36 - Um Novo Inimigo

O lago borbulhava como se fervesse, a água turva não permitia qualquer vislumbre do monstro e menos ainda de Beatrice. Ayla titubeava, apavorada, às margens, demorando-se em despir. E afastou-se quando Saul saltou, resoluto, temerosa de ferir-se ou se queimar, não fazia menor ideia do que produzia a espantosa agitação. Todos os monstros aquáticos saltavam à mente e os corriqueiros sintomas da ansiedade se assinalaram. Suava frio.

As bolhas transformaram-se em ondulações, a água ia e vinha como se sacudida por terremoto. Jatos vaporosos e barulhentos se ergueram e Ayla se afastou ainda mais, ressentida, batia as mãos contra os bolsos a procura de calmantes. Pula, Ayla, pula! Tinha de pular, era sua amiga, não era? Tinha de salvá-la ou ao menos tentar. Pavor, pânico. Nem sabia nadar direito. Como lutaria contra um monstro?

O nevoeiro densificou-se ainda mais, caía sobre o pouco verde do bosque como pano branco e úmido. Não demorou até o local se assemelhar a um pântano, lamacento, frio e desolado. A energia luciférica soprada pelo vento fustigante nos galhos secos e sibilantes os fazia lamentar o horror, louvarem a morte, prenunciarem o fim. O que a impedia? Como vencer o medo? Decidida, deu um passo em direção as águas borbulhantes, e segundos antes de saltar, os braços envolveram a cintura e a derrubou.

Gar a arrastou por poucos metros, distanciando-os da água. Ofegou, aflita. E desesperou-se no momento em que Andras passou por eles numa velocidade sobre-humana. Os movimentos céleres eram precisos e elegantes, e o mergulho se configurou inumano. Desapareceu em instantes no lago turbulento. Sacudiu-se, precisava salvar o amado, saltaria por ele, enfrentaria o medo por ele, lutaria com o que quer que fosse.

— Gar, me solta!

— Devemos ficar longe desse lago, Ayla.

— Por quê? E Bia?

— Andras vai conseguir resgatá-la. Se acalma.

Saul saiu do lago, ensanguentado, com ferimentos mortais, cortes profundos e compridos, como se tivesse sido esfaqueado. O cabelo grudado à face agonizante misturava-se a sangue e lodo. Fitou Gar com tristeza embora os olhos flamejavam numa luz avermelhada e intensa, infernal. Rosnou e os lumes arderam ainda mais. Estava furioso.

— Espero que minha senhora me perdoe, mas ele é forte demais para mim, senhor.

— É quem estou pensando?

— É Levi, senhor.

Coberto por lodo e plantas aquáticas o corpo de Beatrice emergiu, arremessado por Andras para a margem. O semblante pálido e levemente arroxeado, parcialmente encoberto pela vegetação, causou angústia. Desejou tocá-la. Morta ou desacordada?

— Afastem-se do lago! — ordenou Andras, ao se erguer na margem.

Tomou Beatrice nos braços e correram por curto trecho. Andras entregou Bia para Saul.

— Use sua forma e força demoníaca e leve-a para dentro da casa o mais rápido que puder.

— Senhor? — Defrontou Gar, o qual consentiu e seguiu o demônio de estimação.

Andras tomou sua mão. Gesticulou e falou algumas palavras ininteligíveis. Criou-se uma bolha transparente ao redor.

— Não toque em nada ou quebrará o escudo de proteção.

Ayla entendeu a ordem ao notar que os ramos trespassavam o círculo como se fosse insubstancial. Gelou de puro horror ao que a água bateu contra a parede invisível e protetora, ora como jorros de água, ora como nuvens densas, o que provocava uma vibração luminosa. O braço de Andras em torno da cintura produzia certa sensação de segurança. Podia contar com as habilidades dele, não podia? Pois, Gar e Saul há muito desapareceram em meio a mata. Tão assustada estava que não sabia dizer sobre o paradeiro do namorado de Beatrice, se lutava contra o demônio do lago, ou se tomara outro caminho, não tinha a menor ideia. A trilha como túnel verde parecia bem mais longa, ou o medo assim a fazia julgar. E desoprimiu-se de imediato ao alcançar a estrada, pois os ataques pararam repentinamente.

Saul estava debruçado no porta-malas do carro de Gar. Ayla correu casa adentro. Beatrice, arroxeada e desacordada, estava estirada no centro da sala. Debruçado sobre ela, Gar fazia respiração boca a boca, aflito. Não seria melhor colocar um colchão ou algo macio sob a bruxa afogada? Competia o espaço com os cacos das vidraças e da louça, e Ayla questionava se Saul e o namorado foram cautelosos o bastante para verificar o piso antes de deitá-la, pois o semblante de desespero e pânico de Gar fazia questionar sua capacidade de raciocínio.

