14 Poder
Tempo demais. Passou-se tempo demais e ninguém falou com Beatrice. Estava na segunda garrafa de tequila, e sabem os deuses quantas outras de gim e conhaque tomou antes disso. As pessoas dançavam, transavam, bebiam, saltavam, caíam pelo corredor escuro. O ar vaporoso, quase irrespirável. O corpo sacolejando pela vibração da musica eletrônica. E ninguém a abordou. Ninguém interessado em seduzi-la, sintomático sem dúvida, ainda mais na Sunshine, onde as pessoas transariam com absolutamente qualquer coisa. O moço dançando com a coluna da parede e a moça rebolando no tamborete eram significativos, figuravam a verdade universal. Balançou a cabeça em concordância e entornou a tequila.
Havia tensão no ar, indiscutível. Íons negativos e positivos se formavam na atmosfera como resultado da tensão e radioatividade. Tóxico. Se Bia se esforçasse um pouco mais, veria minúsculos raios de eletricidade e estática. Discrição, qualidade pela qual os bruxos não podiam se vangloriar, e faltaram dedos nas mãos e nos pés para contar quantos passaram a encarando e ainda assim não a abordaram. O que estavam esperando? Kael chegar? O sorriso de Beatrice se abriu, todos a resistiam, porém não ele, não Cassius.
— Outra tequila. — Jogou a comanda sobre o balcão. E o encarou com o olhar mais sedutor e maligno do seu arsenal de sedução. Cassius tinha lá seu charme embora bruxos não trouxessem boas recordações, todavia depois de várias bebidas quem se importava com memórias?
— Não importa o quanto tente, jamais saberei o que esperar de você — Cassius sussurrou no ouvido e o roçar de seus lábios produziu uma onda de calafrios em Beatrice.
Talvez o bruxo não pudesse, não obstante Beatrice sabia e a noite não seria nada fácil. Não, não seria. A palidez e a beleza sobrenatural o denunciavam. Acompanhando Cassius como guarda-costas, Hugo Theodoro, vampiro antigo e bem conhecido, definitivamente não devia estar ali. Desde quando os Maier estavam andando com os sanguessugas? Não trouxe nenhuma arma contra vampiros, nunca precisou, sempre andou na linha com os sobrenaturais, na medida do possível, claro. Pegou a garrafa cheia e apertou o celular no bolso, melhor se certificar de estar à mão, nunca se sabe quando é necessário pedir por resgate.
— Desculpe te fazer esperar. Estou tendo uma noite cheia.
— Muitos problemas?
— Sim, muitos. E você é o único problema ao qual não gostaria de ter essa noite.
— Eu não vim causar confusão, Cassius.
— Você é o prenúncio do caos, Beatrice. Sempre achei graça quando me falavam isso, porém com o tempo fui obrigado a concordar.
Beatrice tirou a pequena ânfora da bolsa e mostrou para Cassius. Delicada e antiquíssima, em ouro envelhecido com rubis cravejados nas alças. As letras do alfabeto árabe transcorriam nas pupilas dilatadas do bruxo, cada uma das quais estavam inscritas no corpo bojudo do objeto brilhante. Moveu o vaso, mostrando o símbolo incrustado em lápis-lazúli e fios de ouro na tampa. Sorriu, deleitosa, quando o bruxo esticou a mão para agarrá-lo, fisgado e fascinado, e afastou a peça. Cassius fechou o punho no ar e entreolharam-se. Item raro e valiosíssimo, especialmente para bruxos. O Maier queria. Ah se queria! Reconhecia o desejo nos olhos dos homens como ao próprio rosto no espelho. Febril, incômodo, urgente. O cheiro do desejo ardente. Implorando para ser saciado.
— Te dou o Djinn se me deixar entrar na biblioteca.
— Onde conseguiu isso, Beatrice?
