Carvão
No início não ligo ao barulho, pensando ser fabricado pela minha própria cabeça, demasiado habituada aos pesadelos de pessoas a perseguir-me por ruas escuras e assustadoras e a acordar a gemer desesperada que o sonho acabe.
Por isso, presumo que seja eu a fazer esses sons, a resposta a pensamentos menos bons que me causam medo. Não seria de espantar dormir mal ou ter destes pesadelos quando aqueles berros de dor e súplicas ainda soam nos meus ouvidos, quando ainda me lembro da escuridão das ruas, de procurar pela origem desta dor toda às escuras.
Todo aquele sofrimento que ouvi tinha de se manifestar de alguma maneira.
Mas, desta vez, percebo que não sou eu.
Embora a luz de presença esteja acesa, como sempre está, ligo a lanterna do telemóvel para investigar o barulho. Aponto rapidamente para o rapaz que dorme na minha cama e vejo-o agarrado à barriga.
Levanto-me num pulo ao ver a sua expressão de dor, a cara torcida e os dentes arreganhados, os sons de dor que são demasiados intensos para não me preocupar.
Está com os cabelos colados à testa, descoberto, e de casaco aberto. Vejo a pele tatuada do seu peito, até abaixo das suas costelas, onde o sangue se acumula.
— Karán? — Chamo por ele, sem saber muito bem o que dizer, chocada com a visão ensanguentada das suas mãos a taparem a barriga, na tentativa de parar o sangue de escorrer para o colchão. Um grunhido e um olhar na minha direção diz-me que devia ficar calada.
O meu primeiro instinto, depois de acender as luzes todas, é pegar numa toalha e ficar de joelhos no lado da cama.
— Não te preocupes, já passa. — Diz no meio dos grunhidos de animal, é óbvio que está a sofrer, porque está a fazer passar como se fosse uma coisa simples?
— Como é que te magoaste? — Pergunto quase sem voz, de respiração descontrolada, não estava à espera de acordar a meio da noite para o ver sangrar.
Retiro a sua mão que tapa a ferida e pressiono a toalha onde vejo o sangue, toco delicadamente, na esperança de absorver o sangue e talvez mostrar-me se o buraco é muito profundo.
Estou a ponderar ligar para um hospital, a pensar se saberia dizer em que rua estamos, quando tenho um vislumbre da ferida.
O sangue borbulha, como se ele estivesse tão quente que ferve na sua pele.
Mas, ao pousar a toalha e levantar novamente, puxando o líquido comigo, é que reparo nas linhas negras que se estão a formar.
É o sangue que as desenha, as feridas estão a abrir por vontade própria, criando linhas e figuras, fervilhando para criar cor. Expulsa sangue para mudar a sua pele.
São as tatuagens, percebo quando o sangue deixa de jorrar.
Molho duas toalhas, deixando uma pousada sobre a testa suada de Karán, enquanto ele controla a respiração e aproveita a falta de dor. Com a outra limpo a ferida o melhor que consigo, chegando à conclusão de que não existem buracos para fechar ou curar.
O sangue parou de sair, a pele parece irritada, como estaria depois de uma tatuagem, mas esta não foi feita à máquina, mas sim pelo seu próprio corpo.
É uma flor, como as outras que tem espalhadas pelo pescoço, braços e peito. Esta está aberta, com pétalas pontiagudas rosa-bebé, e um centro amarelo.
— Precisas de alguma coisa? —Pergunto depois de lavar a ferida e deixar a área limpa, não sei se deva desinfetar ou colocar um creme grosso que ajude a curar, mas ele nega com a cabeça. Já está mais calmo, com um braço dobrado sobre a face, a suspirar pesadamente de vez em quando, será que ainda lhe dói?
Tem o peito molhado de suar, nem imagino a dor que estava a passar, porque não me chamou ou acordou? Porque estava a sofrer sozinho no escuro? Talvez pudesse ter chamado o Dayan para o curar, se isto fosse uma ferida.
Não consigo entender o que acabou de acontecer.
— O que significa isto? — Deixo que ele interprete a pergunta como quiser, tanto porque quero saber o significado da flor, como o significado desta situação toda. Porque é que a tatuagem aparece sozinha? Porque é que tem que sofrer?
— Significa que estou mais velho. — Acho que não respondeu a nenhuma das perguntas. A voz que lhe sai da boca é ainda mais grave da que estou acostumada, rouca pelo esforço que fez para não fazer barulho e pelo sofrimento. Tem o casaco sujo com o sangue.
E eu sou a pessoa mais estúpida do mundo por achar a cena sexy.
O rapaz deitado na minha cama, com o casaco aberto para ver o seu peito suado coberto de tatuagens até ao pescoço.
Quero bater na minha testa com muita, muita força.
— Fazes anos? — Esta dor toda simboliza o seu aniversário? — E passas por isto todos os anos? — Aponto para a nova tatuagem que se formou no seu corpo e ele confirma, ainda escondido debaixo do seu braço, sem me encarar. Sento-me no chão, em cima da minha cama improvisada, agarro-me aos joelhos e observo-o. — Quantas tatuagens tens?
