17 - Tomando um Lado

Confortável em travesseiros almofadados, recostada na cabeceira da estranha cama negra, Beatrice conversava risonha com Gar. O rapaz a afagava enquanto a bruxa piegas beliscava as guloseimas da bandeja e enfiava pedaços de frutas na boca dele. A cortina escura e pesada impedia a luminosidade natural invadir o quarto, o que dava ao ambiente a atmosfera umbrosa e depressiva. Sorriu para a bruxa dengosa, desconcertada, e Bia ofereceu do desjejum. Recusou, educada, e perguntou.

— Como você está, Bia?

— Não consigo me sentir descansada embora dormi por várias horas. E você, como está?

— Estou ótima. Estava preocupada com você. — Olhou para Gar de soslaio. — Como está sendo ficar aqui?

— Gar, pode nos deixar sozinhas, por favor?

— Claro, princesa. Avise-me quando eu puder voltar. — Beijou a testa da bruxa risonha e se retirou.

O incômodo com a presença de Gar foi assim perceptível ou o espírito ruim do poltergeist sussurrava na cabeça de Bia como os anjos faziam com ela? Sentou-se ao lado da bruxa comilona e entreolharam-se, intrigadas. Beatrice sustentava um ar questionador, contudo ao hesitar tanto, desprendeu a atenção de Ayla e voltou a comer.

— O que aconteceu ontem à noite? — Ayla indagou, por fim.

— Mais do que deveria. E consegui bem menos do que queria. O filho da puta do Cassius não me ajudou em nada. Não que tivesse grandes expectativas, mas se tivesse acesso à biblioteca dos Maier teria resolvido grande parte dos meus problemas.

— Bia, estou confusa. — Como se estar confusa fosse novidade e a feição de Bia concordava com aquele pensamento. — Algumas coisas aconteceram. Quer dizer, tudo isso aconteceu. Andras foi à minha casa. — Beatrice abandonou o melão logo que ouviu o nome do tinhoso e a focou.

— Ele foi até sua casa? Como te encontrou?

— Não sei. Alegou ter informantes. Disse que era perigoso seguir com você, sua vida é complicada, e tem mais inimigos do que deveria.

— Ele não mentiu. — Mordeu a fruta.

— Disse que não estou segura porque os LeBlanc virão atrás de mim porque Bel disse que sou sua namorada.

— Bel disse aos LeBlanc que eu te namoro? Como assim? — Jogou a fruta na tigela e afastou a bandeja.

— Eu não sei. — Baixou o tom a fim de a incentivar a falar mais baixo. — Andras disse que os informantes dele disseram isso. Se pensam que sou sua namorada, os LeBlanc vão me caçar também, como, ao que parece, declararam guerra a Gar por comprar sua briga.

— Chegará o dia em que não deixarei nenhum LeBlanc em pé nessa terra. Escreve o que estou falando. — Acendeu o cigarro, irritadiça.

— Disse que sou Bastarda.

Beatrice balançou a cabeça, concordava com o diabo sedutor.

— Eu quero saber quem é meu pai — Ayla confessou. — Quero encontrar o desgraçado e socá-lo até a morte. Andras disse que pode tanto me proteger quanto ajudar a encontrar meu pai. Entretanto, não consigo confiar nele.

— E nem devia. Fez o ritual e se ligou a mim sem me consultar antes. Gar me disse que por causa dessa conexão me encontrou com os vampiros. Justificou ser assuntos de família, entre o pai dele e o meu, se entendi bem. Pode me encontrar em qualquer lugar e isso é o pior que alguém poderia desejar. Um encosto. Um obsessor em meu encalço. E não sei dos motivos dele. Proteger, proteger, proteger... Parece até vendedor de telemarketing tentando te oferecer serviço de assinatura inútil. Descobrir a verdade é importante, porém de algo sei, não estão dispostos a contar.

— Podemos acreditar nisso? Que querem nos proteger?