— Mercado negro? Objetos de colecionador? Uma foda bem paga? Quem sabe? — Sorriu. Fitou ao vampiro, desconfortável, e enfiou o objeto na bolsa.
Desde quando os Maier estavam com eles? Algumas regras nunca deviam ser quebradas, magos e bruxos tinham contratos explícitos de não se unir a qualquer dos clãs dos sobrenaturais nas redondezas. E embora não os conhecesse tão bem quanto devia, não podia desconsiderar a força e agilidade da criatura. O ar ficava mais denso e irrespirável, tóxico e elétrico. Algo se remexia no âmago, não estava segura e não queria arrumar briga com vampiros. Em que merda você se meteu agora, Bia?
— Bel está chateada com você. — Cassius retirou o objeto brilhante do bolso e o escondeu na mão.
A filósofa deu de fofocar também? Por que Bel não se comportava como uma mestiça normal como todo mundo? Estava certo, terminara o relacionamento da pior forma possível. Devia ter sido mais delicada. Enlouqueceu com a morte de Olin, caramba! Por que tinha de ser difícil entender quando a pessoa só quer morrer? As pessoas morrem... As pessoas morriam... Olin morreu e ela não. Se foi e Bia ficou. E o mundo desbota quando coisas assim acontecem. As estrelas se apagam, o uísque perde o gosto, o sexo é benzodiazepínico. Nada disso expressava de que a amava menos ou nunca a amara. Contudo não se pensava em Bel e suas bobeiras quando a escada estava a uns três metros e ainda tinha de atravessar a pista, bem mais cheia do que horas antes.
Duas mulheres conversando despreocupadas a alguns passos, não pareciam seguranças ou bruxas. Dois homens se beijando loucamente, brigavam para ver quem ficava recostado na parede, a um passo de caírem da janela para a pista de dança, também não representavam ameaça. Havia várias pessoas encostadas no balcão. Paqueravam, bebiam, conversavam, e alguns dentre eles afiguravam-se perigosos, tinha certeza. E Beatrice correu.
Desviou do primeiro. Saltou como sombra negra do balcão sobre ela. Que diabos era aquilo? Bruxo, humano ou vampiro? O segundo a apanhou pela cintura a um passo da escada. Escorreu das mãos fortes conquanto instáveis, tropeçou, apoiou-se nos ombros do homem e encolheu-se ao ser esbofeteada por ele. Se enfiou na aglomeração da pista de dança. Luzes piscando, o calor sufocante dos corpos suados, o corpo vibrando e sacolejando com as batidas eletrônicas, contraía o abdômen para passar entre os dançantes fedidos e grudentos. Estava fodida de novo, devia considerar psicoterapia.
Algo enlaçou o pé e caiu. A boca se encheu do gosto metálico do sangue e pressionou os dentes para se certificar de que ainda os tinha. Lutar era inútil, apesar disso fincou as unhas no piso nojento, apoderava-se de pernas alheias pelo caminho, arrastou consigo inocentes distraídos e derrubou outros como pinos de boliche. Todavia nada era capaz de contrapor a força violenta a qual a arrastava.
O óbvio, sempre terrível, certeiro. Merda, como era lindo! Hugo a tomou nos braços como se fosse tão leve quanto pena e cravou o olhar tenebroso e inebriante. As írises negras contornadas pelo círculo carmesim fizeram o torpor percorrer cada célula, desmanchou-se nos braços dele como boneca de pano e desejou o beijo mortal. Maldito feitiço de vampiro. Não poderiam só transar, dar uma mordidinha aqui, outra ali, sem qualquer compromisso?
Roçou a pele fria na face dela e o nariz resvalou gélido no colo. Não, não com presas no pescoço. Ninguém merecia morrer assim, rendido, sem qualquer controle sobre os músculos, ansiando a mordida, aspirando a morte, somente por causa da beleza e sedução do assassino. Conhecia a sedução, nada mais divertido, ainda assim consistia em golpe baixo retirar a força da vítima daquela maneira. O contato frio entre as sobrancelhas, rolou os olhos para cima, Cassius sorria apertando o objeto brilhante contra a tez dela e o torpor misturou-se a imagens e vibrações intensas e coloridas, como se tivesse tomado um alucinógeno superpotente.
