29 - Nosso Lar
O sobrado era pequeno embora aconchegante e sossegado. Sentada no balanço da varanda, Ayla questionava onde estariam Gar e Beatrice, pois deixaram a cidade antes deles e, no entanto, estava abrigada há dois dias e nenhum sinal de ambos. E se Andras tivesse mentido? Estava sem celular e não tinha como confirmar.
Embora conhecesse desde os ossos as loucuras do amor, quiçá Bia não tivesse perdoado Gar pelo que fez. Andras sabia o quanto se apegou a bruxa tarada e aceitaria viajar com ele se Beatrice também concordasse. O bosque subia e descia no terreno declivoso e a casa mais próxima devia estar a cerca de um quilômetro de distância.
E apesar do desconforto da incerteza, não podia reclamar. Apertou o xale jogado nos ombros, o sol dava seu espetáculo ao cristalizar a neblina a qual subia do vale verde e profundo. E o quintal tinha espaço suficiente para um playground e os sonhos escorreram em momentos felizes em família, aquela à qual desejava formar com Andras em seus desvarios. A casa tinha dois quartos no andar superior, a sala ampla dividida em ambientes, copa e cozinha, espaçosa o bastante para acomodá-los bem e permitir certa privacidade.
E o som do motor na rodovia curvilínea a fez levantar-se da cadeira. Arrastou os pés no piso de madeira e curvou-se sobre a balaustrada da varanda. O automóvel estacionou ao lado do carro de Andras. E o barulho, bem conhecido, como um tornado numa cidade grande, encheu a mansa manhã de Beatrice. O porta-malas se abriu e o casal saltou do carro.
— Bia, não é justo que eu carregue tudo isso não!
— Gar, você é minha propriedade, lembra?
— Era só aquela noite, Bia. Não disse que seria para o resto da eternidade não.
— Por que demoraram tanto? — Ayla saltou entre eles.
— Porque Bia achou que tínhamos que trazer a cidade conosco — resmungou Gar.
— Eu não sei do que você está reclamando... Quem dirigiu a noite toda para a beldade do Olimpo dormir? Estou cansada e você não vai morrer por carregar as malas.
— Ultrajante! — protestou. — Onde está Andras? Se ele acha que vou carregar tudo isso aqui sozinho, está muito enganado!
— Avisou Haniel, Bia? — perguntou Ayla.
— Não. Para ser sincera nem o vi. Eu e Gar gastamos cinco horas discutindo se viríamos ou não. Passei em casa, peguei algumas coisas importantes...
— A casa inteira — disse Gar ao passar por elas, carregando várias malas.
Beatrice adentrou a casa.
— Ele deve estar preocupado — disse Ayla, a acompanhando.
— Que seja. Ele está aqui para te proteger, não é? Que ele arrume essa bagunça.
— Que bagunça?
— Toda essa gente nos caçando.
— Eu não tenho nada a ver com essa bagunça. — Ayla correu escada acima atrás de Bia. — Você quem arrumou confusão com tudo quanto é gente.
— Ah, agora a culpa é minha? — disse Bia, bisbilhotando o aposento de Andras. — A culpa é desses demônios inúteis que não tem mais o que fazer da vida e ficam nos perseguindo.
— Nossa situação é séria, Bia. — Atravessou a porta do dormitório reservado para o casal.
Beatrice debruçou-se no batente da janela, despejava o olhar nos telhados triangulares das casas de tons quentes enterradas no verde resistente ao inverno. Os pássaros cantavam em saudação. Jogou-se sobre a cama macia e quicou como bola, sorridente. As bolsas se empilhavam diante do único armário embutido do quarto. E sentou-se ao notar Gar colocar a única mala a qual o pertencia no monte.
— Não diga que vai dormir comigo?
— Minha princesa, só há dois quartos nessa casa.
— Não tem porão?
— Tem.
— Durma no porão.
— Como assim dormir no porão? De jeito nenhum! Por que não posso dormir com você? — Gar arfava.
Aqueles dois loucos estavam discutindo de verdade?
— Porque eu não te perdoei e jamais irei!
— Ficamos juntos todos esses dias! — indignou-se Gar.
— Eu disse que era só sexo, Gar. Não assinei nenhum contrato de casamento com você não.
— Não vamos discutir sobre isso de novo, Bia! Sou seu namorado, é minha garota! E princesa, queira você ou não, dividirá essa maldita cama comigo, porque eu não dormirei em outro lugar. Entendeu?