— Vinte e cinco.
— Então és cinco anos mais velho que eu. — Concluo, e vejo-o negar.
— Tenho vinte e sete anos. — Abre a boca num sorriso para mostrar uns dentes ensanguentados, teve de aguentar assim tanto para se trincar ao ponto de fazer sangue? Depois espreita pelo braço para olhar para a minha expressão confusa. — Estive vivo dois anos, e estou morto há vinte e cinco.
Morto?
Será que ainda estou a sonhar? Talvez esteja apenas a ouvir coisas. Como é que ele pode estar morto? Está aqui à minha frente, já lhe toquei, e ele a mim, estamos a conversar neste momento.
— Devias ver a tua cara. — Ele ri-se da minha expressão que neste segundo deve ser uma mistura de confusão com choque.
Finalmente tem força suficiente para se sentar na cama, tirar o casaco, reparar no sangue e pousá-lo no chão.
Não consigo fazer-lhe perguntas quando ele acabou de me informar que não está de facto vivo, para além disso, está em tronco nu à minha frente e estou a lutar ao máximo para não corar.
Para esconder as bochechas abro as gavetas de roupa e procuro pela t-shirt maior que tenho, satisfeita por só conseguir dormir com roupas maiores que me deixem confortável. Acabo por lhe oferecer uma t-shirt azul que parece cobri-lo perfeitamente.
— Parece que já estás sóbrio. — Comento, com as perguntas ainda a fervilhar na cabeça, a tentar juntar palavras que peçam uma explicação.
— Exagerei um pouco. — Observo-o enquanto se veste, murmurando o "um pouco" que ele acabou de dizer. Como se o que me mostrou fosse pouco, foi no mínimo assustador, ainda consigo ouvir os gritos à minha volta. — Tinha de assustá-los, sei que vão voltar.
— Chamaram-me ladra. — Karán começa a analisar o espaço a que chamo de casa, não tem muito por onde explorar, mas vejo-o olhar de onde estou sentada, para a secretária cheia de livros, para a mala com coisas por guardar, será que se lembra de aqui chegar? Estava bastante alterado, tive de o arrastar para aqui.
— Roubamos uma morte, prolongamos uma vida. — Este rapaz parece falar sempre em adivinhas, nunca vai direto ao ponto, nunca explica. — Vão castigar-me e acabar o serviço.
Ele levanta-se da cama, e com cuidado tenta não me pisar, para chegar ao lavatório da minúscula casa-de-banho.
— Matar-me. — É isso que ele quer dizer, que devia ter morrido naquele beco, que roubei a morte que devia ser minha e prolonguei a vida que devia ter acabado.
O primeiro instinto é deitar-lhe as culpas para cima, dizer-lhe que não me devia ter salvo, que morreria pelas mãos daquele homem e o serviço estava feito.
Mas eu implorei, agarrei-o e pedi que me salvasse, sei o alívio e a gratidão que senti quando ele me tirou de lá.
Não posso pôr-lhe culpa nenhuma, é graças a ele que estou viva.
Devo-lhe muito.
Não posso deixar que ele seja castigado quando fui eu que lhe pedi que me salvasse.
— Devia entregar-me, certo? Podes culpar-me, podes levar-me a eles, talvez não te castiguem. — O seu corpo fica tenso, estava dobrado para lavar a cara, mas esticou-se ao ouvir as minhas palavras. Parece mais alto, mais intimidante.
Não me responde.
Não sei se fica calado porque está a ponderar a minha oferta, ou se simplesmente a descartou.
Posso berrar para todos os deuses que estiverem a ouvir-me, perguntar porque me queriam morta, porque escolheram aquela data para acabar com a minha existência e a forma como queriam que cessasse. Estava escrito que devia morrer com medo, a fugir de alguém louco que já tinha tirado vidas antes, com sangue a escorrer-me da cabeça, no meio de uma rua escura?
Posso gritar que é injusto e exigir todo o tipo de justificações de quem me criou, mas não posso culpar o Karán de me ajudar quando lhe pedi, não quero que o castiguem por me ter salvo. Ninguém devia sofrer por ter escolhido ajudar, e se estava desenhado que a minha vida devia ter acabado assim, então eu devia aceitar.
— Karán...
— Não vou deixar que vás com eles. - Interrompe a minha insistência para que responda. Vira-me as costas para esticar os cobertores, metendo as toalhas ensanguentadas no lavatório e pendurando o seu casaco na cadeira em frente à secretária. — Eu escolhi agir, tenho que arcar com as consequências.
— E quais são as consequências? Vão bater-te? — Será possível fazer pior do que o que ele lhes fez há umas horas? Poderão torturá-lo.
