2 - Pausa Para o Conhaque
Não conseguia raciocinar, encolhia-se diante dos olhares. Envergonhava-se da indelicadeza de Beatrice, bebia o conhaque direto no gargalo encarando Gar. Era esse o nome dele? A bruxa feia o paquerava, descarada, sensualizava sem se importar com a aparência de palhaça velha. Era Gar mesmo? Não importava, quer dizer, talvez devesse, porém as mãos trêmulas e as roupas ensopadas agarradas ao corpo evidenciavam-se mais significantes.
Escorado no balcão, Nik conversava com o rapaz. Gar meneava a cabeça em "sins" e "nãos", balançando o cabelo comprido e sedoso, castanho-escuro e levemente ondulado. Contudo, Beatrice ou o fascinou ou o deixou horrorizado porque os olhos avelãs, quentes como a pele parda, apenas desviavam do semblante despreocupado da bruxa descarada para esmiuçar os rótulos das garrafas de bebida que o copeiro dispunha numa longa fileira no balcão cor tabaco.
— Me acompanhem — Gar disse, esboçando um sorriso discreto para Beatrice, cravando covinhas nas bochechas, charmoso.
Não tinha dúvidas, gostou da bruxa esquisita. Como entender os homens? Bonita, bonita, Beatrice não era. Bem, era, todavia não estava.
Atravessou o limiar, um arco sem portas ladeado por dois leões em alabastro. Sentados em mesas redondas cobertas por toalhas aveludadas em verde-escuro, os convidados deixavam-na ainda mais desconfortável. A maioria vestia preto e usava penteados aberrantes e espalhafatosos, como seres retirados de um filme de terror. Nada no recinto combinava com o casaquinho bege e a calça social, menos ainda com o perolado do cabelo grudado na cara, nem os magníficos quadros nas paredes claras, tampouco as colunas em carrara que sustentavam o teto alto, menos ainda a pesada porta de madeira arqueada e entalhada com belos relevos diante da qual pararam.
A porta se fechou e os separou do amplo salão de festas. Sequer se sentou no sofá creme onde Beatrice se jogou. A bruxa desleixada afundou na maciez almofadada, fazendo os tênis encharcados voarem pelos ares, sem se preocupar com a mesa baixa com tampão de vidro, onde o copeiro dispôs, elegante, bebidas e petiscos. Entregou uma segunda garrafa de conhaque para a bruxa xexelenta que alegou, veemente, ainda estar com muita sede.
Gar os deixou com uma vênia polida. Nik empurrou as pernas de Beatrice para fora do sofá, sentou-se e bateu sobre o almofadado ao lado, pediu, gentil, para que Ayla se sentisse à vontade.
— Eu gostaria ao menos de ir ao banheiro — Ayla disse.
Nik apontou para uma segunda porta branca e sem ornamentos. Beatrice levantou-se de um salto, declarou que a acompanharia e a seguiu enquanto elogiava a qualidade da bebida, mais falava consigo mesma do que se dirigia a Ayla. O caminhar firme, a voz sólida e a fala coerente e racional não poderiam dissimular a embriaguez. Não, definitivamente não estava bêbada e era bizarro. Teria alguma habilidade sobre-humana? Pois, ninguém tomaria uma garrafa inteira de conhaque sem demonstrar um mínimo de embriaguez.
A porta se fechou num som suave e abafado. Beatrice colocou a garrafa e a bolsa imensa sobre o mármore branco do lavatório, se aproximou ainda mais do espelho que cobria toda a parede e dedilhou o rosto.
— Nossa! Estou parecendo um boneco de vudu! Uns pregos na cara e umas costuras de linhas grossas aqui e ali, e posso ser contratada para interpretar o capeta num filme de terror.
Ayla riu, entretanto não se diferenciava, estava tão horrível quanto. O jeans da jaqueta ensopada da bruxa atriz e a calça que arrancava, ainda davam um ar despojado. Em contrapartida, ela se assemelhava uma aeromoça sobrevivente de um acidente em plena selva, o tom claro do traje a deixava com uma aparência imunda.