Caiu no chão feito trouxa, as costelas ainda sensíveis doeram, entorpecida, como se estivesse à beira do coma alcóolico, virou a cabeça. As pessoas na pista derretiam como se feitas de cera. Caralho, estava muito drogada. Outra pontada, dessa vez não nas costelas. A dor intensa, a angústia sufocante, o mundo desbotado, a chuva batendo contra os vidros do carro. E Olin, lindo, caminhando entre o mar de deformados, revelou os dentes brancos por detrás dos lábios grossos, um beduíno sedutor. Como Gar? Parecia com Gar? Semelhantes, sutilmente semelhantes. Como nunca percebeu isso antes? O que Olin fazia ali?
— Existe algo de você ao qual quero mais do que o Djinn e o tomarei essa noite sem dar nada em troca.
Cassius se curvava sobre ela, o vampiro a empurrou com o pé, ficou de quatro e tentou se levantar, não obstante o corpo estava pesado demais, os braços tremiam, esforçava-se, entretanto não conseguia controlar os próprios músculos.
— O que é isso?
— Pietro, Beatrice. Onde está seu amiguinho?
— Não sei de Pietro. — Arqueou-se sob a intensidade do chute, caiu de lado e gemeu. — Mas, que diabos! Por que não encontram outro método de tortura?
Espremida, como se a enfiassem numa caixa metade do seu tamanho, em posição fetal, os ossos se estalaram como se estivessem para romper. Gritou, as mãos se contorceram, os tendões repuxavam.
— Já que insiste!
O tilintar das correntes presas ao cós da calça. Não, não, Cassius! Não me leve para aquele dia! O sorriso, como amava o som do riso de Olin, os dentes perfeitos e brancos morderam o queixo dela, e apertou o papel embolado na palma de sua mão. Por favor, não esse dia, não esse momento!
"Dei-te todo o meu sangue, cada gota de suor, a você me dei, extingui, pois somente vivi depois que te conheci." O poema dele sussurrado na mente e ao mesmo tempo o lia, nítido, no guardanapo de papel. Tão ridículo! Tão amorosamente ridículo! Meu Olin. Meu amor. Mais amado que Adônis. Mais lindo que Narciso. Mais poeta que Pessoa. Mais perdido do que o paraíso de Milton. Tão doce. Tão amorosamente patético. Eu te amava tanto. Te amo... tanto...
— Não, Cassius, não!
— Olin, não é? Bel ficará decepcionada quando contar para ela que sua memória mais cara é dele. Está se lembrando do dia em que o matou?
"Estamos ferrados, não foi uma boa ideia abrir aquele portal. Os LeBlanc deram o livro errado, não foi, Bia? Tem noção do que conjuramos, amor? O que acha que é?" — Olin repetia o mesmo discurso, as mesmas perguntas, sentado no banco do passageiro, olhando para trás, atento ao momento em que aquela coisa os alcançaria.
— Sou piloto, porra! — Beatrice gritou.
Desnorteada, a discoteca e os dançantes deformados, o vampiro encarando-a com cara de poucos amigos e Olin dentro do carro, tudo ocorrendo simultaneamente. As mãos escorregaram no chão molhado, grudento e nojento da boate. Gemeu e se contorceu, a maldita dor como se estivesse sendo enfiada dentro de uma lata de sardinha psicodélica, as costelas estalavam de novo. Cassius apertou as bochechas dela, forçando-a violentamente a encará-lo.
— Onde está Pietro? Onde estão seus amiguinhos? Você é uma vagabunda que transa com qualquer um, deve saber onde estão.
