21 O Que Muda?
O bip assinalava os batimentos cardíacos, assim como a bomba de oxigênio, expandindo-se e contraindo, simulando o som e ritmo da respiração, mantinha os pulmões funcionando. Reclinado na poltrona, esgotado, Gar abria e fechava os olhos, refrescado pela brisa que invadia o quarto pela janela entreaberta. A paisagem monótona e árida da região rural e infindáveis campos desolados reduzidos a capim e pequenos arbustos não eram atrativos o suficiente para mantê-lo acordado. O bip acelerou e a cama vibrou num estrépito violento, Beatrice convulsionava outra vez.
Atento e prestativo, saltou para o lado de Bia, regulou o equipamento de soro e as gotas se aceleraram dentro da câmara de gotejamento. Gar suspirou, tomou a mão azulada verificando a injeção cravada numa das esquisitas veias negras, e encostou a cabeça na dela, sibilando como uma mãe para acalmar ao filho, ajustou a máscara de oxigênio e focou o monitor cardíaco antes de retornar a sibilar, carinhoso.
A enfermeira irrompeu no ambiente, apressada. Colocou a bandeja metálica na mesa de cabeceira e aplicou a injeção através da mangueira de soro. Beatrice acalmou de imediato, o bip desacelerou gradualmente e após beijar a testa gris, Gar afagou o cabelo dela.
— Boa menina.
A enfermeira monitorou os sinais vitais e concordou em acompanhá-la no momento em que Andras o chamou. A contemplou, preocupado, e se retirou. Caminharam pelo corredor ladeado por animais empalhados. A porta se abriu, atravessaram a sala morna e aconchegante e relaxaram em poltronas próximas a lareira.
— O que Igor disse? – Andras indagou ao entregar um copo de uísque para Gar.
— Se Beatrice sobreviver será um milagre. — As horríveis estatuetas de ferro sobre a lareira lembravam suportes de plantas. — A cirurgia e transfusão não garantem nada, ainda está viva porque repeliu as armas de seu corpo e se regenera com excepcional velocidade.
— Se Faure morrer as coisas sairão do controle.
— Ao menos ficará com o colar dela. E nós ficaremos com as mãos limpas. — Elevou-se, enérgico, e virou todos os bonecos horríveis deixando-os de face para a parede. — Devia jogar essas merdas fora.
— Gosto deles.
— Horríveis! — Bebericou o uísque e contemplou o fogo.
— Seria bom se fosse assim simples, ficarmos com o colar e livres de Faure. Todavia, o jogo mudou. Se os Nigba pediram aos LeBlanc para enganá-la e fazê-la abrir o portal para trazer um demônio como Ayla disse, isso muda tudo. Primeiro porque sabem o que Faure é, assim como sabem do colar. E em segundo devemos saber quem é o demônio que trouxeram para esse mundo, e por que se envolveram com isso. Por que querem matar Faure? E o pior, cara, como é que tudo isso aconteceu sem que ficássemos sabendo?
— Todo mundo quer se livrar de Beatrice.
— Não todo mundo. Tem muita gente quieta, quieta demais. É tolice pensar que Faure está sozinha. Não, Gar, ela não está. O estranho é ninguém se manifestar com tudo o que está acontecendo desde a morte de Olin.
— Se sabem de Beatrice —
— Sabem de Ayla também e nós levamos as duas para a Mansão Nigba. Dois idiotas, Gar, é isso o que somos.
— Ela não vai sobreviver, Andras — cuspiu as palavras com certo desconforto. — Temos de pensar num plano B. Esse local nos protegerá e manterá invisíveis por algum tempo, mas o escudo de proteção não durará. E saberão que estamos com elas se ficarmos trancados aqui, cara.
— Não ficaremos aqui. Nik está a caminho para ficar com as duas. Está preocupado com Faure, gosta muito dela.
— Pietro? Conseguiram pegá-lo?
— Não. O lobo maldito escapou ileso.
— Dos Nigba? Impossível.
— E se for verdade, Gar? E se Beatrice ajudou Pietro?
— Não, não é possível. Seria necessário que Beatrice conhecesse a essência dela em profundidade pra fazer o que está pensando, cara, e sabemos que não sabe nada sobre isso.
