35 - Água
Com os braços descansando sobre o teto úmido do carro, Beatrice relaxava sob a massagem a qual Gar fazia nos ombros tensos. Não disse nada sobre o encontro com Matteo. Nem o verde abundante da paisagem acalmava a cabeça que fervilhava, desejava saber os motivos dos Pavlov, apesar de não conseguir perdoá-los da indiferença pela morte de Olin, não podia se apressar em julgá-los se mantinham o tal do Abraxas com eles, um possível aliado, tornava-se óbvio que havia motivo por detrás do sumiço abrupto. E aliados eram bem-vindos em especial no momento em que sua lista de contatos e amigos diminuía vertiginosamente e fugia dos Nigba.
O sonho da noite anterior a deixava tão inquieta quanto o portal aberto no dia anterior e o aviso de Matteo de que outros a encontrariam. O nevoeiro banhando ao bosque desfolhado pelas mãos gélidas do inverno enchia a manhã de uma tensão desconfortável. E não era a única, Saul e Gar estavam sobressaltados, era como se milhares de olhos invisíveis os espreitassem desde a neblina.
Não tinha como saber se era mesmo a aparência de seu pai, todavia sempre tinha a mesma fisionomia quando surgia em seus sonhos. O cabelo curto e negro repicado a cobrir parcialmente os olhos tão cinzentos quanto o nevoeiro, traços semelhantes aos seus próprios, sedutor e risonho. Sempre carregava uma espada longa, dela emanava pálida luz cintilante e branca e não importava em qual ambiente estavam, sempre haveria de ver uma frutífera ou um cesto com frutos. A instruiu como usar o Bastão de Salomão em combinação com o colar para abrir o portal e encontrá-lo. O problema seria ter o bastão consigo para usá-lo.
Sim, o sonho a deixara sentimental, triste até. A saudade do lar que nunca existiu e a corriqueira sensação de não haver lugar no mundo para si. Virou-se e acarinhou o maxilar de Gar, perdendo-se na umidade do beijo, queria confiar, aspirava torná-lo seu lar como fez com Olin e Bel. E não podia contar com aquilo. Não sabiam nada um sobre o outro. O sentimento caloroso e agradável não era capaz de apagar a desconfiança.
Sem aviso Ayla a roubou dos braços de Gar e envolveu num abraço suave e com aroma adocicado do perfume floral. Ridículo como Andras se curvou diante dela, entregando uma pasta plástica. Dentro o chumaço de papel, com clausulas infinitas que passavam a propriedade para o nome dela. Um ótimo dia para drama, claro.
— Bia, preciso que você fique — Ayla choramingou.
Do outro lado da estrada o bosque captava sua atenção, a sensação incômoda de ser observada a inquietava. Teria outro ser atravessado o portal? E estaria inclinado a servi-la como Saul?
— Eu sinto muito, Bia. Por todas as bobeiras que lhe disse ontem. Por isso, como amostra de minha boa intenção, te dou essa casa.
— Aceite, Bia, por favor — implorou Ayla.
— Ajoelhe-se, Andras — Beatrice ordenou.
— O que? — Andras a focou num misto de ódio e incredulidade.
— Veja a minha cara de misericordioso Jesus Cristo. — Beatrice arqueou a sobrancelha.
— Bia, por quê? Não há a menor necessidade de humilhá-lo.
Ayla estava apaixonada pelo traste, e nada poderia ser pior. Não sabiam nada a respeito deles e a julgar pelo item precioso de Gar, era ingenuidade submeterem-se a proteção oferecida. Saber dos aliados dava novas opções. Se ao menos soubesse onde estava Pietro, não ficaria torrando os neurônios para descobrir a melhor forma de retornar para Santa Fé. Assinou a papelada e jogou a pasta aos pés de Andras.
— Não é assim que vamos resolver as coisas pacificamente, Bia. — Ayla estava irritada.
— Eu vim para saber se você estava brava comigo. Sentiu ódio de mim ontem, porque eu fiz o ritual e trouxe Saul. Eu respiro caos, faço todo mundo infeliz, minha mãe sempre fez questão de me lembrar disso. E sabe o que é pior? Eu nunca tive a menor intenção. — Deu de ombros.
— Você está chateada. O que aconteceu? Gar te fez alguma coisa?
— Eu não fiz nada não! — protestou Gar.
— Quer andar um pouco no bosque, só nós duas?
Bia concordou em caminhar com Ayla e ordenou Saul a segui-las. Atravessaram a estrada e infiltraram-se na mata. Atentava-se ao sacudir da ramagem, quanto mais se aprofundava, seguindo pela trilha, mais a paranoia crescia. Sensato afigurava-se retirar-se do bosque, contudo o portal aberto a incomodava, o alerta de Matteo sobre a possibilidade de ser encontrada a motivava a continuar e fechar o maldito portal.
