27 - Ela Pinta o Fogo no Céu
Reclinou o banco do carro um pouco mais, jogou as pernas para o lado, palma com palma, enfiou as mãos sob a cabeça e o fitou. Indiferente ao sangue seco em seu semblante, lutava bravamente contra as pálpebras pesadas. A beleza dela fazia Gar questionar as decisões tomadas. O contrato deveria garantir a sobrevivência da Trindade e da Ordem quando a princesa despertasse. Não podia se considerar uma réplica perfeita do próprio pai, por que Bia seria? As divergências eram mais aparentes entre o pai de Andras e o dela. Contudo, dentre os três, o papel de subordinado cabia mais a si mesmo. E não tinha escolhido seu lado ao se afastar dela? Por que se via obrigado a escolher entre a amada e o amigo de novo? Alternando a atenção entre ela e a direção, esfregou uma das manchas de sangue do semblante lindo. Ronronou e fechou os olhos, sonolenta.
— Estava pensando em Samyaza essa manhã — Bia sussurrou.
Samyaza? Sério? Impossível escapar do que se era e mais improvável esquivar-se da essência. Estaria próximo dela? O conhecia? Precisava varrer Santa Fé outra vez e ter certeza de todos os que estavam na cidade. Os eventos chamaram a atenção de muita gente. A suposta morte de Beatrice se espalhou pelo mundo todo. Vários se contentaram com as desculpas esfarrapadas as quais ele e Andras deram, questionaram as mudanças, o que não se tornou um problema, logo que os planos dos dois jamais a incluíram como mencionavam as cláusulas do contrato. O angustiava a lista das pessoas as quais esperaram que indagariam sobre Beatrice e não fizeram.
— Por que pensava nele? — Gar questionou, inquieto.
— Porque sinto que estou correndo por uma estrada que está se esfarelando e ruindo logo atrás de mim. E não há como tentar outro caminho porque não há opções. Estou cansada da solidão, de cavalos e roleta russa. A vida não funciona direito, um curto momento de desatenção e está preso no eterno enfado.
— E o que Samyaza tem a ver com isso?
Ressonou, adormecida. E o trânsito confirmou a entrada na cidade, arranha-céus colossais como parede de concreto contra o pálido céu do entardecer, círculos plúmbeos alimentando a camada cinzenta da poluição. E Samyaza cruzando a mente dele, mesclando-se às luzes dos semáforos e dos faróis, até onde sabia não estava no país, e o que menos desejava seria encontrar outro interessado em Beatrice. O cerco se fechava e se não a tirasse dali seriam sitiados. E sua garota era barulhenta demais, e incontrolável até mesmo para Andras.
Uma merda como Andras sempre tinha razão e uma desgraça ainda pior gostar tanto dela. A acariciou com as costas das mãos e concentrou-se na direção, seguindo ao carro do amigo cidade adentro, distraindo-se com os transeuntes apressados, portas de comércio se fechando, o engarrafamento do horário de pico. Samyaza, é?
Familiarizado com Beatrice o porteiro não os importunou ao entrar no prédio. Entre os dois como deveria desde o princípio, aguardou Ayla abrir a porta. E como se pudesse sentir a trindade, a loira os encarou, desnorteada. O silêncio sustentava a obscuridade da situação, e engraçado como percebia, o espírito reconhecia, entretanto, a racionalidade era a melhor arma contra a sapiência.
— Quando eu digo que quero ficar sozinha, é porque quero ficar sozinha. — Beatrice avançou apartamento adentro.
— Se você ao menos fosse uma pessoa normal eu não me preocuparia — retrucou Ayla.
— Eu sou uma pessoa normal. Você que é esquisita.
— Você está horrível e está fedendo. Vá tomar banho.
— Eu só quero deitar e dormir — choramingou.
— Banho, Beatrice!
— Mas, que diabos!