— Pior. — Transmite-me um sorriso triste e faz um gesto para que me levante. Faço o que ele pede e vejo-o agora ajeitar os cobertores que coloquei no chão, ficaram todos dobrados com o susto que levei ao vê-lo agarrado à barriga. — Vão influenciar-me o futuro.
— Gostas de manter o mistério ou és mesmo teimoso e não gostas de partilhar? — Pergunto enfurecida, nunca elabora, nunca explica. É suposto eu entender o que quer dizer quando não conheço o seu mundo? Acabou de me dizer que está morto, por amor de Deus.
Ouço-o expirar pelo nariz, como se estivesse a fazer troça de mim, enquanto se senta nos cobertores do chão, cruza as pernas e olha para mim.
— Dorme. — Aponta para a minha cama, agora direita, oferecendo o colchão confortável. Escolheu ficar no chão desta vez. — Ainda me sinto fraco, agradeço se me deixares passar aqui o resto da noite. — Pede com um respeito que nunca teve na voz.
— Vais ter de me dar algo em troca, então. — Ele pondera a minha oferta e, depois de um pequeno sorriso, escolhe cobrir-se com os cobertores, voltando à posição que estava, com os braços atrás da cabeça, como se estivesse à espera da conversa. Sabe que o que quero são respostas.
Não desperdiço tempo, apago as luzes, ficando o quarto apenas iluminado com a luz de presença e sento-me na minha cama.
— Que flores são essas? — Aponto para o seu corpo, e lembro-me de como as linhas pretas apareciam e o seu sangue borbulhava.
— Flores de lótus. — A sua mão vai automaticamente para o sítio onde vi formar-se a tatuagem mais recente. — Enraízam na lama, mas sobem para encontrar a água. As plantas florescem durante o dia, submergem e fecham à noite, e fazem isso todos os dias.
— E o que significam? — Pergunto, os seus dedos fazem pequenos círculos na tatuagem cuja pele ainda deve estar irritada.
— O processo dela, todos os dias, a submergir todas as noites na água e, renascer na manhã seguinte limpa, mesmo que tenha as raízes na lama, muitas culturas associam a flor a renascimento.
A voz que usa é calma, com muito, muito sentimentos por trás. Não consigo imaginar sentir aquela dor durante anos, cada vez que fosse o meu aniversário começar a sangrar do pescoço, ou do braço, ou do peito, para ficar com uma marca que nunca sairá.
Está a fazer um esforço para me explicar, será que fez pesquisa sobre isto? Que não sabia o que eram estas marcas quando as teve? As pessoas como ele passam pelo mesmo processo?
— É isso que vai acontecer contigo? — Ele olha para mim, e por apenas uns segundos, vejo os seus olhos brilhar intensamente. Está a passar muita tristeza através daquele laranja. Levanta a sobrancelha, confuso. — Vais submergir, e renascer no dia a seguir? — Um sorriso lindo forma-se nos seus lábios, baixa os olhos, como se este assunto o deixasse envergonhado. — Disseste que estavas morto, vais renascer como a flor?
— Um dia. — Responde, e o seu tom parte-me o coração, a sua voz quase falha, posso jurar que tem as lágrimas a querer escapar. — Já podemos ir dormir?
— Porquê? Não queres ver mais dos meus olhos pretos e brilhantes? — Provoco, e recebo outro sorriso. Está emocional, ver aquele sorriso, mesmo com pouca luz, quase que me faz parar o coração. Como é que uma pessoa pode ter um rosto tão bonito? Acho que se lembra das figuras que fez quando o trouxe para o meu quarto, parecia que tinha abusado da bebida. Desvia o olhar do meu, sem palavras, lembra-se e isso deixa-o ainda mais envergonhado, a imagem é adorável. — Disseste que leste os meus olhos e que viste que poderia fazer muito mal.
— É o que vejo desde o início. — Admite. Isso quer dizer que pensa isso desde o momento em que esbarrou em mim? Que me provocou e olhou da maneira que olhou naquele dia por causa dos meus olhos?
— E não vês isso nas outras pessoas? — O homem daquele beco, que me perseguiu, que praticou um ato tão terrível, devia ser um exemplo. Com certeza leu algo pior nos seus olhos. Quero excluir esta teoria o melhor que conseguir, não consigo aceitar que poderia fazer o mal que fosse, eu sei que não sou má, sei que não faria mal a ninguém. Saber que ele pensa isso de mim deixa-me triste e confusa.
— Eu tenho olhos castanhos. — Confessa. Num suspiro já está sentado, para me encarar melhor. — Tu não vês a minha cor, vês outra coisa, dentro de mim, na minha alma. E eu vejo o mesmo em ti.
— A minha alma é negra. — Não é bem uma pergunta, é mais uma afirmação feita por alguém que está em choque e não compreende.
O Karán curva-se de forma a chegar ao meu colchão, pousa os braços sobre o ele, onde estou sentada e olha para mim.
E, numa voz suave, de olhos cor-de-laranja brilhantes e expressão de alguém perturbado revela:
— Onde as outras pessoas são arco-íris, tu és carvão.
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