— Está tudo errado. Não devia se apaixonar por Andras — falou atenta aos estalares de galhos e folhas secos.
— Quem é você para me dizer isso? Está apaixonada por Gar.
— Estou, o que é um erro também. A diferença é que não estou o defendendo como fez com Andras. Protegê-lo, Ayla? É isso mesmo? Nem sabemos o que esses caras querem. Não podemos ficar estúpidas só porque essa coisa aconteceu com a gente.
— Isso não é uma coisa, Bia, é amor. Que está bem banalizado nos dias de hoje.
— Grande bosta o amor. E não estou discutindo amor, estou discutindo que estamos confiando em pessoas que talvez não devêssemos.
— Talvez eles não sejam um perigo. Eles estão nos ajudando, Bia. Vai me dizer que você não confia no que Gar sente por você?
Bia a firmou sem responder.
— Bia... Eu não sei o que está acontecendo com você e com eles. Porém, eu estou envolvida mais do que deveria, admito. Acho que de alguma forma maluca é possível que os dois possam nos proteger. Até que a gente consiga entender essa confusão. Admito que estou apaixonada por ele. E não quero que você fique longe de mim. Pode ser egoísmo da minha parte, mas, estou sendo sincera com você.
— Eu posso entender isso — disse Bia, abaixou-se para pegar um galho. — Também sinto meu peito doer quando penso em ficar longe de Gar. Por isso que não gosto do amor, pois quando chega a hora em que algo tem que ser feito, a ação é sempre penosa. E eu não gosto de dor.
Saul transformou-se numa nuvem negra com tentáculos enfumaçados e, veloz, sumiu entre o arvoredo. Estava a protegendo? Beatrice seguiu o rastro do demônio de estimação com Ayla em seu encalço. Não, não era um bom sinal, ainda mais depois de promovê-lo a guarda-costas.
Encontrou Saul debruçado sobre um Djinn de forma humana com as mãos similares a patas de gato. Segurava uma cimitarra de bronze, banhada por um líquido grosso, viscoso e negro como piche. Beatrice tocou a gosma negra e friccionou entre os dedos. Sangue de sobrenatural, mas qual?
— Saul, o que foi isso?
— Ele era uma ameaça a sua presença, minha senhora.
— Saul, lembra que eu e Gar lhe dizemos hoje pela manhã? Já me enjoei do protocolo, pode me chamar de Bia, sem títulos ou qualquer loucura infernal do tipo.
— Sim, minha senhora... Bia.
Abriu a boca para ordená-lo a investigar o bosque, entretanto não houve tempo. Algo enlaçou o pé e caiu de cara no chão, a boca se encheu de uma mistura horrorosa de sangue e terra, e a ardência se espalhou no abdômen, arrastada numa velocidade vertiginosa, tentava se agarrar em galhos e raízes, no entanto, fosse o que fosse o que a puxava, tinha tanta força que se segurar era impossível.
Nem saberia descrever como conseguiu ouvir o ruído da água próxima, com o ruidoso farfalhar das folhas pela passagem de seu corpo. Agarrou-se a uma raiz exposta de uma árvore e conseguiu se segurar por um momento. As unhas sangravam e doíam com a quantidade de terra acumulada debaixo delas. Era poderoso demais e as mãos fraquejaram. Sabia ser o esforço em vão. Estava fodida de novo. Por que não ouviu a intuição e deu o fora da cidadezinha ao acordar? Os gritos de Ayla reverberavam, chamava seu nome, todavia perdera o senso de direção, não sabia o quão longe a amiga estava.
E num instante ensopou-se, a água inundou os ouvidos e bolhas de ar escaparam de seu nariz. O verde do lago sufocava-a, a luminosidade na superfície ficava cada vez mais distante. Afundava como se amarrada a uma tonelada de rochas. Lutava e esforçava-se em vão. Encurvou-se e apalpou a pressão do enlaço no calcanhar, e, no entanto, não havia nada amarrado em sua perna. A agonia, precisava de ar e o corpo entrou no automático. Se aspirasse, a água entraria nos pulmões.
O peito se contraiu, alarmante, desesperador, doía. O corpo não desejava por ar, necessitava e muito. E não pôde mais lutar contra o instinto de sobrevivência, a boca se abriu, involuntária, e aspirou. A garganta se fechou e desesperou-se. Estava morrendo. Ar, só precisava de um pouco de ar, e em vez disso, afundava cada vez mais e a luz cristalina da superfície do lago foi substituída pela água lamacenta. Não daquele jeito, não queria morrer de forma tão angustiante. Desejoso de protegê-la, o cérebro a desligou e caiu inconsciente.
Bạn đang đọc truyện trên: AzTruyen.Top