12 - Sem Hematomas
Beatrice sondava ao carro. Talvez devesse variar de marca, todavia um carro capaz de chegar a trezentos quilômetros por hora e custasse milhões, poderia ser a diferença entre a vida e a morte. Apertando a chave na mão, a lataria preta e charmosa, o modelo esportivo, costelas de volta ao lugar, perguntas sem respostas...
Por que Olin sempre surgia à mente quando mirava qualquer carro com a intenção de dirigir? Por que sobreviveu e ele não? Ninguém sobreviveria aquela queda, o médico afirmou, o policial e Nik também. Estar viva era um milagre. E o automóvel a extensão do próprio corpo do Bastardo solitário. E anos se colocaram entre a queda e aquele momento. E o uísque desceu quente e confortável, ao circular o automóvel estacionado na garagem.
— Deviam criar carros com personalidade. Inteligência artificial capaz de amar tanto ao dono a ponto de protegê-lo de todo e qualquer acidente, não acha?
Não, o carro não a responderia. Passou a mão na lataria, fria, lisa e brilhante. Mas, que diabos, Beatrice! É só entrar e ligar! E fez. Sentou-se, colocou o cinto de segurança e segurou o volante. Não podia depender de Nik ou de taxistas a vida toda. Não, Olin não se materializaria no banco do passageiro. Ligou a ignição. Musica, sim, sempre a acalmava. Comandou a inteligência artificial para ligar o som. Se Bel se recusava dar o passe da biblioteca, restava bater à porta dos Maier.
Dirija essa merda, Beatrice! Porra! O portão elétrico abriu atrás dela ao apertar o controle. Socou o volante, como se a dor provocada pudesse afastar a imagem de Olin perfurado pelos ferros, o modo como não respondeu, o corpo banhado em sangue. Eu te amava tanto. Te amava... tanto... e te matei. Amo Bel e a machuquei a ponto de desejar me matar. Amor é morte? Amar é matar? Amar é morrer? Está viva, não está? Dirija a porra desse carro, Beatrice Faure! Você está sozinha, se morrer, morrerá sozinha!
— Sozinha, estou sozinha — disse em voz alta e engatou a ré.
Tirou o carro da garagem. Tirou da garagem! Isso, Bia, continua! Você não ama menos Olin por dirigir um carro. Não pode defrontar os Maier e pedir favores sem dirigir. Nik nunca a permitiria adentrar o território dos Maier. Nunca! E nós sabemos o que isso significa, não sabemos? Está sozinha, filha da puta, ninguém fará isso por você.
— Estou sozinha. Estou sozinha — repetia em voz alta, atenta ao tráfego.
O carro moveu, a quarenta por hora, porém dirigia. Não havia escapatória, a via expressa, obrigatória, assim como pisar no acelerador. Aumentou a musica. Tinha de sobreviver àquela noite também. Nada de penhascos. Gar deixou o número dele no telefone. E queria amanhecer como boa puta, bêbada e grudenta, dormindo e babando no peito dele.
Não existiam tantos problemas entre ela e os Maier. Ao menos enquanto ainda namorava Bel, e os LeBlanc não se importavam com sua existência. Quiçá Cassius tivesse afeição por ela ainda. Cassius Maier, sim, a única oportunidade de entrar na maior biblioteca dos bruxos sem necessitar apelar à violência. Civilizada, sim. Meiga e civilizada. Bel ficaria feliz se fosse comportada e elegante. Bel. Elegante. Linda. Hipócrita! Hipócrita! Te amo, vaca! Por que me traiu?
Tremia. Por que estava tremendo? Por causa da proximidade da rodovia? O movimento do automóvel? A musica? Sim, a merda da música. Não, não era, pois parou no acostamento. O coração acelerado encontrava o caminho pelo esôfago, embolava na garganta, latejava no pescoço. Sufocava, o ar faltava. Escancarou a porta e escorreu para fora do carro. Sentou no asfalto empoeirado. Contemplou o matagal desolado escorrendo detrás do corrimão metálico da rodovia. Levantou-se, impetuosa. Gritou, chutou o pneu, gritou de novo.
— Droga, Olin! Eu não tive culpa, meu amor. Não, não tive. Eu não sei o que aconteceu. Tudo ficou preto. Acho que desmaiei. Eu não me lembro. Mas, não tinha a intenção de nos jogar daquela altura. Eu não tinha. Não tinha.
