Ladra e o Monstro

Deixaram-me todos sozinha.

Costumo sair da faculdade com o Luai ou com a Inaya, há sempre um que me acompanha.

Hoje não tenho ninguém.

Sinto-me uma cria à procura da sua mãezinha, manhã ou noite, só me sinto segura se alguém me acompanhar, não pela segurança, porque acho que o desastre acontece esteja em grupo ou sozinha, mas porque a companhia costuma distrair-me dos caminhos e das ruas.

Agora, a fazer o trajeto de volta a casa parece que só ouço a voz do homem, a berrar por mim, pedindo para que chegue perto dele. Passo as mãos pela cabeça demasiadas vezes, como se estivesse à espera do impacto da garrafa.

As noites tornara-se mais fáceis, por alguma razão que só posso supor ser a resposta do Karán. Não foi a resposta que queria, não houve explicações, não houve uma verdadeira conversa que me ajudasse a enterrar o assunto, mas as suas palavras, de alguma maneira, ajudaram-me a descansar.

Já vi o que ele pode fazer com os meus próprios olhos, por isso quando ele diz que faz parte do seu trabalho certificar-se que as pessoas ficaram bem, fico inclinada em acreditar.

Deu-me um pouco de segurança. E isso deixou-me descansar um bocado.

Foi preciso forçá-lo para me dar apenas umas palavras, foi preciso irritá-lo para o levar a falar. Ainda me lembro da raiva nos seus olhos, da maneira como me agarrou, pensando que sou alguma tola cheia de amores que só o quer ao seu lado para namorar algum tipo de criatura que ainda não consegui identificar.

Não me importa que ele diga que não nos podemos ver, que não posso conhecê-lo, será mais fácil se não o puder ver, talvez assim possa lidar com tudo o que aconteceu. Mas, ao mesmo tempo, agora sei que existem esse tipo de pessoas escondidas no meio dos humanos, como o Dayan, que se finge normal quando pode curar qualquer pessoa.

Este conhecimento não está a assentar bem comigo, saber que eles existem e que eu posso simplesmente cruzar-me com um sem perceber dá-me arrepios.

Quero saber mais, quero conhecer mais sobre o que ele é, e não sobre quem ele é.

Se lhe explicasse isso, será que continuaria a pensar que gosto dele?

Para lhe explicar isso precisava de o ver, e ele já tornou claro o suficiente que não quer estar sequer perto de mim, ao ponto de me pressionar contra a parede para me intimidar. Pensando que me daria algum tipo de medo e que fosse correr na direção oposta.

Embora as suas palavras não fossem as melhores, o que retenho é um olhar brilhante furioso, uns lábios cheios, um corpo alto sobre mim e uma mão a envolver-me.

É verdade, sei que estou a ficar louca, não o conheço, e o que conheço não devia gostar, e mesmo assim, deixa-me mais curiosa que qualquer outra pessoa que se tenha cruzado na minha vida.

Se calhar entendo porque pensou o que pensou, porque me achou uma apaixonada. A maneira como devo olhar para ele deve ser nauseante.

Os pensamentos abundantes ajudam-me a chegar a meio do caminho sem qualquer medo, nem coceira na cabeça. A esta altura já escureceu por completo, as luzes da rua ligaram e iluminam-me o passo.

Um passo sobre paralelo, esquerda, direita, esquerda, direita.

Outro passo sobre areia fina, esquerda, direita... paro.

O único som que havia à minha volta dos meus passos são abafados pelo barulho de água.

Ondas para ser mais precisa, ondas fortes, num mar imenso.

Onde estou?

Tenho a certeza que estava a ir para casa, não mudei o caminho, nem estava tão absorta com os meus pensamentos que acabei por andar quilómetros até ao mar.

Mas, neste momento, estou na praia.

À minha frente está o mar, uma imensidão escura que se move para mim, acima um céu lindo estrelado.

Será uma visão? Algo que a minha cabeça quer criar para pensar que estou a salvo?

Não pode ser, eu consigo cheirar a água, sinto o vento mais forte contra a cara, sinto a areia a entrar-me pelas sapatilhas enquanto afundo nela.

E, de repente, estou de novo na rua escura, rodeada pelas caras que já conheço, no trajeto que sempre faço.

O que é que acabou de acontecer? Estou mesmo louca. Não pode haver outra justificação.

Apresso o passo, não porque acho que haja a possibilidade de estar a ser seguida, mas porque estou prestes a desabar.

Não sei o que se está a passar comigo, com a minha cabeça, desde que cheguei aqui.

Ver o Karán, quando mais ninguém o consegue fazer, passar por um trauma como ser atacada e testemunhar um ato terrível como um assassinato e, agora, estou a alucinar?

Não aguento, nem vou esperar por chegar a casa, dou-me permissão para chorar à vontade, sem me importar se alguém me está a ver.

Está a tornar-se demasiado.

De cabeça baixa e quase a correr, chego à minha rua mais rápido que o normal.

A esta altura os meus soluços não enganam ninguém, amanhã ouvirei um sermão da Inaya quando vir os meus olhos inchados.

Percebo tarde demais o quanto o ambiente mudou.

O silêncio é abafado, como se estivesse a tapar os ouvidos com as mãos, o ar torna-se mais difícil de respirar, e noto na falta de pessoas à minha volta, aqui, tão perto do centro na hora de ponta.