Perambulou resmungando pela casa apertada, apanhando produtos de higiene pessoal e toalha. Gar se jogou no sofá defronte do anjo, analisando-o. Sentado com os pés sobre a mesa de centro, munido de uma tigela grande de pipoca, Haniel ora o afrontava em retorno, ora acompanhava ao filme. O que o anjo fazia na casa de Ayla? Retirar Beatrice dali se tornou ainda mais urgente.
— Ela estava bem, apenas bebendo num bar — Andras disse, tomando a atenção de Gar.
— E esse sangue no rosto dela? — perguntou Ayla.
— Ela estava separando uma briga quando a encontramos — mentiu Gar. — Coisa de bêbado. — Focou Haniel outra vez. — A propósito, vou levá-la para minha casa.
— Eu não vou a lugar nenhum com você! — gritou Beatrice do banheiro.
— Então ficarei, minha princesa, não fugirá de mim assim fácil.
— Fiz minha parte no trato. Terá que sair comigo para pagar o que me deve — disse Andras, segurou o queixo de Ayla e beijou seus lábios.
— Tudo bem, vou me trocar.
Ressabiado, Gar deixou o assento e encostou-se contra a parede da sala ao lado do amigo.
— Você sabia desse anjo?
— Não. Não me disse nem mesmo uma palavra sobre isso.
— Posso ouvi-los, camaradas — disse Haniel, sem desfocar da televisão.
— E posso saber o que você faz aqui? — indagou Andras, polido.
— Eu gostaria de fazer a mesma pergunta.
— Suponho que você está acompanhando Ayla como nos acercamos de nossa princesa.
— Talvez sim, talvez não. Talvez sua princesa esteja mais protegida comigo.
— Como ousa? — disse Gar, cioso.
— Não me pareceu que Bia quer sua companhia.
Andras agarrou seu braço, impedindo-o de acertar Haniel como merecia e enfureceu-se ainda mais no instante em que o anjo desgraçado riu e encheu a boca de pipoca. O amigo sinalizou para conversarem pelo celular. Lançou um último olhar furioso para o anjo e retirou o aparelho do bolso.
Considerar se Haniel dissera a verdade ao menos para Ayla mostrou-se importante e consentiram em investigar os motivos da hospedagem do anjo. Não tinham mais tempo, proteger a verdade tornou-se prioridade máxima. Não bastasse o estranho comentário sobre Samyaza, encontrar o arcanjo confortável assistindo ao filme romântico, o enfureceu ainda mais. Andras estava correto outra vez em desconfiar de que estivessem sendo sabotados. Encontrar o traidor entre os deles além de necessário, tornara-se questão de honra. Elaboraram o plano para a noite, nenhuma das duas passariam nem um momento a mais em Santa Fé.
Feito um cordeirinho, abaixou a cabeça ao receber o sermão de Ayla, obrigando-o a jurar que ficaria longe da cozinha. E lamentou deixar Gar, Haniel e Beatrice na casa, temendo que viessem colocar o prédio abaixo.
— Quero ao menos ter uma casa para onde voltar — suspirou, ao deixar o apartamento ao lado de Andras.
Aguardou por Beatrice ao lado da porta do banheiro. Fresca e perfumada como flor encaminhou-se ao escritório enrolada na toalha sem se incomodar com a perseguição dele. Chutou o colchão de solteiro, apoiado em parte na mesa do computador, fazendo-o despencar no chão, desamparado, e desprendendo a toalha, provocante, apanhou a mochila e acocorou-se. As roupas voaram para cima caindo atrás dela, reclamou por não haver nada limpo. A pele macia clamava pelo toque de Gar, se ergueu ao senti-lo e o defrontou.