— Ao contrário de você, eu sigo as regras. — Cuspiu.
— Você, Beatrice? Segue regras?
"Nós ficaremos bem, amor. Já passamos por coisas piores antes, não é?"
— Não dessa vez, Olin. De novo não.
Não suportava a mera ideia de não o ter velado, de não o tocar pela última vez, dito adeus como deveria. Não era boa quanto disse ser, sequer era bruxa, não devia ter confiado tanto nela, nunca deveria ter confiado. Nem sábia, tampouco poderosa. Não sabia o que estava fazendo. Por que não disse a verdade? Por que nunca contou?
As milhares de sombras como pássaros negros e gigantes sobrevoando o automóvel, apagando as lâmpadas da iluminação pública, a chuva caindo pesada, o sacudir estranho do carro como se fosse capotar... E as pessoas derretendo na discoteca, a gosma de carne feito pudim asqueroso se formava ao redor. Tinha que ir para a casa abandonada protegida pelo escudo mágico. Salvaria Olin assim, alguns poucos quilômetros na rodovia, 30 minutos talvez, só 30 minutos. Precisava correr dali. Escapar de Cassius. Salvar Olin. Seguir para a casa, acionar o escudo com magia e avisar Nik sobre os LeBlanc.
"Ao menos sabe que seu pai é um homem importante, e virá quando chegar o momento, não precisa mais se preocupar em procurar por ele o tempo todo. ." Pare de falar, Olin, amor, pare.
A musica parou, a gritaria sucedeu-se ao estrondo, a primeira dor a deixou para dar lugar a outra. Dessa vez as pessoas a pisoteavam, os entulhos caíam. Tossiu, a nuvem de poeira a sufocava. Bomba? Aquilo foi uma explosão? Engatinhou, escorregou, a pisotearam outra vez, levantou-se em pura dor e agonia. Que diabos estava acontecendo? Na algazarra e envolta pela nuvem densa de poeira e estilhaços, não conseguia ver nada. Sufocava e lacrimejava. Chovia e Olin falava.
A parede desmoronou, estilhaços ainda voavam, outro estrondo e o teto ameaçou cair. Os vampiros escalaram as paredes restantes, milhares deles, Sunshine parecia um covil. Como não os tinha percebido antes? E o horror. Lobisomens invadiam, a matilha incalculável, saltando selvagens, partindo pessoas ao meio com as garras e poderosas mandíbulas. Em que merda os Maier se enfiaram? A bolsa empapada de sangue a uns dois metros de distância debaixo do pedaço de concreto e do braço mutilado de algum infeliz. Não, não ficaria ali para saber da confusão. Que se danassem! Tossia, Olin falava sem parar, agarrou a bolsa e misturou-se aos festejadores assustados.
A rua abarrotada de carros, vários com tetos afundados, seres noturnos, os quais decididamente não deviam estar ali, saltavam sobre eles, desmembravam pessoas, escalavam as paredes dos prédios. Correu em direção ao estacionamento, como tantos outros. Entretanto, alguns não conseguiam ir longe, com forte impacto, viravam rapidamente comida de lobisomens. E se fossem apenas os lobos estava tudo bem, porém havia seres aos quais nem conhecia. Mestiços desconhecidos. Aberrações monstruosas. Sim, os Maier se enfiaram numa merda maior do que a dela.
O barulho abafado, a dor aguda como se todo o tórax tivesse afundado. Dentes imensos resvalaram na pele, a baba nojenta caía sobre a face dela, olhos dourados e faiscantes. O cachorrão parou, rosnou, elevou a cabeça e uivou. Mostrou as presas de novo, bípede, monstruoso, deslizou o focinho úmido em seu pescoço. Pietro? Corria o risco de perder a mão, uma abocanhada e já era, nunca mais masturbaria ninguém a contento, todavia acariciou a pelagem grossa.
