15 - Revelações
Viajaram num silêncio tumular até a casa de Andras, e Ayla não entendia o motivo de tanta solenidade. Elias carregou Beatrice desacordada. Gar o acompanhava, pálido como cadáver, olheiras escuras e profundas, o semblante enrugado de preocupação. Colocou Beatrice sobre a cama coberta pela colcha acetinada e negra, grande o bastante para caber várias pessoas, no centro do aposento, sem encostar em qualquer parede. Elias acendeu os candelabros e Andras organizou os vasos de flores de modo a circundar o leito. Lírios e orquídeas brancas contrastavam com o negro predominante do aposento e com as rosas vermelhas sobre o altar, no qual havia crânios humanos, velas e a malga de alabastro. Gar tirou os sapatos e se deitou ao lado dela. Devotou beijos e afagos enquanto a aninhava, carinhoso.
Elias segurou o tomo pesado retirado do altar e recitou a litania em idioma desconhecido. Andras passou o braço por seus ombros e a guiou para fora do aposento. Resistiu, não desejava acompanhá-lo escada abaixo. Elias ainda recitava a litania no recinto fechado e estava curiosa demais.
— Precisamos deixá-los, Ayla. A interferência de nossa energia pode prejudicar mais do que ajudar.
Estaria disposto a explicar? A contragosto o alcançou. Atravessaram o limiar sem portas e Andras colocou-se detrás do balcão de alvenaria de tijolos terracota. Desviou do divã recamier rosê e defrontou a janela. Gentil, o diabo perguntou o que queria beber. Inquieta, não sabia dizer se havia tensão no ar, ou estava afetada pela situação, ou ainda se Beatrice emanava o poder do poltergeist. A névoa mística cortinava toda a mansão, caía cintilante e cristalina sobre as luminárias do jardim. O sedutor contemplou a paisagem, entregou o cálice e disse.
— É contrafeitiço.
— Contrafeitiço? — Ayla o focou.
— Os Maier aplicaram o feitiço e como pôde ver, não se saíram bem. Tentaram despertar as memórias de Faure, possível que queriam tomar alguma informação a força, todavia existem memórias as quais é melhor não se lembrar.
— Está insinuando que o poltergeist é uma memória?
— Ao que se refere ao dizer "poltergeist"?
— Nik disse que quando Bia fica muito furiosa desperta o poltergeist. Move objetos, quebra a casa inteira, incendeia, essas coisas. E não se trata de um espírito na casa em si, como acontece com as casas mal-assombradas, falou se tratar de possessão, mas não tinha conseguido estudar profundamente. E Gar deve ter algo parecido, não é? Eu vi como se derramou sobre ela como cobertor negro e a enrolou feito rocambole. Não são bruxos, não é? Vocês são outra coisa, não são? Eu não sei do que os bruxos são capazes, porém vi o que Gar fez, notei como ficou imenso e negro deitado sobre ela. Se transformou em algo.
— Você vê demais — falou com gentileza conquanto ameaçador. — E sob certa perspectiva podemos dizer que o poltergeist é como uma memória no caso de Faure. E não, Gar não é bruxo
— E o que é?
— É como Faure. Exatamente como sua amiga.
— E o que Bia é?
— Se ela não te contou, não sou eu quem vai contar. Entretanto, sei que necessita de respostas, é um mundo novo para você. Podemos dizer que Gar tem um tipo similar de poltergeist. Porém, não podemos discutir sobre os outros se quisermos manter boa convivência. Não nos interessa o que são se os tomamos como aliados.
— Você sabe. Como sabe?
— Eu posso ver.
— Como um dom?
— Como potência.
— E por que Beatrice está estranha daquele jeito? Como se estivesse doente?
— Não sei ao certo, não tenho como saber de tudo. — Andras bebericou o uísque. — Notei que Faure tem a habilidade excepcional para abrir portais. E apesar de não saber como consegue, isso explica bastante a maior parte das confusões em que se mete. Não sabemos para onde levam os tais portais e por consequência não sabemos quem ou o que pode atravessá-los. E magos com habilidades assim podem causar grande desordem nos vários mundos e dimensões. E o que vimos essa noite não se tratou de apenas abertura de portal. Faure amplificou o poder a tal ponto que além de se matar, nos mataria junto. Nunca vi algo assim antes. Não abriu o portal. Ela era o próprio portal. Por isso Gar se estendeu e se enrolou nela. É como abafar o fogo para apagá-lo, entende? Faure drenou-se e está adoentada. Entretanto, não precisa se preocupar, Gar fará com que fique bem.