O que se está a passar? Primeiro as visões e agora sinto que vou desmaiar.

— Menina? — Uma voz aparece ao meu lado, tão repentina que dou um salto para o lado oposto. Estou imediatamente na defensiva, sei perfeitamente que mais ninguém estava nesta rua, e eles estão ao meu lado de um segundo para o outro. Serão mais como o Karán?

Nem muito distantes nem muito próximos, o suficiente para me apanhar se decidisse correr, estão uma mulher e um homem, ambos de cabelo molhado, como se tivessem acabado de sair da água, com vestes mínimas de um material que não reconheço e só posso comparar com a fragilidade de um lenço de papel.

— A sua presença foi requerida pelo Altíssimo. — A mulher, de cabelo loiro escuro ainda a pingar, pronuncia-se com uma calma irritante. Não usam sorrisos, apenas uma expressão que me diz que devia levá-los a sério.

— É uma humana, não te vai entender. — Quase agradeço ao homem que deve estar na casa dos quarenta anos, ao seu lado, pela reprimenda. Realmente não entendo e, embora queira concluir que são dois drogados que não dizem coisa com coisa, sei que não são. Isto tem a ver com o Karán, com o facto de ele me ter ajudado, eles falaram de um castigo, será este?

— Como não poderá saber? — A mulher sussurra ao ouvido do homem, esquecendo-se do facto de que fala demasiado alto e eu também tenho ouvidos. — Tem de nos acompanhar, menina, agora. O Senhor espera por si.

— Que Senhor?

— O Senhor não devia esperar no seu trono esburacado, devia levantar as pernas e vir por ele mesmo. — A sua voz é um alívio, literalmente, o meu corpo suspira apenas com a sua chegada. — É assim tão inútil?

As duas pessoas à nossa frente ficam horrivelmente ofendidas com o insulto, punhos cerrados, peitos inchados e olhos perfurantes.

Mas a sua presença é a melhor coisa que podia acontecer neste momento, o Karán aparece a uns metros de distância e caminha para nós do seu jeito próprio e elegante. Intimidante apenas com os maneirismos.

Se não estivesse nesta situação, se não soubesse o que ele consegue fazer, confundia-o com um miúdo novo.

Está confortável hoje, com apenas um casaco de malha aos losangos amarelos e cinzentos que mal lhe cobre o peito coberto com as tatuagens florais que vi no funeral, umas calças de ganga e umas sapatilhas baixas com múltiplas cores.

O estilo colorido nada tem a ver com a expressão que tem no rosto, a cara de alguém que poderá atacar a qualquer momento.

Eles sabem-no, e por isso não ousam dar um passo na sua direção, contentando-se apenas com mostrar o nojo que sentem pelo Karán.

— Se não fosse por ele, nenhum de nós estaria aqui hoje.

— Vocês foram criados para servir, e servir apenas. — Ele aproxima-se da mulher que lhe respondeu, e por segundos, vejo-a encolher com as suas palavras, sabendo que a cada passo ele fica mais perto dela. — Não fales em "nós".

— És um escravo assim como nós. — Ela responde entredentes, claramente furibunda com a conversa.

— Sou um voluntário.

— És um cão com trela, estás a usá-la com orgulho. — O olhar do homem desce para o seu peito coberto de tinta negra, rosa e verde. Está a falar das tatuagens? A que se refere?

— Querem jogar este jogo? Sabendo quem sou? — Ele termina a sessão de insultos, passando a mão repleta de anéis prateados pelo casaco.

Qualquer um veria isso apenas como um movimento normal, talvez arrogante, mas eu vejo que as palavras dele o atingiram.

Será, como o homem diz, uma trela metafórica? Algo que o prende a este mundo? Que lhe dá estes poderes e o leva a assistir a coisas como as que vi naquele beco?

As perguntas surtiram o efeito desejado, estão com medo, isso é óbvio.

— Temos ordens, temos de levar a ladra.

Aquela palavra é pronunciada com tanta raiva que eu quase peço desculpa por algo que nem sei que fiz. Foi como se me chamassem de assassina, como se tivesse sangue nas minhas mãos e fosse a maior psicopata deste planeta.

O que fiz eu para ser chamada de ladra? Se conhecem o Karán, podem ser como ele e virem para nos levar por ele me ter ajudado, mas isso não faz de mim uma ladra, certo?

— Ok. — O Karán interrompe a minha pergunta confusa preparada para quem estivesse disposto a elucidar-me quanto ao facto de estar a ser acusada de roubar o que for. Um e outro passo e ele já se encontra ao meu lado, roçando o seu ombro no meu, encarando as duas figuras que ainda pingam no chão com os braços cruzados.

Analisa-os de cima a baixo e depois, assusta todos os presentes.

O sorriso que mostra é mais aterrorizante que qualquer coisa, completamente torcido, como um verdadeiro assassino, alguém que teria prazer em magoar os outros, e neste caso, as suas presas são este casal que me quer levar para longe.

Infelizmente, o seu sorriso não é o que me tira o ar dos pulmões.

Os olhos laranja, aqueles que vejo desde o início e que me provocaram arrepios tantas vezes tornam-se pretos, completamente pretos sem nenhum rasto de branco que um olho normal teria.

Está... aterrador.

Depois usa uma voz grave que faz os meus pêlos da nuca levantarem:

— Então jogamos nos meus termos. 

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