— Pietro? — murmurou.
O lobo saltou e a escoltou, precedendo-a até o estacionamento. Fez uma vênia selvagem e a deixou. Regras existem para serem quebradas, caralho! Beatrice gargalhou, suas transas a salvavam mais do que qualquer outro herói poderia. Os faróis piscaram, abriu a porta do carro, a voz de Olin e os rosnados de Pietro confundiam-se. Quando o maldito feitiço passaria?
— Sua cabeça está a prêmio, Beatrice — o vampiro falou ao atropelá-lo e não se preocupou, pois entrou numa luta feroz com o lobo. Pietro?
O caos. Buzinavam, gente pulava e corria sobre os carros, inclusive o dela, batiam à porta implorando ajuda. O apocalipse! Ligou o para-brisa para remover o sangue espalhado no vidro do cadáver jogado sobre o capô. Caralho, o carro era novo e pagou caro! Dobrou a esquina, contramão, claro, congestionada, contudo, o fluxo melhor do que a avenida. Desesperadas e assustadas demais para raciocinar as pessoas se matavam. Tiros, confusão, gritaria. A cidade. Olin.
Caos? Qual caos? Mais uma noite tranquila e previsível no mundo de Beatrice.
O choque. O tremor. Escura, sombria... A estrada se revelou. Não tinha outra opção. Não havia outro caminho ou atalho. Olin ao lado. O coração descompassou. Estava a tocando? Olin estava de fato tocando sua mão?
— Nós vamos sair dessa, amor. — Olin a afagou, terno.
Freou o carro, abrupta. O som da derrapagem misturou-se a buzina. O carro detrás ziguezagueou a frente do seu, a luz dos faróis se arrastou de um lado a outro da estrada escura. Estava lá, sentado, no banco do passageiro, abriu o porta-luvas e pegou o livro. O estrondo. O carro balançou. Hugo esmurrou o vidro ao lado. Olin falava, as mesmas coisas, repetidas vezes. Vai quebrar. Vampiros eram fortes, muito fortes, quebraria o blindado com facilidade. Pisa no acelerador, Bia! Você está sozinha. Sozinha. Não é real, Olin não é real.
— O que quer de mim? — gritou, ensandecida. — Pietro está lá! Pietro está na maldita boate! Me deixa em paz, filho da puta!
Outro soco, o vidro ameaçou rachar. Engatou a marcha, só pisar. Acelera! Precisa ir para casa, qualquer casa serve. Musica. Olin não é real, não está aí de verdade. O pé afundou no acelerador. Feitiço, Bia, lembra? Está enfeitiçada. Dirigiu para vir, dirigirá para voltar. E o penhasco?
"Temos que encontrar o possuidor do Bastão de Salomão, amor, seja o que isso for" — Olin repetia.
Não, Olin, amor, fica quietinho, preciso que me deixe dirigir. O vampiro sentia o cheiro do pavor, da tristeza. Uma casa, só preciso de uma casa. As luzes do painel, o ponteiro digital... cem, cento e cinquenta, duzentos quilômetros por hora... Precisava da casa naquela noite também, não? O motor aguentava. E o vampiro também. O carro era potente, tinha tantos cavalos que até esqueceu quantos. Mais de um sanguessuga. Quantos?
Debruçou sobre o volante, pressionou a testa contra o vidro dianteiro, o céu cintilante. Não estavam acima? Sombras corriam ao lado do carro. O penhasco. A empurraria? Empurraria o carro na curva maldita? Os faróis no retrovisor. Um carro a perseguia. Maier ou LeBlanc? A bolsa trespassava o corpo de Olin, fantasmagórico, não era real, enfiou a mão, a ânfora. Onde estava a maldita ânfora? O Djinn poderia ao menos atrasá-los. O celular vibrou. Não, não tinha tempo para ligações. Apertou o volante, inclinando-se para frente. Os vampiros voavam?