— Reage, amor, reage — repetia, massageando o peito de Bia.

Não, Bia não podia morrer. Ayla ajoelhou-se ao lado dela aos prantos enquanto Andras mais preocupado com o que estava ao lado de fora, desenhava símbolos místicos no ar diante das janelas desprotegidas, destruídas por Beatrice na noite anterior. A calmaria, a névoa cintilante sob os raios pálidos da manhã, era surreal, como se tudo e nada estivesse acontecendo em simultâneo.

— Andras exorcize a água. Ela não vai sair dos pulmões dela sem exorcismo — pediu Gar, agoniado.

Andras se curvou sobre Beatrice e desenhou símbolos com o indicador e anelar, falava o encantamento numa língua desconhecida. Gar não era ocultista também? Um Mestiço? Por que Andras e não ele tinha de exorcizar a água? Estava enciumada, ridiculamente enciumada. Santo Deus! O que havia com ela?

Quando Andras terminou o pequeno ritual de exorcismo, Gar tornou a massagear o peito e fazer respiração boca a boca. Bia finalmente tossiu. Cuspiu a água que se espalhou ao redor da cabeça dela. E como algo vivo, as gotas separadas correram de um lado a outro, desprendendo-se do corpo de Beatrice escorreram para a poça maior e ao juntar-se transformaram-se num diminuto corpo aquoso, abandonou a casa como serpente d'água, uma ondina, ou que diabos aquela coisa pudesse ser.

— Santo Deus! O que é isso?

Gar tomou Beatrice nos braços e subiu a escada em direção ao quarto. Saul os acompanhou. Andras adentrou e saiu do porão. Rente ao rodapé, despejou primeiro o mercúrio líquido, reverberando a litania numa língua morta e incompreensível. Em seguida despejou o enxofre sobre o líquido prateado, a litania embora ininteligível, soava como uma canção, sibilava as palavras, airosas. Hipnótica a voz assemelhava-se ao som de uma flauta transversal.

— A terra tem a mesma natureza do sal, se dissolve e coagula na água. Levi, não pode invadir meu domínio, nem avançar sobre nós como inimigo. O que quer com Beatrice?

Andras falava como se algo além dos dois estivesse no cômodo embora os olhos estivessem fitos no bosque do outro lado da estrada. Cantou outra vez, a mesma canção.

— Devemos ficar juntos. — Andras tomou a mão dela e correram para o quarto.

Beatrice desmaiara ou dormia? Abandonada nos braços de Gar, inerte, aparentava uma boneca de pano. O namorado puxou a manta branca e felpuda, cobrindo-a e sussurrou, inaudíveis e confusas eram as palavras. Fazia magia como Andras? Pois, ou estava afetada demais com a magia densificada no ar, capaz de fazer alucinar com minúsculos relâmpagos azulados, feito estática, ou Gar envolvia Beatrice com uma luminosidade amarelada tal qual fogo místico. Acariciava a amada, entristecido.

— A magia dele a está congelando, Andras — falou, preocupado. — A respiração está tão fraca que temo perdê-la.

— Saul traga o colchão da cama do outro quarto — ordenou Andras.

O demônio de Beatrice somente obedeceu após o consentimento de Gar.

— Por que precisa do colchão? — perguntou Ayla.

— Reduzirei nossa proteção a esse quarto. Não desistirá tão cedo, quer Beatrice a qualquer custo — respondeu Andras. E fez ritual similar com o mercúrio e enxofre no quarto.

— Então Levi decidiu-se por um lado? — indagou Gar.

— Aparentemente. Não sei o que quer — Andras suspirou.

— Posso saber do que vocês estão falando? O que está acontecendo? — questionou Ayla.

— O que você acha que pegou Bia no bosque? — perguntou Gar, irritadiço.

— Um demônio.

— Então você sabe o que está acontecendo. Não deve ser novidade para você.

Rude como jamais fora. Ressentiu-se com o tom áspero e agressivo de Gar. Contudo, lançava um olhar penoso para Beatrice, sofria, preocupava-se. Aproximou-se do casal. A bruxa adormecida assemelhava-se a um defunto. Esticou o braço para tocá-la, mas sem querer tocou a mão de Gar repousada sobre a cabeça da bruxa esmorecida. Estava quente, impossivelmente quente, como óleo fervente.

— Isso é impossível! Você é um demônio! — berrou Ayla, assustada e incrédula, e afastou-se.

— Ayla? — Andras se voltou para ela.

— Gar está tão quente quanto um vulcão!

— Você está louca! — exclamou Gar. Estendeu a mão e tocou Ayla.