— Ele opera milagres de cura como Jesus também? — perguntou debochada.
— Não nos subestime, Ayla.
— Ficaria mais fácil se você me dissesse o que você é. Por que aparece em meus sonhos?
— Você me chamou.
— Como assim eu te chamei?
— Não se lembra de um ritual que fez na adolescência? Quando se sentia cansada de tudo e de todos? Alguém ouviu.
Como se lembraria? Ao estudar magia na juventude se pôs a praticar tudo e qualquer coisa as quais via pela frente, não tinha crivo, não sabia o que estava fazendo. O sorriso com o canto da boca a deixou ainda mais desconfiada. Como Andras poderia ter ouvido os rituais? E se sentiu envergonhada, vários dos feitiços foram feitos para atrair o amor, conhecer ao pai. Invadida, sentia-se invadida.
O que ou quem era Andras? Ocultista, Nik dissera. Contudo, acabara de mencionar que Gar e Bia eram semelhantes. Humanos possuídos por poltergeits? Pessoas possuídas a faziam lembrar de filmes de terror com padres exorcistas e famílias inteiras dizimadas. Como a mãe de Beatrice morreu?
Quiçá Andras fosse mago habilidoso e soube de suas ações através dos sonhos dela. Não eram os sonhos um amontoado aparentemente desconexo de memórias, reorganização mental e desejos? O cérebro não buscava resolver os próprios traumas e problemas através deles? Leu sobre magos capazes de fazer projeção astral, conscientes dos mistérios do universo e outros planos de realidade, ou dimensões, capazes de adentrar nos sonhos das pessoas. Andras fez isso?
Naquela altura todos os absurdos sobre os quais leu e ouviu apresentavam-se mais reais e palpáveis do que qualquer conceito relativo à realidade explicada pelos cientistas. Ainda assim não respondia o essencial. De onde a conhecia? Por que ela?
— Por que eu?
— Por que você o quê?
— Por que me escolheu para invadir meus sonhos?
— Já disse. Chamou a atenção de alguém que talvez não devesse. Muitos de nós estamos ligados a seres e forças incompreensíveis. Para te explicar o que me pede, teria de me expor e não desejo isso. As forças as quais me regem não desejam tampouco. E está mais segura em não saber dos detalhes. Esse é o básico para todos nós, pensei que Faure tivesse te explicado sobre esses detalhes. — Depositou a mão sobre a têmpora e colocou a mecha do cabelo perolado de Ayla atrás da orelha dela. — Entenda, Ayla, nem tudo me convém contar. Esperava que você soubesse por si mesma, ou por aqueles a quem você é importante.
— E para quem sou importante?
— Não sei dizer. Todavia, desde que te conheci soube que você e Beatrice são importantes para mim.
Importante como? Mas, não ousou perguntar, pois o afago tornou-se morno, calmo como um lago onde patos se põem a brincar. O frio na barriga causado pela aproximação lenta, ansiava ao beijo, desejava os lábios rosados aos quais Andras umedeceu pouco antes de apertá-los contra a boca dela. Não era certo, os sonhos jamais terminavam bem quando se rendia dessa forma.
E transou com Beatrice. E parecia assertivo questionar se a bruxa assanhada tinha algum plano de ficar com ele novamente. Nunca disse nada, apenas que transaram por quatro vezes com o descaso de sempre. E não acreditava ser real o comportamento indiferente da bruxa desmaiada, ninguém tinha capacidade para tanta insensibilidade. Não parecia possível transar tantas vezes com a mesma pessoa por uma noite inteira sem se interessar em algum grau.