— Princesa? Está me ouvindo? — A voz de Gar sobrepôs a musica, o bluetooth.
— Gar?
— Pare o carro, Bia.
— Tem vampiros atrás de mim, não posso parar.
Uma pancada e o carro balançou, segurou firme o volante, ziguezagueou, as faíscas passaram pela janela ao raspar no corrimão metálico da estrada. Outra pancada e a terceira, e o carro ameaçou tombar. A noite retornou como se tivesse cruzado o portal para o passado. A exata rodovia, o mesmo trecho, Olin ao lado, a mesma musica, os pingos grossos batendo barulhentos contra o vidro, o para-brisa de um lado para o outro, o guardanapo de papel com o verso escrito à mão apertado contra o volante. Sempre guardava os guardanapos poéticos de Olin. Temos que encontrar o possuidor do Bastão de Salomão, amor, seja o que isso for.
— Bia, para o carro! Posso fazer algo se parar de se mover. — Silêncio. — Parou de me responder, não sei o que está acontecendo. Bia, fala comigo!
— Não, isso não está acontecendo. Não é real, Bia, não é real. — Falou em voz alta.
— Bia, o que está acontecendo? Fala comigo! — Gar vociferava, aflito.
Negro e tenebroso, esticava-se como um lençol sobre eles e as sombras escorriam pelos vidros como piche. Tinha certeza de que chegaria, os salvaria, porém não contava com a curva. Dirigia bem, o único talento digno de nota além de ser boa de cama. Olin recitava a invocação em latim retirada do livro. Não, não entendia o que dizia, não sabia o que conjurava. Confiava nele. Acariciou a mão dela sobre o câmbio do carro e sorriu, movendo os lábios, sem parar de recitar.
Outra pancada, escorregou para o acostamento, faíscas saltavam da lataria. A curva. Pare o carro, Bia, vai matá-lo! A visão turvou, a luz dos faróis sobre o asfalto não era mais do que um borrão detrás da cortina de água escorrendo sobre o vidro. O penhasco! Pare o carro! "Veni Creator Spiritus, mentes tuorum visita, imple superna gratia, quae tu creasti, pectora." — Olin invocava. O penhasco!
Freou, abrupta, e guinou o volante. O carro derrapou e o outro automóvel em seu encalço perdeu o controle. Cinco deles. Cinco vampiros agarraram a porta. A queda. O grito. Olin xingou. Merda! Íngreme, as ferragens afundaram para dentro da estrutura metálica, rodopiou tantas vezes, capotaram pela eternidade. Olin não falou de novo, não gritava mais, e o carro ainda girava, batia em pedras, despencava de alturas consideráveis. O silêncio, não do carro... o cheiro de gasolina, a dor, a maldita dor, respirar doía. O silêncio do amor. Os trovões, os clarões, engolia sangue, cheirava sangue... Vermelho, viscoso, grudento. As pálpebras pesavam.
— Olin? Amor? — Chorou, desesperada. — Grita, Olin. Me xinga! Como quando brigamos. Quando está tão zangado que não consegue baixar o tom.
Do mesmo modo, os vampiros, assim como o demônio, arrancaram a porta ao lado. Não podia desmaiar. De pé, Bia, firme! Vamos tirar Olin das ferragens. Levá-lo para casa!
— Respira, amor, respira.
Desceu do carro, os vampiros avançaram. A fúria! Não, reviver aquela dor não! Me forçar a matar Olin de novo não! A onda vaporosa ampliou-se em torno dela, a energia feito aura zunia como um campo eletromagnético, o corpo misturava-se a névoa negra e tóxica, e os olhos se iluminaram num brilho carmesim intenso. Ódio. O mais puro ódio. A dor. Os LeBlanc a enganaram, fizeram-na evocar o ser terrível, o demônio que os derrubou no penhasco.