— De toda forma temos de considerar que os Nigba e os LeBlanc sabem sobre Faure, e descobrir porque os Pavlov ao contrário de vingar a morte de Olin, simplesmente desapareceram. Ayla precisa ser mais protegida do que nunca, não será difícil de convencê-la a ficar enquanto Faure estiver viva, contudo, preciso pensar em algo para mantê-la sob minha guarda.
— Namore com ela.
Gar riu com o espanto estampado no semblante apalermado de Andras.
— Não foi o que me pediu para fazer com Bia? Ayla é romântica e previsível. Está assustada, desconhece esse mundo, ninguém apareceu para reclamar por ela, nem para protegê-la. E sabe tão pouco sobre si mesma quanto Bia.
Andras colocou o copo de uísque sobre a mesa e se levantou.
— Pensarei sobre isso. Vá descansar. Vamos fazer uma visitinha aos Nigba.
Teria sido mais fácil seguir pelo corredor até o quarto, Gar sabia disso. Tinha apenas de continuar, um passo após o outro, estava cansado o suficiente para deitar e acordar várias horas depois. E nada poderia ser mais embaraçoso do que os passos ruidosos sobre o piso de madeira, nem a surpresa estampada no semblante da enfermeira, informada por Andras para acompanhar Beatrice. Consentiu em deixá-los e, prestativa, pediu para que a chamasse quando necessário.
Tocou o semblante gélido e verificou o cobertor térmico. Descobriu Beatrice e dedilhou os pontos horríveis, misturavam-se a pele negra e chamuscada de aspecto pútrido e ao símbolo deixado por Andras. A negrura se alastrava sobre o azul da derme, tomando boa porção do abdômen, fria e com muitos veios como o mármore. A beleza escorria dela a medida em que a morte a tomava nos braços. Sofria? Decerto que sim, nada poderia ser mais doloroso do que uma ferida feita pela Prata dos Anjos.
— O que você e Pietro fizeram? — perguntou, cobrindo-a outra vez. — Sua morte seria um alívio, minha princesa.
Acariciou com gentileza o pescoço negro e a ferida no ombro. O monitor informava 35 batimentos cardíacos por minuto, a bomba ainda a ajudava a respirar. Resvalou o polegar nos lábios arroxeados.
— Não há nada que eu possa fazer agora. Ah Bia, assim você me magoa. — Beijou a cabeça dela e manteve os lábios pressionados contra a pele fria. — O espírito não vai para lugar nenhum, é desfeito com a lâmina. O que sobrou do seu? Se está fragmentado, acha que consegue consertar? Porque estou com medo do momento em que desligarem esses equipamentos, e estiver tão negra como um carvão, fria como um iceberg, imóvel e silenciosa.
A acarinhou.
— Já pensou que embaraçoso será se eu chorar sua morte?
A deixou e jogou-se na poltrona. Puxou a cortina, do outro lado da vidraça a região feia, quilômetros de nada com uma muralha dentada e negra de morros como divisão entre a profunda escuridão e o clarão da cidade no céu. Não importava os motivos de Andras, nem de toda a confusão, a queria viva, e as bochechas arderam, assim como desejava os Nigba e LeBlanc mortos, e corou outra vez. Gostasse disso ou não... Dele, Beatrice era dele e ninguém tinha o direito de destruir suas posses.
O que estava pensando? Estava todo trêmulo, todo agitado. A fúria borbulhava no lago de fogo de seu espírito. Raiva afigurava-se apropriada, como arranhar o couro da poltrona, produzindo um cerzido com a unha. Os rubores iam e vinham, na mais estranha alternância de fúria e paixão. E riu. Bia se sentiria linda se visse sua fisionomia, pensaria numa roupa perfeita para combinar com o novo tom azulado de pele e o faria gargalhar por horas.
Entretanto, não sobreviveria. Talvez, e só talvez, se tivesse herdado talentos extraordinários do pai. Riu outra vez ao lembrar-se do pai de Beatrice. Não, não sobreviveria. Suspirou e afundou na poltrona. Pode deixar o quarto, Gar. Pode deixá-la sozinha. A encarou outra vez e fechou os olhos. Podia, mas não queria.
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