, mas o Karán controla-me os movimentos, mesmo que estes sejam violentos.

Preciso de fugir dele, de correr para longe da sua mão, deste quente que quer explodir-me as veias, que me quer queimar a pele e transformá-la em cinzas.

Os estalos ficam mais calmos e a sensação fervente vai desaparecendo, o brilho castanho-claro apaga aos poucos, voltando à cor escura verdadeira.

Estou a suar, a chorar, a hiperventilar, sinto que estou prestes a morrer. Não sei como fiquei assim, mas tenho os braços cruzados, de mãos agarradas ao Karán, com as unhas enterradas na sua pele, com tanta força que, quando alívio o meu aperto, ele tem marcas vermelhas.

— Ficas a dever-me uma, chorona. — Dayan provoca uns segundos antes de desaparecer, assim como já vi o Karán fazer.

— Fico a dever-lhe!? — Exclamo, com incredulidade na voz rouca de gritar, ainda sinto ondas de dor a percorrer-me o corpo, como se, de segundos em segundos, se lembrasse que sofreu um trauma.

— Já não estás a sangrar, pois não? — Ele defende-o imediatamente, mesmo depois da maneira como lhe falou.

Sento-me, afastando-me das amarras que eram os seus braços no meu corpo, e levo a mão à cabeça, não encontro a ferida, não encontro dor, nem tonturas.

É como se nada tivesse acontecido.

— Ele curou-me? — Pergunto para um Karán com um meio sorriso estampado na cara. Algo parece estar a preocupá-lo, e sei que é relacionado com o castigo que o Dayan mencionou, ele ajudou-me, porque seria castigado? — Vocês...— A pausa é descontrolada, tiro demasiados segundos para conseguir formular algo inteligente e longo para que ele me responda adequadamente. Mas, no final, no meio de tanto pensamento confuso, acabo com um bloqueio. — O que são vocês?

Já tinha chegado à conclusão de que ele não é normal, a entrar na casa da senhora Hall sem nenhum esforço, consegue esconder-se dos olhos de quem for, mudar de lugar em segundos e, trazer pessoas à vida e, por fim, consegue curar-me, ou o Dayan consegue. Não pensei que esse rapaz estaria envolvido nisto, que conseguisse fazer o mesmo que ele.

Por um motivo estúpido havia algo dentro de mim que dizia que o tinha inventado, que ele vivia na minha cabeça e que mais ninguém o conseguia ver. Mas a Inaya falou com o Dayan, ela sabe da sua existência, e se eles são iguais, quer dizer que existem aqui, no mundo real.

Mas só eu consigo ver os seus olhos cor-de-laranja.

Talvez nem a Inaya consiga ver o brilho nos olhos castanhos do Dayan.

— Posso levar-te a casa? — Ignora a minha pergunta e faz um barulho de esforço quando se levanta do chão, talvez cansado da posição e de fazer força para me segurar.

Começo uma guerra de olhares com o laranja aborrecido e exausto, pedindo silenciosamente que me responda à pergunta, que me explique o que se está a passar, que admita o que é e porque me ajudou.

Acabo por perder quando ele dá uns passos apressados, enlaça o braço pela minha cintura e, de repente, faz o chão cair.

É como se o meu ser deixasse de existir, como se estivesse noutro mundo diferente do meu, onde é mais difícil mexer e respirar, onde o espaço parece imenso, escuro e húmido.

É como cair de um penhasco infinito que nunca te dá um fim.

Até ser devolvida à luz.

O seu aperto à minha volta é firme, mesmo que sinta que estamos em queda livre, não parece ser afetado pela gigantesca escuridão que por segundos nos circunda. Os seus olhos são o único ponto de luz em que me concentro, lembrando-me que não estou sozinha, que tenho algo que me está a segurar e que não me vai deixar cair.

Está a transportar-me, assim como fez quando me trouxe para o telhado, ao poupar-me sofrimento daquele homem e talvez uma morte sangrenta e violenta.

Talvez não tenha notado nesta sensação na altura por causa do meu ferimento, talvez as tonturas não me deixassem sentir esta imensidão assustadora, mas agora que estou bem, sinto-a por completo, e deixa-me com mais medo que aquele homem que me perseguia pelas ruas.

Ainda o tenho contra mim quando a luz volta, quando os meus pés tocam no chão, como se tivesse acabado de dar um pulo.

Estou no prédio, em frente à porta do meu apartamento. Será que o Dayan lhe informou que morava ao lado da Inaya? De que forma saberia para onde me trazer?

Por uns momentos tenho que me habituar à luz, mesmo que tenha sido uma travessia rápida, é como se os meus olhos se tivessem habituado ao escuro e aquele espaço sem fim me tivesse roubado anos de vida.

E só quando estou mais calma é que reparo na força que faço contra as roupas do Karán, na forma como as minhas unhas querem enterrar-se no seu peito, senti medo verdadeiro, e o meu corpo decidiu que ele é a única coisa que me mantém a salvo.

— Karán. — Pronuncio o seu nome e chamo a sua atenção, só aí é que ele larga o meu corpo, parecendo sair de um transe muito parecido com o meu. — O que vai acontecer contigo? — Ele levanta uma sobrancelha confusa e passa as mãos pela roupa azul com marcas dos meus dedos. O seu gesto faz-me reparar na forma que as minhas unhas marcaram a sua pele enquanto o Dayan me curava. — O Dayan...

— Não tens que te preocupar mais com isso.

— Não podes mostrar-me tudo o que me mostraste até agora e dizer que não preciso de me preocupar com isso. Não és humano, eu consigo ver-te.

— Por agora. — Responde, endireitando a coluna, voltando à postura confiante que o vi ter desde o início.

É estranho vê-lo voltar a essa pessoa, quando vi outra completamente diferente quando ele me salvou, os seus olhos pareciam mais derretidos, as suas expressões mais preocupadas, mais nervosas, mais ... humanas.

— O que quer isso dizer?

— Quer dizer que agora que te salvei... Vais deixar de me ver. 

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