— Claro que não dá para acreditar nisso! — respondeu Beatrice, resoluta.

— De tudo o que me incomoda bastante é o fato de ter sonhado com ele desde a adolescência.

— Perguntou sobre isso?

— Sim. Disse que me encontrou por causa de um ritual que fiz. Todo misterioso, afirmou que alguém ouviu. E falou sobre as forças as quais o regem, dando a entender de que, através delas ou de forças além de si, encontrou o caminho até mim através dos sonhos. É possível?

— É possível para alguns Sobrenaturais. Semideuses são raríssimos, mas, conseguiriam fazer isso se o ritual for direcionado ao pai divino dele.

— Andras? Semideus? E você conseguiria confirmar isso?

— A quantidade de pessoas com as quais posso contar e pedir favores está diminuindo numa velocidade vertiginosa. Preciso conhecer gente nova, estabelecer novos vínculos e acho que já percebeu que minha fama não é das melhores. — Silenciou-se. — Preciso descobrir, Ayla. Devo conhecer bem meus inimigos se quiser sobreviver nessa merda.

— E como faríamos isso?

— Faríamos? Está tentando estabelecer parceria comigo apesar de saber que sou a pior pessoa com quem alguém pode estar?

— Que opção tenho? Entre você e Andras, acho que você é menos ruim. Ao menos sei alguma coisa ao seu respeito, temos o mesmo problema paterno, somos Bastardas.

Beatrice a encarou e pegou a garrafa (vodca?) da mesa de cabeceira. Bebeu, fitando Ayla dos pés à cabeça, absorta.

— Não tenho casa. Durmo em qualquer local. Jamais pode dizer ao meu respeito para ninguém, sob nenhuma circunstância, quanto menos souber ao meu respeito, melhor. Nenhum parceiro sexual meu é do seu interesse.

— Bia, eu...

Como perguntaria?

— Desembucha! — exclamou Beatrice, impaciente.

— O que você sente por Andras?

Beatrice arqueou apenas uma sobrancelha e controlou o riso.

— Como assim o que eu sinto por ele? Tesão? Do que está falando?

— Tesão eu sei. Estou falando de sentir. Tem algum sentimento ou é apenas sexo?

— Ayla, regra número um, jamais se envolva emocionalmente com ninguém. E só transamos. Ele é bom de cama, devia experimentar. Que coisa esquisita! Ninguém nunca me perguntou nada assim antes. Nem os caras com os quais transei. — Riu. — Você está interessada nele? — Beatrice arregalou os olhos e gargalhou, debochada.

— Você se esconde. Sua máscara é perfeita, porém alguém te tocará ou já tocou seus sentimentos, posso sentir isso, Bia. Sei que é melhor não sentir, dói menos, mas sinto demais. — Beatrice havia parado de rir e entornava a bebida. — Não sei o que sinto. Fora a cisma e o desejo. Entretanto, se você me falasse que sente algo por Andras, eu viraria as costas numa boa. Quero manter relação de amizade com você e se sentisse alguma coisa me afastaria dele sim.

— Eu não me importo e não uso máscaras.

— Mentira! Você se importa. Do seu modo. Admito que não é qualquer um que passa pelo seu crivo. Nem sei como passei. Você prefere o Gar porque aparentemente é mais fácil de lidar.

— Como assim prefiro o Gar?

— Suas defesas são boas, mas quando alguém as atravessa você continua sendo a menininha perdida que quer amor e respostas. Assim como eu. Consigo te entender porque no fundo somos semelhantes. O exterior é diferente, o interior não.

Beatrice a cravou, perplexa, como se fosse alienígena.

— Calma lá! Você está indo longe demais! Eu não quero amor e respostas! — Pensou melhor. — Respostas, sim, quero respostas. Quero saber por que estão me caçando, o valor do meu colar, por que Andras está interessado. De onde tirou essa ideia de amor?

— De você!