Os cinco vampiros se destacaram. A escuridão deu lugar ao deserto, as falésias saibrosas competiam em beleza com a única tamargueira da região, árvore na qual a serpente se enrolava. O vapor soprava escaldante, a névoa e o ódio aumentavam o poder no âmago de Beatrice, alimentavam-no. A escuridão outra vez... A aura energética e vibrante se intensificava na mistura de fumaça negra e roxa, e se expandiu. O fumo adentrou nos corpos dos sanguessugas e ressecavam lenta e dolorosamente. Fendas escaldantes abriam-se sob a derme, como se houvesse sol no interior dos dentuços.
O campo vaporoso se expandiu, o carro vibrou e os vidros estouraram. Os juncos brutalmente arrancados foram sugados para o alto. O espaço se dobrava, o tempo suspendeu. Adiante o portal se abriu como um buraco de minhoca espacial. Nebulosas o circundavam e figuravam as paredes como uma galáxia rodopiante e luminosa.
Vá adiante, Bia. Atravesse o portal. Deixo-o aspirar tudo. Resolva. Expanda a energia. Traga o caos. A verdade está do outro lado do portal. Leve-os consigo — a voz ressoava, mística, incorpórea.
A chama negra ardia no âmago.
"Renda-se, Beatrice, entregue-se à sua essência." — sussurrou a voz etérea e inumana.
— O Poltergeist! Nik avisou que acontecia. — A voz de Ayla, porém não importava, o passado e o presente se mesclavam, tiraria Olin das ferragens, atravessariam juntos.
— Vai nos matar! Para, Faure! — bradou Andras.
Os vampiros se desintegravam num misto de chamas e derretimento, feito parafina. O impacto no meio das costas, como se acertada por um touro, caiu de bruços, sem ar. Gar a virou, a fez encará-lo. O cabelo escuro esvoaçava e o semblante crispava com a força poderosa emanada dela, o toque quente dele escorreu suave sobre seu maxilar. Como Olin. Parecia Olin. Lindo como seu amor.
— Não chore, Beatrice. Seja o que for, já passou, minha princesa. Volte, não deixe a chama negra te consumir. Volte pra mim, Bia.
Estava chorando? O que dizia? Confuso, tudo estava confuso demais. Os olhos de Gar se acenderam, rubros feito o sol poente e tão mornos quanto. A beleza viril mesclava-se a face monstruosa, como se a carne do rosto se desgarrasse, e a musculatura se revelasse, desumana, diabólica, como hachuras numa pele grossa e vermelha. A mistura de passado e futuro do feitiço de Cassius? O demônio daquela noite se mesclava ao semblante de Gar?
— Controle a chama negra, princesa! — Gar gritava. — Faça-a diminuir. O carro vai explodir, estamos expostos. Vai nos matar se continuar. Controle a chama negra, Beatrice.
O calor do semblante roçando no dela, Gar encaixou a cabeça em seu ombro, a pressionou ainda mais forte contra o asfalto. Algo cálido, quase tórrido, emanava do peito dele afundando como lava para dentro de Beatrice. Sândalo, mirra, almíscar... todos esses aromas emanavam de Gar. O colar dela se acendeu e a luz carmesim brilhou intensa entre eles. As pálpebras se fecharam, ele a envolveu ainda mais possante como se a enrolasse em faixas bem apertadas.
A fúria e a confusão dissolveram no enlace violento e doloroso. Como uma concha oca Beatrice fungou, triste como um bom livro, esgotada, sem nenhuma energia vital, doente, estava doente, fraca, vulnerável. Não conseguia mover sequer a ponta dos dedos. O sono envolvia, a inconsciência morna, a cara linda de Gar contra o céu noturno, o cheiro dele tão agradável como uma manhã morna no jardim. Como a encontraram? A explosão, a curva no meio da negrura e o silêncio, sepulcral, frio, obscuro...
Bạn đang đọc truyện trên: AzTruyen.Top