De calcinha e camiseta, Beatrice retirava uma infinidade de objetos da bolsa e empilhava sobre o jeans molhado na pia. Fones de ouvido, celular, blocos de anotação, frascos diversos, livros, chicote. Chicote? Para que mantinha um chicote dentro da bolsa? Chiclete, maços de cigarros, canetas, caixas de alumínio, três necessaires, e uma porção de objetos minúsculos e insignificantes.
— Não foi dessa vez — suspirou, decepcionada. — Jurei que tinha uma troca de roupa. Terei que ficar assim.
— Assim? De calcinha e camiseta?
— E o que é que tem? – Deu de ombros, abriu a torneira dourada e esfregou a face com sabonete. — Espero conseguir tirar esse delineador da minha cara porque do jeito que estou, só serei capaz de seduzir o Hannibal Lecter, e não quero acabar a noite com alguém comendo meu cérebro com azeite de oliva italiano.
— Seduzir?
— Não achou Gar uma graça? — a fitou, cuspiu a água e tornou a encarar o espelho. — Oh merda de delineador a prova d'água.
— E os demônios lá fora?
— Como eu disse no carro, estão por toda a parte. — Beatrice a focou através do espelho. — Nas igrejas, nas festas chiques, nos bares, sempre me caçando. No começo ficava apavorada, agora apenas me escondo quando são ameaçadores demais. Relaxa, chega um momento que você se acostuma com isso.
— Ainda assim preciso fazer alguma coisa. Eu deixei minha amiga naquela cidade.
— Uma loira com camiseta do Iron Maiden?
— Você a viu?
— Sim. Está morta. Estava fazendo o ritual dentro de uma das casas abandonadas no momento em que ela surgiu com um monte de aparelhos e luzinhas piscando, perguntando maluquices para o ar e tentando gravar algo no toca-fitas velho do século passado, e logo após o ceifador apareceu. Consegui escapar porque o medo dela atraiu o demônio.
— Mirela? Morta?
— Para morrer basta estar vivo — disse, insensível, e esfregou a toalha branca como a neve na cara preta.
— Por que o demônio a matou?
— Aquela cidade foi construída sobre um sítio sagrado indígena, há um portal lá, ninguém sabe desde quando, provavelmente desde sempre. As pessoas povoaram a região por causa de uma mina, para trabalhar. Quando as mortes começaram a acontecer disseram se tratar de uma infecção por uma bactéria desconhecida encontrada nas profundezas da mina. Escavaram demais, alegaram. Muitos enlouqueceram com a suposta doença, assassinatos e acidentes ocorreram aos montes, ninguém estava a salvo ali, qualquer morador sabia bem que estavam lidando com forças inexplicáveis e malignas. Postos de saúde, quarentena, a explosão e desabamento da mina não ajudaram em nada, morreram todos. Se sobrou algum descendente, decerto não falará sobre isso por medo.
Entornou o conhaque e se recostou no lavatório.
— Investigadores paranormais, em sua grande maioria, não sabem com o que estão lidando. Alvoroçam e se aglomeram em lugares assombrados, munidos das parafernálias eletrônicas, tentam provar para eles próprios que esse mundo existe. Somos atormentados com a ideia da morte, as incertezas em torno disso, queremos acreditar numa continuidade, seja qual for. Se a motivação é a angústia de estar vivo, acho que nutro algum respeito, mas na realidade a maioria deles querem ganhar dinheiro com o sobrenatural.
— Estamos mesmo seguras aqui?
Falar era melhor do que lidar com a tristeza. Não tinha intimidade com Mirela, a colega de trabalho ofereceu-se para ajudá-la com seus dilemas mentais, acreditava que Ayla não enlouquecera e queria provar que suas habilidades se tratava de dons psíquicos. Não percebeu quando Mirela adentrou a casa abandonada, bem poderia estar animada com os sinais de sua parafernália tecnológica para caçar fantasmas. Sim, havia dito algo pouco antes de desaparecer na escuridão.