Não, não estava quente. Tinha a temperatura de um humano normal. Quis chorar. Odiava ser chamada de louca. Detestava a situação. Beatrice estava sempre enrascada, machucada, ferida. Geralmente alguém desejava ou sua morte, ou seu colar. Estava cansada da bruxa divinizada. Beliscou-se repetidas vezes. Sonhava. Tinha de ser um sonho. Abominava o ciúme, o sentimento de inferioridade, a sensação de não ser importante para ninguém.

Andras tocou a mão dela com delicadeza, evitando que se beliscasse outra vez e a envolveu em seu abraço. O vento uivava, tornava-se cada vez mais furioso, as janelas vibravam, as copas surradas impiedosamente mantinham um zunido constante. Estilhaços e destroços alçavam sob a fúria da tempestade e batiam estrondosos contra as paredes da casa. E o perfume, delicioso, o peito desnudado de Andras, morno, os braços, um abrigo inviolável e confortável. Envolvia-a numa falsa calmaria, como se a mantivesse no olho do furacão, silenciando o horror o qual os rodeava. Preocupava-se com seu bem-estar, ou não estaria a acalentando em vez de vestir uma roupa seca.

— Minha magia será capaz de nos proteger se ficarmos nesse quarto juntos — disse Andras.

Apoiou a cabeça no ombro dele. Saul estava encolhido no canto do quarto como um cão. Ferido e tristonho, mirava a janela. O dia virara noite, escuro, barulhento, ameaçador. E o demônio de estimação ainda sangrava, o corpo diminuía, secava como fruta ao forno, sem frescor ou vitalidade. Morria? A roupa rasgada estava enlameada e ensopada pelo sangue escuro.

Livrou-se dos braços do amado e aproximou-se da janela. A chuva torrencial derramava-se como uma cortina densa e cintilante. Os relâmpagos caíam aos milhares, brancos, vermelhos e azuis, provocava clarões simultâneos os quais criaram uma luminosidade oscilante e perene. Os trovões compunham a sinfonia horrenda, um mais estrondoso do que outro se sobrepunham e sacudiam a casa de tal modo a ponto de imaginar o momento em que ruiria sob a fúria tempestuosa. A energia era hostil, ameaçadora, apocalíptica. E ao mesmo tempo familiar. Tão delicadamente íntima que não a assustava quanto deveria.

Entretanto, o ambiente interno não passava sensação similar, ao contrário, o recinto transmitia insegurança, a sensação de que algo terrível estava prestes a acontecer. Ressabiada, sentou-se no colchão no chão. A tempestade ensurdecedora não suplantava o som de passos no corredor. O que a enlouquecia, pois podia ouvir os sons dentro e fora da casa. Estavam cercados, seres demoníacos caminhavam pelos outros cômodos, batiam à porta, arranhavam as paredes, guinchavam, estridentes e medonhos. Como se todas as feras vagassem pelo lugar, famintas e obstinadas. A porta de madeira escura fremia como tudo o mais, contudo, tensa, aguardava ao momento em que os seres do outro lado a derrubassem, pois, a invasão parecia iminente.

Estava prestes a colapsar. O medo, as incertezas, a sensação obscura de que Andras e Gar eram tão perigosos quanto o inimigo poderoso o qual os encurralava. A conversa com Beatrice. Teria razão? Estava, de fato, protegendo Andras? A paixão e a vontade de ficar ao lado dele a cegavam? Gar deitou a bruxa hipócrita na cama, a cobriu e aninhou-se nela. Estavam apaixonados. Beatrice o amava. Como se sentia no direito de refreá-la e julgá-la como fizera? Gar beijava ao semblante lívido e esmorecido com devoção, acarinhava-a, sibilava no ouvido dela como se aninhasse um bebê. Não, Bia não tinha o direito de tolhê-la.

— Por que Bia não acorda? — perguntou, aflita.

— Está sob feitiço, Ayla — respondeu Saul, solícito. — Levi não demonstrou ter por intenção matá-la ao inserir o elemental nela, talvez quisesse mantê-la viva em seu habitat aquático.

— Água?

— Sim. Levi é Leviatã.

Queria pensar e falar sobre qualquer coisa, menos numa serpente marinha gigante e tenebrosa de poder colossal precipitando-se com intensidade e resolução sobre eles. Ayla, apreensiva, deitou-se. As imagens se criavam em sua mente, desenhavam a possível paisagem do que se passava no exterior. Morreriam? A magia de Andras os protegeria? Seco e agasalhado, deitou-se ao seu lado e os braços cálidos dele a envolveu, transmitindo uma frágil sensação de segurança. Como se envolta na bolha mágica outra vez, a calmaria inundou o âmago. A protegia como prometeu. A tranquilidade singular a ajudou a adormecer.



Bạn đang đọc truyện trên: AzTruyen.Top