Os seios roliços e firmes ajustavam-se as mãos dele como se feitos sob medida e a calcinha, a qual segurava com as pontas dos dedinhos, roçou na cervical dele ao enlaçar os braços em seu pescoço. Beijá-la o excitava, contudo, tinha que tirá-la da cidade, e Haniel se mostrou ótimo ouvinte para se aventurar a falar sobre seus planos, inclusive separados pelas paredes do cubículo que chamavam de escritório. E ela o desejava, deixando a situação mais difícil. Maldito anjo! Não fosse por ele, mataria a saudade de Bia.
— Vamos para a minha casa. — Pediu, encostando a testa na dela. — Quero te contar sobre as novidades, entretanto não podemos conversar sobre isso aqui. — Fez um sinal para mencionar Haniel.
— Vou pegar um dos vestidos horríveis de Ayla, não tenho nenhuma roupa limpa.
Sabia que ficaria interessada demais sobre os Pavlov, e foi a exata primeira coisa a questionar ao entrarem no carro. Tragou o cigarro e cruzou as pernas, deixando as coxas grossas à mostra sob o vestido curto e floral. Filho da puta, por que fez uma filha tão gostosa e irresistível? Beatrice devia ter nascido um ser monstruoso, pois para Gar pouco importava o sexo, talvez fosse melhor que Andras tivesse despertado aquele sentimento de amor nele em vez de Bia. Ainda assim, determinados sentimentos humanos e desumanos eram por demasiado insubordinados.
— Está linda. Devia se vestir assim com mais frequência.
Agarrou a borda do vestido e mirou a estampa florida, horrorizada.
— Nada poderia ser mais horrível do que esse vestido. Achei que tivesse bom gosto, Gar. E foda-se o vestido. Fale-me sobre os Pavlov.
— Eu tenho bom gosto. Ficaria linda ainda que se vestisse com pano de chão.
— Não banque o apaixonado, você está tudo, menos apaixonado por mim. Então corte essas conversinhas e me conte logo.
— Encontrei Sirius Pavlov. O que resultou inesperado para ambos. Fugiu assim que ameacei abordá-lo. Estávamos no subúrbio, no Bode Preto, um bar de quinta categoria no qual gosto de ir às vezes, geralmente encontro um ou outro desgarrado por lá, mas não esperava Sirius. Pedi para que varressem a cidade atrás dele, contudo, não o encontrei. Só contei a Andras sobre isso, e meus subordinados, claro.
— Por que um membro Pavlov estaria se escondendo?
— Achei que você pudesse me dar algumas pistas. Olin era um deles, não era?
— O que sabe sobre Olin?
— O que todos sabem. O relacionamento de vocês nunca foi segredo pra ninguém, assim como a família bruxa dele. E todos se questionam por que sumiram depois da morte de Olin.
— Não sei se confio tanto assim em você para falar sobre o que penso. — Abriu a janela e bateu a cinza do cigarro.
— Precisa começar a confiar porque vou te tirar da cidade hoje à noite. Além de que sou seu namorado.
— Não, não é.
— Sim, eu sou.
— Não, não mesmo.
— É minha garota, Bia, consequentemente sou seu namorado e não discutiremos mais sobre isso.
— Acha que se autointitular meu namorado muda as coisas entre nós? Me deixou sozinha, não me ligou e me desprezou ainda por cima. Confio menos em você agora como meu namorado do que confiava um segundo antes.
— Vamos. Temos de saber o que esperar. Pietro deixou a cidade, alguns acham que deixou o país como faremos hoje.
— Deixar o país? Gar... — Tragou três vezes o cigarro. — Eu não sei qual droga tomou, mas preciso de um pouco dela para te aceitar como meu namorado e deixar o país em seguida.
— Cruzaremos a fronteira. Vamos de carro, é perigoso viajarmos de avião, quanto menos pessoas souberem mais seguros estaremos. Precisa confiar em mim, Beatrice, não ficaremos longe dessa cidade por um período longo, somente precisamos de tempo para nos organizar e saber o que fazer. Eu e Andras visitamos os Nigba depois do seu acidente.
— Malditos Nigba!