— Nik é ocultista também, não fosse por ele acho que esses seres teriam me matado. Quase não fico em casa, não dirijo há um bom tempo e as pessoas me evitam assim que descobrem que podem morrer ao meu lado.
— E onde você fica?
— Às vezes fico na rua, sentada em alguma praça, ouvindo música nos fones de ouvido. Ou em shoppings, lendo um livro ou mexendo no computador. Muitas vezes estou na casa do Nik ou na natureza.
Beatrice enfiou tudo na bolsa de qualquer jeito, urinou e se retirou, forçando Ayla correr em seu encalço.
Agarrado ao copo de uísque, Nik observava o jardim pela janela ampla. Ao notá-las, não se incomodou com a pouca roupa da amiga e entregou um cigarro de canabis. Beatrice tragou com prazer e se afundou no sofá, contemplando o fumo.
— Caralho, isso é muito bom! Onde pegou?
Nik agarrou a caixa de madeira sobre a mesa e abriu. Havia uma fileira dos cigarros ilícitos prontos para consumo. A moça retirou uma caixinha metálica da bolsa, colocou vários dentro e guardou para si sem qualquer pudor.
— É bom considerar como lidar com isso, Ayla. Não estavam apenas atrás de mim. Foi uma grande burrice sua amiga te levar para aquele lugar, agora sabem onde te encontrar. Você não toma remédios, não é? — Havia preocupação na voz de Beatrice.
— Tomo, o psiquiatra achou que eu estivesse com síndrome de pânico e ansiedade.
— Já me fizeram tomar essas porcarias também. Acreditam que tudo é resolvido com remédios, eletrochoques e camisa de força. Estou abraçando a desgraça depressiva que é minha vida, sem usar essas merdas. Não estou alucinando. Não tenho culpa que ninguém mais percebe o mundo como eu.
— De que adianta se você virou alcoólatra por causa disso? — disse Nik, sarcástico. — E não foi o padre da Emily Rose do filme Exorcista que a aconselhou a parar de se medicar e a moça morreu de epilepsia?
— Padres não sabem de nada, Nik! Eu não sou padre, nem médica, mas posso dizer com convicção de que Ayla não é louca e não precisa de remédios. — Beatrice tragou o cigarro duvidoso e soprou a fumaça no rosto de Ayla. — E ao menos o álcool tem a benção de Dionísio. Essas drogas sintéticas têm a benção de quem?
— Hermes? — perguntou Ayla, divertida.
— Gosto dela! — Nik riu.
— Deus Hermes só me fode. Melhor nem falar o nome dele, senão daqui a pouco essa casa estará cheia de demônios.
— Não tenho nada contra demônios — disse Nik.
— Não tem porque eles não querem arrancar o seu couro. Por que estava fugindo, Ayla?
— Achei que estivesse sendo seguida e vendo coisas, cogitei se tratar de uma crise de pânico, até que te encontrei.
— Eles te querem também. A questão é descobrir o porquê. Estão me perseguindo há anos, não sei como ainda estou viva.
— Seu anjo da guarda — disse Nik, debochado.
— Meu anjo da guarda quer tanto meu couro quanto os demônios — disse Beatrice com desdém.
— Meu anjo fala comigo às vezes — confessou Ayla.
— Sim, percebi que eles foram solícitos com você ao rezar no meu círculo e o grandão apareceu. O que você tem com eles?
— Eu não sei. É até engraçado porque eu nem gosto de anjos. Sonho com eles com frequência e devo admitir que quando te vi, tive a impressão de já ter sonhado com você também.
— Se sonhou com ela não foi um sonho, e sim um pesadelo.
— Morri de rir, Nik! Desista, suas piadas são horríveis! — Beatrice deu um leve tapa no ombro do moço.
— Estamos prontos — anunciou Gar ao irromper no recinto. — Vai tocar com a gente, Nik?
— Sim. Preciso buscar o baixo, ficou no carro.
— Não tem problema. Estou certo de que suas amigas apreciarão o ritual.
— Ritual? Que ritual? — indagou Ayla, desconfiada, apertando o passo para alcançá-los.
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