Estava angustiada, ainda assim não se negou a experiência. O desejava muito. As memórias da adolescência. O diário onde milhares de páginas falavam sobre os sentimentos de amor, os quais nutria feito maluca pelo demônio onírico. Por ele. Por Andras. A língua macia massageava a dela, os sentimentos subiam e desciam numa onda de sensações e conflitos. Como se o beijo de Andras incitasse o caos em seu âmago. Com as mãos espalmadas contra o peito o empurrou.
— Não acho que isso seja certo com Bia. Por mais que tenha conhecido vocês dois no mesmo dia e não saiba nada a respeito de ambos. Não creio na indiferença dela. Penso que finge. Vi carinho nos gestos dela para Nik, Bel e Gar. Em essência ela se importa. Arrisco até dizer que se importa comigo também. Não me decidi sobre isso, mas entre Bia e você, prefiro a amizade dela.
— Acha que Faure se importaria com você? — Acariciou a borda do copo. — Acredita que ela não estaria transando comigo agora, se fosse você fragilizada na cama a esperar pela cura de Elias?
— Eu não sou a Bia.
— Quão nobre!
— Talvez. Como pode saber o que ela faria?
— Porque reconheço a natureza dela tão bem quanto reconheço a minha.
— E não dar a mínima para o que ela está passando é a sua natureza?
— Se não me importasse com ela, não a teria caçado como fiz ao sentir que estava em perigo.
— Como sabia? Como sabia que Bia precisava de você?
— Nos unimos ao transarmos.
— Como assim se uniram?
— Um ritual para colocá-la no lugar onde é dela por direito. Preciso protegê-la e para tanto preciso saber o que se passa com Faure.
— Estabeleceram comunicação telepática?
— Algo como isso. Não posso saber o que se passa na cabeça dela, nem ouvir os pensamentos, ver as imagens mentais, conhecer suas memórias. Não, isso não posso fazer de modo nenhum. Assemelha-se mais com ondas de vibração, como um radar. Posso encontrá-la em qualquer local, sentir se está bem ou correndo perigo. Invadir a mente dela seria problemático, bem mais do que toda a situação já é em si.
— Por que faz isso? O que quer da gente?
— Podemos dizer que tenho por hobby proteger Bastardas.
— Está mentindo.
— Estou omitindo, isso é certo dizer, entretanto não minto para você. Jamais minto.
Tentou beijá-la outra vez, todavia Ayla evitou o contato. Do outro lado da vidraça a névoa esbranquiçada ondulava sob as luzes. Nem se importava com o que Andras tinha para mostrar, encurralada como bicho, estava assustada. O novo mundo encolhia ao redor, não podia escapar, porque as perguntas exigiam respostas. Queria encontrar o pai, saber o que herdou dele para colocá-la naquela encrenca. Como se a dor da ausência dele não fosse suficiente. E não podia mais mentir para si mesma. Não suportava o mundo comum, cheio de objetos, porém insubstancial, vazio de sentidos.
Ser chamada de Bastarda remetia a ideia do filho de alguém importante, como nos filmes, sofre toda a vida e então descobre a verdade sobre si. Transforma-se em alguém poderoso, muda o mundo, a política, a si mesmo. Tentador se ver no papel de heroína, e perturbador se ver rodeada por pessoas como Andras, Gar e Beatrice. Não se sentia como eles. Não era como eles. Sentia ser diferente, qualquer outra coisa embora não fizesse ideia do quê.
Conversar com Cassiel poderia ser efetivo. Não obstante, se o anjo da guarda nunca disse coisa alguma ao longo do tempo, por que faria agora? Era um inútil e quanto mais os absurdos aconteciam, mais certa estava de que o anjo não prestava para nada. Só dava ordens, "saía daí", "não abra a porta", sem qualquer explicação, como se tivesse por intenção deixá-la cega.
Andras beijou seu pescoço, a envolveu nos braços e mirou o jardim com o queixo pressionado no ombro dela. A respiração morna e sibilante rente ao ouvido eriçou os pelos. Precisava escapar, render-se ao desejo intenso o qual o contato despertava era previsível. E por mais que quisesse, por mais bonito e sedutor, não colocaria em risco a possível amizade com Beatrice. Não tinha se decidido, porém se estava pronta para se aventurar no mundo louco deles, estabelecer vínculos afigurava-se imprescindível.
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