— Não sabem que está viva. Desconfiam, pois não encontraram qualquer rastro de seu corpo, no entanto, como ninguém escapa do ferimento como o que recebeu, não estão focados em te procurar.
— E como sabem que fui ferida?
— Uma das Banshees.
— Então viram que vocês me resgataram?
— Não. Segundo me disseram, ao expandir seu poder e explodir, a única Banshee sobrevivente fugiu bastante ferida. Não fomos bem recebidos na Mansão Nigba, entretanto não negaram informação.
— E te contaram tudo isso?
— Para mim não. Contaram para Andras. Isso nos dará tempo para respirar, estão focados em Pietro. Porém, desconfiaram da nossa visita, nos vigiaram enquanto transamos no bosque da Mansão, sabem o que nós dois sentimos um pelo outro. Encontrei um espião dos Nigba no meu quintal, por isso não te visitei.
— Mente.
— Sobre o que?
— Não foi por causa do espião que não me visitou. Foram me buscar no Bar da Roça, se estivesse preocupado com espiões, não estaríamos no meu carro indo para a sua casa.
— Bar da Roça? Esse é o nome da espelunca?
— Eu dei o nome e o dono achou bom. Fará uma placa para o bar com esse nome.
— O que Olin te confidenciou sobre os Pavlov? Você frequentava a mansão deles.
— Considerei alguns deles como meus amigos, inclusive Sirius. Exceto as câmaras restritas, tinha liberdade para transitar tanto na Mansão quanto em outras propriedades de alguns membros. Olin não estava no topo da hierarquia, mas era muito querido por Sirius. Não faço ideia dos motivos do desaparecimento, levei bastante tempo para sair do coma, quando acordei não estavam mais na cidade. Não me deixaram nada, nenhum recado. E senti muita raiva por Olin ser abandonado.
— Quer vingar a morte dele, não é?
— Eu vou me vingar. Por isso que no momento em que consegui acessar o poltergeist tentei controlar. Controlei ao ficar furiosa assim que ouvi Débora dizer a verdade sobre o ritual e o demônio que eu e Olin trouxemos. E fiz de novo ao ser atacada pelos possuídos que me encontraram próxima aos trilhos dos trens. Vou matar um por um, até Bel, se eu tiver certeza de que ela esteve envolvida com a morte de Olin. Entregou-me a Kael. Não quero pensar isso dela, não, não quero, não Bel.
— Eu cuidei de Kael pessoalmente, princesa. Pode riscar o nome desse LeBlanc de sua lista. Você é minha e ninguém machuca minha garota.
Beliscou o queixo dele ao parar o carro no semáforo.
— Não sou sua. Não sou de ninguém, Gar. — O beijou, enchendo a boca dele com o gosto picante do tabaco.
— Pietro tem alguma coisa a ver com sua vingança?
— Pietro nunca conheceu Olin.
— Te conheceu e isso é o que importa.
— Não vou te dizer nada, Gar. Pietro não te diz respeito. E se Sirius está na cidade, não devo deixá-la.
— Deve sim, princesa. As pessoas precisam se esquecer de você. Bel também precisa esquecer. Ela tomou um lado, está com os LeBlanc e se os LeBlanc estão com os Nigba, isso encurta um tanto seu círculo de amigos.
— Não, não fale isso de Bel. Me deixe acreditar por mais um tempo de que ela não está envolvida nisso. Não consegui superar ainda.
— Não precisa de Bel, princesa. Me tem. Sou seu namorado, lembra?
— Bem, já que quer tanto ser meu namorado, terá de me convencer disso. Como tudo na vida, tem um preço.
— E qual é o preço?
— Será meu escravo sexual a noite toda.
— Só se partir comigo.
— Dois pedidos aumenta o valor.
— Será minha domme com prazer, Bia, mas partirá comigo.
Bạn đang đọc truyện trên: AzTruyen.Top