— Qual o problema? — indagou Andras. — Não te vi ressabiada nenhuma vez por dormir com a gente.
— Vocês não estão entendendo a minha situação. Se unicamente por transar com Gar já acha que é meu dono e devo fidelidade eterna, se ficar vários dias dividindo o quarto com ele, vai começar a pensar numa dúzia de filhos e partilha de bens.
— Bem, vocês podem dormir os três juntos então, assim ninguém é de ninguém, situação resolvida — disse Ayla.
Os três a encararam.
— Até que não é má ideia — Gar se sentou e tirou os sapatos.
— Comigo você gosta de partilhar, não é? — Andras debochou.
— Eu gosto da magia que criamos. Os sons do inferno, as almas que imploram por nos tocar, a delícia do nosso amor...
Andras o olhou de soslaio.
— Fazer o quê se fico inspirado para criar letra de musica? — Gar deu de ombros.
— Acho que Ayla ficou com ciúmes. — Bia se estirou sobre a cama.
— Podemos deixá-la brincar com a gente também. — Andras sorriu para Ayla, sedutor.
— Eu passo. — Ayla estava ressabiada com o comentário de Gar, a estranha sensação de que se conheciam antes da noite em que os encontrou a dominou outra vez. Acrescentou, disfarçando a inquietação. — Porém, sobre ciúme, Bia, eu teria se tivesse algo com alguém, como não tenho, fiquem à vontade.
— Enciumar-se é humano. — Gar jogou-se na cama ao lado de Bia. — Estou exausto!
— Verdade, entretanto quando é apenas carnal deve ter outro nome. Posse, talvez? — disse Ayla.
— Não entendo nada sobre ciúme. — Bia acendeu o cigarro e se esticou para pegar o cinzeiro sobre a mesa de cabeceira.
— Só de orgulho, não é, minha princesa? — disse Andras, cínico. — E se Ayla estiver certa sobre posse, então acho que o orgulho pode ser considerado ciúme às vezes. Faz sentido pra mim.
— Faz sentido pra mim também. Por isso que Gar é minha propriedade.
— Não sou não — retrucou. — Sou propriedade minha e minha apenas. E você deveria parar de me esnobar. Também sei ser perverso.
— Sou sua domme, querido, lembra? Decidiu por isso no exato momento em que concordou pagar o preço.
— Todos somos perversos em certo grau. — Ayla recostou-se no armário ao lado da pilha de malas.
— Eu não sou. Não dou a mínima para as pessoas. — Bia colocou o cigarro nos lábios de Gar. Ele tragou e baforou a fumaça na boca dela. Beijaram-se.
— Conversa. — Andras firmou Beatrice, desdenhoso.
Ayla riu.
— Há um tanto de verdade nisso também, Bia, porém, não toda.
— Não me chamem de mentirosa! — esbravejou Bia. — Só não dou a mínima. Observem o mito, como tudo começou. Adão e Eva no paraíso e um Deus recitou o regulamento, ditando como viveriam, sem possibilidade de escolha, sem qualquer percepção do que eram, ou do que o jardim poderia ser, do que vida significava.
Bocejou sonolenta ao apagar o cigarro, afagou Gar e continuou.
— Os dois infelizes nem sabiam que havia mais seres no jardim além deles e Deus. No entanto, Samael estava lá e conhecia bem os trâmites celestes. Ele e não Deus, se apiedou da burrice humana. Porque anjos, demônios ou humanos, todos nós sabemos que o Todo Poderoso deixou a bendita árvore ali de propósito, numa brincadeira perversa. Não vejo outro motivo. Eles não o desobedeceriam, ele sabia, porque os enfeitiçou para isso. E ainda lhes disse que morreriam se comessem.
— Todos nós sabemos o que acontece com aqueles que gostam mais dos humanos do que Ele. — disse Andras, distraído.
— Exato! E então, Samael se apieda, e oferecendo de sua sabedoria, os incentivou a comer. Dando-lhes tudo para que o homem chegasse aonde chegou. Sabedoria, ciência, compreensão, pensamento, vontade própria. E o que acontece? É castigado. O exato fim tiveram Samyaza e Azazel. Amaram aos humanos, ensinaram todo o tipo de ciência aos homens e caíram por causa disso. E com todo o conhecimento ofertado por altos preços e sacrifícios, o que vemos na humanidade? Um monte de gente vivendo como se ainda fosse Adão e Eva, pensando o que alguém quer que pense, mantendo a vida que planejaram para eles, pedindo para os outros dizerem quem são. É uma pena. Uma lástima. Queria tanto que os humanos notassem suas capacidades. O quanto podem ser melhores.