— Estou nesse mundo há bastante tempo, sei que há pessoas que tem toda a sorte de poderes, magias e insanidades, mas você está confusa. Gostar de transar com Gar não significa que estou apaixonada. — Bufou. — Tudo bem, Bia, tudo bem, já ouvimos doideiras piores. Regra número... Ih, não dei números para as regras anteriores, apesar disso, regra algum número, não se deve falar nunca que estou apaixonada pelo Gar.

As duas miraram a porta pesada ao se abrir. Gar, educado, informou que Nik queria vê-la. Beatrice concordou com a visita. Estava agitada, a garrafa subia e descia produzindo o burburinho incapaz de desfazer a tensão. Discutir sobre os sentimentos de Bia não se afigurava fácil, convencê-la de sua boa intenção muito menos. E, no entanto, parecia mais do que necessário.

Apesar de demonstrar desinteresse e fazer chacota com tudo, a bruxa inconfessa conhecia bem o Submundo, demonstrava saber de coisas as quais Ayla não tinha nem ideia de que existiam. E lidar com as regras de silêncio ficava cada vez mais custoso. Bia analisou Andras e deve ter feito o mesmo com Gar e Elias. Não obstante, como convencê-la de contar o que pensava? E saber faria diferença? O tom do cabelo de Nik assemelhava-se ao da camisa xadrez vermelha e em conjunto com a face sardenta aparentava um pimentão gigante. Bagunçou o cabelo da amiga e agarrou a mão dela.

— Estou preocupado. Não sei em qual merda você se meteu agora, mas puta que pariu, Bia! Tudo está um caos! Os LeBlanc bateram na minha porta e os boatos são de que você chamou aos lobos para atacar os Maier para entrar na biblioteca deles.

— Não, isso não é verdade.

— Pietro faria isso por você. E os Nigba estão irritados com a bagunça com os bruxos. Regras foram estabelecidas, Bia, todos devem responder aos Nigba. E tecnicamente, vaca, você descumpriu a pior das regras. — Levou a mão ao cabelo, nervoso e berrou, assustando as duas. — Você passou de todos os limites, Beatrice, porra! Chamar Pietro para invadir o território dos Maier? Onde estava com a cabeça?

— Eu nem sabia que os lobos atacariam a discoteca — Beatrice asseverou, buliçosa. — E Cassius queria exatamente que eu informasse onde encontrar Pietro. Hugo Teodoro estava o servindo como guarda-costas. Nik, você tinha que ter visto. A Sunshine parecia um covil de sanguessugas. Não tenho nada a ver com essa merda, sabe que não me misturo com os sobrenaturais.

— Transou com Pietro e várias vezes. Muitos sentiram o cheiro dele em você.

— Transar com ele não tem nada a ver com essa encrenca. Os lobos transam com todo mundo.

— Minha princesa, precisa de algo? — Perguntou Gar, ao entrar no aposento, ríspido e visivelmente incomodado. — Quer que eu peça aos criados para servirem seus amigos?

— Preciso. Preciso transar com você e agora. — Beatrice se levantou, impetuosa, e envolveu o pescoço dele.

— Santo Deus! — Ayla ruborizou.

— Minha princesa, precisamos visitar os Nigba. — Andras parou, abrupto, desconcertado, como se não esperasse encontrar todos ali.

— Hei, isso é novidade. — Nik ergueu-se. — Nunca ouvi vocês se dirigirem a nenhuma mulher assim. Ainda mais a Bia. Aliás, não vi ninguém se dirigir a ela assim nenhuma vez em toda vida. — Nik riu. — Minha princesa. – Gesticulou como se retirasse o chapéu invisível da cabeça. Beatrice mostrou o dedo do meio.

— Porque ela é — Gar parou de falar, abrupto, sob o olhar fulminante de Andras.

— Faure é alguém especial, nada mais. Eu e Gar nos dispomos a protegê-la e não há nenhum mal em chamá-la com apelido carinhoso.