A estrada se estendia sinuosa entre os morros, banhada pela palidez do entardecer. Seu carro. Tão bonito, tão brilhante, tão potente. Seu favorito. Devia estar úmido nas partes íntimas dele, molhadinho de óleo, cheio de tesão para voar naquela estrada. Para a máquina, os automóveis em alta velocidade deslizando pela autovia devia ser como assistir um filme pornô automobilístico. Inspirou fundo. A fuligem. As lufadas quentes do vento, o ronco dos motores. A cicatriz, o calombo horroroso deixado por Andras na barriga. Poderia ter conversado. Contratado um tatuador. Fazer algo mais bonitinho. O que significava o símbolo marcado com ferro e fogo dos anjos? Queria o colar de papai. E saber dos motivos era mais importante do que paralisar, ofegar e palpitar no acostamento. A noite morna a convidava com seus dedinhos obscuros para a aventura. Os Maier tinham a fama de darem boas festas.
— Entra na porra desse carro, Beatrice Faure! — gritou.
E entrou. O carro se moveu e o pé afundou no acelerador. Berrava, xingava, batia contra o volante. O ponteiro subia, a velocidade aumentava, o vento entrava barulhento pela janela. E alguns minutos após nem a dor, tampouco a culpa a mataram. Afundou o pé.
— Piloto, cara! Eu sou piloto, porra!
Que alívio gritar. Que alívio desviar do bando de lerdos. As mãos doíam pela força com a qual apertava ao volante, todavia voava no asfalto. Venceria. Porque quando se é sozinho tem de tirar a força e a coragem do cu. Não é sobre provar, não, ninguém reconhece nada, ninguém sabe de nada, ninguém se importa. É você por você mesmo. Não é sobre o inferno que são os outros, e sim o demônio que todos os dias tem de defrontar no espelho. Ninguém escapava disso. Ninguém.
Sem o passe, não seria recepcionada na Grande Mansão Maier. Assim Sunshine era a melhor e única opção. Sunshine? Sério? Quanta ironia dos Maier. O nome perfeito para a boate decadente. Deixou o carro nas mãos do manobrista e enfiou o ticket na bolsa gigantesca o suficiente para caber todas as parafernálias necessárias. Suspirou, desanimada. A fila indiana de esquisitos coloridos e espalhafatosos contrastando com o negrume da parede desgastada daria uma boa foto, todavia um passatempo medonho. Acendeu o cigarro, atravessou a rua e tomou o último lugar.
O coração deveria acelerar, entretanto estava calma. Tinha feito o pior, dirigir na rodovia, a exata maldita rodovia. Qual a possibilidade de encontrar um LeBlanc ali? 70 em 100? 80? Agarrou o celular. O número de Nik com a foto acima. Rolou a tela, o número de Gar e a cara linda. Recorreria a Gar se as coisas saíssem do controle? Ah não, não. Se cansaria dela. Ninguém gostava de pagar tão caro por fodas, por melhores que fossem. Tinha de confiar nos objetos mágicos trazidos consigo, pesando na bolsa. Merda, não dava para saber o que esperar dos bruxos. Pesquisaria com afinco sobre as tradições e histórias de cada clã. Seria mais fácil vencê-los. "Conheça bem os inimigos", anotou na lista de tarefa mental da qual jamais se lembrava.
Segurou a comanda, ergueu os braços, o segurança a apalpou, firme, desafiador, com o olhar de quem a colocaria em maus lençóis se tentasse qualquer gracinha. Iluminou a bolsa com a lanterna, remexeu as coisas de um lado para o outro, e a encarou como se soubesse quem era.
Adentrou o recinto, ciente de que os donos estariam informados de sua presença em questão de segundos. A pista de dança estava cheia. Nas jaulas suspensas os dançarinos se exibiam em pura sensualidade. Os corredores mal iluminados estavam abarrotados de pervertidos, escondiam as portas das cabines com danças e abraços libidinosos. Ah, bons tempos em que usava as cabines com Bel e Olin. Não, melhor não se agarrar as lembranças, lâminas afiadas cravadas no coração não traziam felicidade.
Subiu o curto lance de escada. O largo corredor do bar. Sempre gostou dele. Separado da pista pela parede preta e comprida com amplas janelas sem proteções ou vidraças. Encostou-se no balcão negro, arrastou a comanda para o barman e pediu por gim. O que esperar da noite? Conseguiria o passe para a biblioteca ou seu cadáver no leito de um rio?
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