— Por isso alguém precisa pensar por eles — disse Andras.
— E por isso que os anjos ficam putos. — Gar esfregava a barriga de Bia, enfiando a mão sob a camisa da bruxa meiga.
— Talvez nossa percepção sobre anjos não esteja de todo correta devido ao pensamento ocidental, o que equivale dizer cristão. E se Bia e o mito estiverem corretos, Samael era anjo antes de se tornar demônio, assim como Lúcifer — disse Ayla. — E admito não te entender, Bia. Se se preocupa tanto com os homens, por que os matou para se provar?
— Você não sabe muito, não é Ayla? — Não a fitou, mimava Gar em brandos afagos. — É dito que quando o Incognoscível criou ao ser humano e o lançou a este mundo, enamorados da perfeição da criatura, o Demiurgo copiou a criação. Existem entre os homens aqueles que dispõem verdadeiramente de alma humana e aqueles que não possuem, são como receptáculos vazios governados por forças incompreensíveis.
— Não, isso não deve ser verdade. — Ayla sentou-se na cama, agitada. — Como você saberia distinguir algo assim?
Bia a focou.
— O que sabe sobre mim? O que te faz pensar que tem a capacidade de me julgar? De saber o que posso ou não fazer ou saber?
Gar riu, debochado, aninharam-se confortáveis, e o rapaz sugava aos lábios complacentes morosamente, embebido e lascivo. De fato, nada sabia sobre nenhum dos três ainda que mantivesse a sensação de familiaridade e até de pertencimento. E perturbou-se, incomodava a sensação de depreciação do namoradinho de Beatrice. Alisou o xale, como se acariciar a lã macia pudesse devolver o bem-estar perdido.
— A diferença é que os anjos ainda estão confusos. Anjos e demônios são diferentes dos homens em certo grau, possuem determinados poderes e percepções distintos, contudo não podemos dizer que a vida, embora em outra dimensão, seja tão díspar — disse Andras.
— Fala com tanta convicção. — Bia piscou para ele.
— Do mesmo modo que você. — Andras sorriu para ela.
— Entre anjos e demônios, acho que prefiro os demônios, porque estão mais perto de nós. Os anjos sempre me parecem algo indefinível. Um demônio me passa a impressão de deixar claro a todo momento que não se importa com nada. Os anjos são dissimulados demais. Quem dita as regras deles? O deus da guerra ou o benevolente? Nunca sabemos qual atitude terão.
— Como não sabe? — perguntou Bia.
— Veja bem, segundo alguns estudos que fiz, eles somente obedecem ao tal Deus. Mas, qual?
— O que você acha, meu anjo? — Andras riu.
— Não acho nada. Provavelmente os anjos sirvam como guias espirituais apenas, os quais ficam apontando e dizendo: "Não entra aqui" ou "Saia daí".
— Como você, Ayla? — Bia gargalhou.
— Ela é assim? — indagou Gar, curioso.
— Você não sabe da missa o terço, Gar. É assim o tempo todo comigo. O autoritarismo nasceu e parou ali. Parece até uma mãe superprotetora: "Bia, não faz isso", "Bia, toma banho", "Bia, para de beber conhaque no café da manhã" e assim vai. E quando eu não presto atenção ainda joga coisas na minha cabeça.
— Como assim, minha princesa? — perguntou Gar e encarou Ayla, antipático.
— Essa eu queria ver! — Andras cruzou os braços sobre o peito e riu.
— Joguei mesmo, ela mereceu. Odeio que me deixem falando com as paredes.
— Bem, quanto aos anjos, — disse Bia — acho engraçadinho como Haniel gosta de pipoca e do senso de humor dele. Não me importaria com o jeito angelical, ou com quem é o poderoso chefão deles, desde que me servissem bem. E estou cansada desse povo me apoquentando sem motivo, anjo ou demônio, ou humanos e mais tudo quanto é ser que habitam essa terra. Estou cansada de não saber em quem ou no que eu posso confiar.
— Não sem motivo, princesa. — Gar soou carinhoso.
— Estou cansada disso também, Bia — confessou Ayla. — De não poder confiar... De não saber em quem confiar.
— Minha princesa, vou dormir com você. — Gar deitou-se sobre Bia que afagou o cabelo dele antes de beijá-lo. — Prometo que você não se arrependerá.
— Já estou arrependida — Bia disse e abriu-se feito flor sob ele.
— Estão cansados, melhor os deixarmos, Ayla.
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