— Oh sim, claro que sim. E quem sou eu para entender vocês dois, não é mesmo? — Nik esfregou as mãos nas calças jeans. — Por que visitar aos Nigba? E por que com você?

— Estamos todos cientes do que está acontecendo, não? — questionou Andras, tranquilo.

— Estou fodida pra variar — Beatrice suspirou.

— Nada acontecerá com você, princesa, eu garanto. — Gar a afagou e a bruxa agourenta o beijou.

— Prometi que te acompanharia, princesa, querem te conhecer. — Andras ia deixando o quarto, todavia voltou-se. — Precisa de estilista para te ajudar com a roupa de hoje à noite?

— Claro — respondeu Bia.

— Os Nigba? Você vai para a mansão dos Nigba? — Nik se jogou sobre a cama, desolado.

— O que tem os Nigba? — questionou Ayla.

— É o clã mais antigo que existe — respondeu Gar. — A Ordem de Magos que controlam Bruxos, Bastardos, Mestiços e Sobrenaturais. Existe todo um mistério por trás deles, ninguém sabe ao certo o que são, de onde surgiram, todavia agem como juízes do mundo, ninguém é louco de confrontá-los. A lenda diz que foram uma civilização, ou ao menos remanescentes de uma antiquíssima. Com as mudanças, caça aos bruxos, estabelecimentos de novas religiões e estados, acolheram a todos e estabeleceram o regulamento para nos ajudar a sobreviver. Tornamo-nos minoria entre os humanos comuns, todos caçados, assassinados.

— Caçados? São caçados por humanos? — Ayla estava boquiaberta.

— Gar está mencionando as estacas, que não funcionam, diga-se de passagem — disse Nik — balas de prata, destruição de florestas para afastar elfos, ninfas e fadas e outros seres ligados a elas, exorcismos, bruxos tostados em fogueiras. E nossas guerras idiotas entre nós mesmos. O conhecimento de milênios dos Nigba nos manteve vivos, e como é impossível nos manter unidos como um só povo, estabeleceram o regulamento. É dito que os Nigba podem exterminar qualquer um de nós com um piscar de olhos.

— Não faz muito sentido. Por que todas essas brigas? Não deviam fiscalizar? Parar? Criar um presídio sobrenatural? — indagou Ayla, confusa.

Nik, Gar e Beatrice gargalharam.

— Por que estão rindo? — A confusão deu vazão a irritação.

— São ordeiros, não tirânicos. — Nik se sentou. — E entendem que nosso equilíbrio depende do caos. Entre nós a paz é tão impossível quanto é para os humanos comuns. Não importa, há coisas que não mudam. Você entenderá melhor com o tempo. O mais importante a saber é não se envolver com os Sobrenaturais. A não ser que se descubra como um deles. E espero que tenha a sorte de não ser.

— Por quê? Qual o problema dos Sobrenaturais?

— Seguem leis próprias, bem peculiares, ou nenhuma lei. E são normalmente territoriais e perigosíssimos para humanos — Nik respondeu, solícito.

— E Andras pode se oferecer para te acompanhar à casa de gente tão importante? — Ayla estava ainda mais desconfiada.

Beatrice deu de ombros e ambas focaram Gar.

— Enquanto dormiam cuidamos dos detalhes e nos oferecemos para levar Beatrice até a Mansão Nigba desde que permitissem que a acompanhássemos. Prometemos protegê-las e cumpriremos com nossa palavra. — Gar esfregou o nariz no rosto de Beatrice, como cachorrinho a acarinhar ao dono. — Você é muito bagunceira. Já tenho três itens na minha lista para resolver desde que te conheci. Ah Bia, assim você me magoa.

— Vem. — Beatrice agarrou a mão dele. — Vem fazer amor comigo. — Jogaram-se na cama entre Nik e Ayla.

— Santo Deus! — Ayla se levantou, apressada. — Vem, Nik. Vamos sair daqui.




Bạn đang đọc truyện trên: AzTruyen.Top